A HISTÓRIA DAS FEZES
Hudson R. Santos
A primeira cicatriz da solene carnificina que foi meu asqueroso relacionamento com Beatriz (ingrata, ingrata, ingrata) foi um tiro de bazuca em meu ego (muito delirante), embora eu cambaleasse de argumento insano para paranoia aplicada e não queria assumir que as baionetas já riscavam o ar de minhas trincheiras, que uma granada estava prestes a explodir em minha boca, que minhas carnes macias e bem cuidadas logo mais estariam em bicos imundos para a alegria dos corvos.
A hipócrita depois de ter feito de gato e sapato o meu obediente pau disse que era para eu não me apaixonar por ela. Ouvi, duvidei, recordei as palavras assassinas. Tentei enganar-me: alguma coisa estava gravemente errada: Meus ouvidos? A linguagem? A tessitura intrincada do universo? Não sou místico nem nada, mas tive a impressão, depois a certeza, depois a fé, depois... Sei lá eu, de que o mundo havia irremediavelmente entortado um pouco. Não havia saída. A pestilenta oração pronunciada por aquela vaca hedionda não parava de marretar meus miolos (já em péssimo estado e quase inutilizados). Perguntei se ela iria me deixar e me preparei para asfixiá-la com o travesseiro caso a resposta fosse relativamente afirmativa. Pareceu-me por instantes que o meu apartamento era um belo lugar para um cadáver repousar até a aniquilação da parte corpórea da existência, até a chegada de um mundo desolado ou do paraíso. Tentei pensar em filmes com finais felizes, cenas da infância, nomes de amigos, céus estrelados, mares calmos e o odor da relva, tudo rapidamente e em vão. Beatriz (sórdida, cretina, vadia) disse que era óbvio, acabou, adeus ou alguma peste do gênero, talvez tenha dito que o tempo é um labirinto, ou algo sobre a imensidão do mundo, a transitoriedade da vida, algum sentido frágil e impossível para algo ou a falta de sentido de tudo, talvez tenha dito mesmo que eu era insuportável (no que tem toda razão) apesar de ser um bom homem (duvido muito!). Não recordo se chorei com a cabeça apoiada no travesseiro ou se golpeei a parede com ele até a exaustão, até aplacar minha fúria mortal. Beatriz (nojenta, salafrária, infame) luz de minha alma, fogo dos meus testículos! Minha dor, meu coração, cadela, praga, inferno! Seu olho cego, seu lugar onde o sol não bate era tão bonito! Língua minha não o esquecerá!
Mais tarde e mais calmo considerei que era apenas um golpe da desgraçada para me deixar mais alerta para o amor, porém a verdade é que suas carnes de segunda nunca mais profanaram minhas terras. Queria morrer e acabar com a utilização do meu pau por toda eternidade ou até a consumação das eras, tanto faz.
Depois do meu melancólico esquartejamento sem dó nem piedade, decidi cultuar o mais descarado ressentimento e a mais violenta mágoa. Beatriz (puta, maldita, criminosa) conheceria o que é a violenta autodestruição de um rejeitado, saberia direitinho, serva de Satanás, tempestade no meu sangue.
Por puro acaso (e para minha salvação) descobri; numa manhã tediosa e sem sentido enquanto lia Baudelaire instalado na privada e concluía que Beatriz era um inseto, uma bactéria; que cagar era definitivamente agradável e não custava nada, um luxo. Não era uma coisa complexa e intrincada como o cu dos outros. Logo eu que passara a adolescência assolado pelo horror a merda. Ficava deprimido ao imaginar os cus mais ou menos sujos indo e vindo pelas ruas impunimente, sem fiscal que desse fim àquela baderna munido de um pano e água morna. Um pouco de desodorante cairia bem também. Não conseguia me apaixonar porque me gelava o sangue (muito azedo) a possibilidade de encontrar uma mácula fecal no rabo da amada no momento em que meu obediente falo invadiria sua mais cobiçada gruta. Era incapaz até de defecar em casas alheias para que o hipotético utilizador do banheiro que me esperaria na porta mal aguentando a bosta no reto não se asfixiasse com meus gases que insistiam em velejar pelos ares, ou pior, caso sobrevivesse delatasse o odor colossal dos meus frutos intestinais para uma plateia apocalíptica ou suicida. Era um obstinado, um nojento que sentia nojo de tudo, até mim mesmo e mais nojo ainda de sentir nojo de si próprio. Não sabia que cu é lindo, como escreveu Adélia Prado. Cu é a estrela da carne, o sol da bunda, a flor do desejo, descobri quando beijei pela primeira vez o botão de Beatriz (bruxa, perversa, abismo). A verdade é que naquela manhã cagara bolinhas delicadas e ficara profundamente encantado, surpreso também e não minimamente alegre.
Certa vez quando ganhei a rua, após o solene translado de um troço de merda (que batizei de Nautilus) da privada para meu aquário, o qual contemplei deitado, vitimado por uma aura de potência ou abnegação, enquanto os peixes se banqueteavam, foi que encontrei Cláudia (tortura do meu coração) numa rua que me deu a impressão de ser calidamente irreal, cinza demais, solitária demais e muito inóspita para meu inquestionável bom gosto. Havia comprado dois espelhinhos para pela primeira vez na vida contemplar minhas imaculadas (fora os troca-trocas na infância) e firmes pregas, pois apenas afastando as nádegas de costas para o espelho do banheiro não conseguia visualizar direito o objeto de minha obsessão. Queria também mirar o reto que me coube por direito ou mérito genético. Apenas algumas cervejas e já estávamos em minha cama ao som de Bob Dylan na mais descarada trepada. Gozei mediocremente e preparei minhas armas para sitiar Cláudia (punhalada na neblina dos meus dias), a desatenta que ainda não havia visto meu encantador Nautilus, minha amputada pica flutuante. Recordei que incentivara Jean (meu odiado amigo que cultuava a mais devassa prisão de ventre, um entupido desalmado) a pintar um anjo acocorado nas nuvens com um bolo luminoso despontando da bunda e olhar perdido no infinito. O paquiderme filisteu disse que pensaria no caso e não se falou mais no assunto. Para que as coisas não ficassem por isso mesmo decidi que em breve fabricaria o Titanic para fazer companhia ao Nautilus, porém teria que ser a amputada pica de cavalo de minha maquinaria intestinal, uma homérica porção de bosta.
Quando Cláudia se dirigiu ao banheiro para suas abluções decidir atacar: Pedi que deixasse a porta aberta para contemplá-la. Ela disse que ia cagar, quase desmaiei de êxtase, meu corpo inteiro tremia. Cláudia fechou a abominável porta, véu imundo.
Abra só um pouquinho não vou entrar, só quero te ver, eu disse enquanto minhas narinas lutavam contra a terrível materialidade da porta após ouvir os peidos flauteados que prenunciavam cocô fresco e saudável, não a sopa que às vezes frita as pregas e sai em cascata abrupta e não em câmera lenta como os toletes. Cláudia havia naufragado num súbito silêncio.
Não dê descarga, não dê descarga! Eu gritava estrangulado. Quase tive um ataque cardíaco quando ouvi as infernais corredeiras. Malvada, egoísta, ingrata, eu rosnava inconsolável. Defecar escondido é um crime, porta em banheiro não haverá mais! Quando abriu a porta me joguei no cubículo para aspirar o que sobrara de seus gases e me certificar se não havia nenhum borrão no trono. Nada, nada, absolutamente nada, água sanitária e bom ar, diabo. O que me restava era investir contra seu cu pós-parto mesmo, fazer o que? Cláudia disse que precisava ir embora. Garanti que ela só sairia viva de meus domínios depois que expusesse seu cu para meu deleite e instrução, pois se ela tinha parte com o meu pau eu tinha direitos sobre seu rabo. Ela fingia não ouvir enquanto se vestia. Acho que disse que tudo estava acabado, outra Beatriz maldita, outra ingrata. Insisti que ela tinha feito o que bem entendeu com meu pau, agora era hora do seu cu ser meu de cabo a rabo. A desalmada disse para eu me foder, cretina, cretina, cretina! Pedi que soltasse pelo menos um último peido. Disse que eu estava estranho, muito estranho e faria bem em consultar um psiquiatra e que além do mais só trepara porque estava bêbada, que eu me aproveitara da situação. Saiu pela porta para sempre ou nunca mais. Só me restava meu próprio cu e depois a morte, santa ingratidão, que horror! O sereno Nautilus parecia estar pouco aí para tudo, cretino! O iminente Titanic lhe mostraria onde é que se poderia chegar em matéria de excrementos colossais, nem que fosse necessário usar alargador no rabo para o melhor acabamento da obra.
Enquanto esperava a chegada de uma puta que me prometera um magnífico forébis para bater palmas dentro pensei na marginalização da bosta pela literatura (e pela humanidade), fora um capítulo admirável de Boccaccio onde um sujeito naufraga numa fossa sem ter conseguido a tão almejada foda; algumas passagens de Bataille, principalmente uma onde um padre reza a missa após ter defecado atrás do púlpito; as decisivas linhas de Swift onde o excremento de Gulliver é retirado em carroças pelo liliputianos; Manoel de Barros enfatiza a importância do verbo obrar para o alívio humano; Enderby por dentro, de Anthony Burgess, está sempre no trono deprimido e defecando; o genial Marquês de Sade que escrevia com excrementos em lençóis e paredes depois de ter sido condenado a uma existência ágrafa nos hospícios e também Giorgio Agamben que em Profanações fala sobre a "repressão e separação de determinadas funções fisiológicas” e continua “... a defecação, que em nossa sociedade, é isolada e escondida através de uma série de dispositivos e de proibições (que têm a ver tanto com o comportamento quando com a linguagem”. Agamben coloca a defecação como o campo das tensões polares entre natureza e cultura, privado e público, singular e comum. Enquanto não se aprende um novo uso das fezes o que resta é cagar na maior solidão do mundo e sem direito a apelação e isso num cubículo que é a parte que cabe aos resultados intestinais, mesmo que depois, e isso é tão engraçado, paradoxalmente a merda vá desaguar no rio. Quanta vigilância e proibições em torno se um simples tolete de bosta. Ah corpo humano, ah fim da picanha e da alface, do leite e do caldo de mocotó! Proibimos a livre circulação do cocô e liberamos a destruição do planeta, que avanço! Isso porque sempre nos dirigimos ao melhor, Beckett estava certo “ao pior!” parece a solução! À merda! E tudo vira bosta, canta Rita Lee entre acordes alucinantes.
Tocou a campainha. Atendi com o coração aos saltos. A sujeita não me agradou, mas deveria servir aos meus nobres desígnios. Apresentei-lhe meu altivo Nautilus. A desagradável achou que eu estava brincando, como é tonta. Em todo caso melhor um cu na mão que o sol brilhando ou algo assim, não sei. Ofereci vodca e passe livre para vistoriar minhas propriedades. Ela parecia um manequim orbitado pela noite e o mistério. Minhas terras de repente pareceram um deserto sonolento ou frio ou distante.
Deitado pedi que parasse de enrolar para tirar a roupa e viesse logo cagar em minha boca, se quisesse mijar em meu peito ficaria muy grato pela cálida cascata de sua vagina em meus pelos. A tonta deu um pulo de susto, mas depois caiu na risada. Disse que eu era tão engraçado.
Engraçado é o caralho, pode trazer essa sua fábrica de churros de segunda e fazer o trabalho porque eu estou pagando por essa porcaria, gritei quase assassino ou completamente tolo. Ela disse que ia chupar meu pau. Eu disse que era apenas o bufador dela que interessava, mas se quisesse lamber o meu tudo bem, era só ser delicada com minhas pregas que frisei serem incólumes apesar dos troca-trocas etc... etc... etc...
Caga só um pouquinho, não custa nada, cacete! A tonta não sabia o que fazer apenas hesitava, hesitava e hesitava, santa paciência!
Peida pelo menos diabo! Peida gostoso porra! Pode pelo menos expor seu assobiador? Pode pelo menos isso? Aproveite e abra um pouco para eu contemplar o vermelho das tuas tripas. Ela disse que iria embora, não fazia programa com loucos e que eu me comportasse, pois não viera sozinha, que era melhor ficar onde estava se não quisesse terminar a noite com um tiro na boca e que fizesse a gentileza de pagar a visita, sem receber nada é que não iria deixar minhas terras, a culpa era minha.
Pode pelo menos cagar no banheiro para eu te ver, pode? Disse já sem esperanças. Engendre um companheiro para o meu adorável Nautilus serva de Satanás! Naquele instante tive a nostalgia de um futuro com privadas na calçada para os cidadãos defecarem sem remorsos nem pânico ou assombro. Defecarem com cigarrinho nos lábios, munidos de jornal ou livro no mais alto nível de descaramento ou liberdade, tanto faz. Imaginei também o prazer que os cabritos sentiam quando as delicadas bolinhas desciam alegres pelo reto em busca do chão para auxiliarem a natureza em sua profusão ou dinâmica. Talvez algo próximo a cócegas, porém mais agradável, muito mais agradável. Merda macia para alegria do fiofó. Merda grossa quase a estourar o anel. Merda sopa que queima as pregas. Merda bolinha que o cu vai soltando aos empurrões. Merda comprida que parece não ter fim. Merda, merda, merda!
Para me vingar disse que ela era proprietária do cu mais apático do mundo, possuía um cu vegetal, um desiludido túnel abandonado. Perguntei se merda em latinha ela vendia para que um sujeito estivesse sempre próximo ao seu perfume. Disse ainda que pelo menos eu possuía um formidável Nautilus e ela tinha uma moeda velha no lugar de um gracioso anel. Disse ainda que se humanos e dinossauros convivessem na noite dos tempos muitos desavisados seriam sepultados ao ar livre por um monumental tolete jurássico. Em vão, a ingrata já havia partido.
Restou-me apenas deitar para recuperar forças para novas batalhas enquanto olhava a imóvel jornada do divino Nautilus. Por estranha que pareça a sensação que tive foi de caminhar na noite, na chuva, no frio, de cabeça baixa e sem rumo. |