ZUNÁI - Revista de poesia & debates

NA FALTA DE ÓCULOS

 

Adrienne Myrtes

 

O cego cegava o sol da tarde, parado e surdo em sua calma, próximo ao sinal fechado para ele. O vermelho pintando um homenzinho miniatura estático e preso na caixinha que ele não enxergava em frente, amarrada ao poste.

 

Do outro lado da rua observei o movimento da bengala, tateando as pedras do calçamento quente, buscando buracos na calçada, caminho livre por onde transitar sem susto. O barulho dos carros se cruzava nos dois sentidos entre mim e ele, as pessoas passavam sem atenção empurradas pela idéia de pressa e o cego virava o rosto para cima feito quem olha o sol e nem liga.

 

Eu vinha irritado de mais um dia de nãos. Uma noite de cão danado e sarnento chutado enquanto dormia. E quem me mandou dormir? Quem me disse para acreditar na calmaria da noite, no silêncio das vigas, na cumplicidade dos sacos de cimento?

 

Parecia que ia mesmo ser uma noite igual, nada a fazer, vigiar o quê naquela paz? E ficar acordado, então, a troco de que moeda? Se não havia interesse em roubar construção capenga, igreja ainda em ascensão? Não havia precisão de desconstruir a ordem noturna que é: depois de um dia de trabalho, durma.

 

O cego até podia não estar incomodado com o sol, vai ver por não conseguir ver vivia de olhos fechados. Os óculos muito escuros não me permitiam confirmar a impressão, mas eu, na falta de óculos iguais, apertava os olhos e sentia doer neles a noite não dormida. A agonia de voltar pra casa e ter que contar pra Joana que perdi o bico de vigia na construção. E tive que agüentar o pastor irritado ao me encontrar dormindo, a reclamar da minha falta de profissionalismo. Profissionalismo é o cacete. O que me falta mesmo é dinheiro para manter a família em estado de dignidade: as crianças a reclamar Mac Donald’s e tênis Nike, Joana a querer tevê de plasma e eu obrigado a fazer extra na vigilância da noite depois de construir o dia inteiro. A boa notícia era que nem precisava sair do lugar para passar de um trabalho ao outro. Vigiava o serviço feito durante o dia.

 

O sinal abriu, atravessei a rua, agarrei o cego pelo braço e o levei, sem demora, até o outro lado. Não levei a sério seus protestos nem mesmo quando ele começou a falar alto. Sons que lembravam as palavras: seqüestro, ladrão, acudam. Eu não ouvia muito bem, a rua passava barulhenta e eu tinha pressa de ajudar o infeliz para poder seguir meu caminho em paz. Paz que o povo em volta não me deu, sei lá de onde começou a juntar gente ao nosso redor e senti, surpreso, que o cego chegou mesmo a acertar umas bengaladas em minha cabeça. Depois foram as outras pessoas que puxaram o cego tentando roubá-lo de mim. Segurei o braço dele com mais força, eu precisava protegê-lo, o que queria aquele povo com o homem cego? Ninguém foi lá salvá-lo do calor infernal do sol, ajudá-lo a fazer a passagem de um lado a outro da rua, só eu. Só. Só deixei que o levassem quando fui atingido, na cara, por uma bolsa feminina. Caí, ainda sem entender o que diabos uma pessoa pode carregar na bolsa capaz de tirar sangue de um cidadão.

 

A provável dona da bolsa, uma dona de parar o sinal, caso ele já não se encontrasse fechado, deu o braço ao cego desculpando-se pelo atraso e saiu, conduzindo ele entre a multidão, de volta a seu posto de origem: o outro lado da rua. Um carro aguardava os dois, acelerando assim que entraram.

 

Fiquei eu espiando a cena entre a confusão de pernas anônimas e, enquanto me defendia dos ataques da turba que, sem a presença do cego se ocupava unicamente de mim, agradeci a deus até não ter óculos a me defender do sol senão o estrago ia ser grande.

 

No desespero apalpei o bolso da calça por fora com a mão suja de sangue antes de cruzar os braços ao redor da cabeça em proteção. Joana ia reclamar da mancha na calça, mas eu precisava me certificar de que o resultado das contas do pastor ainda estava lá, na segurança do senhor, a me garantir alguns dias de sossego e noites com possibilidade de sono.

 

Enquanto me aninhava em posição fetal para me defender sonhei que me livrava daquela gente sem rumo que parava seu dia para espancar um cristão cumpridor de seus deveres. E em meu sonho a cara de Joana assumia o corpo da minha mãe e me dava a luz do dia de volta, e me cegava os olhos com beijos úmidos e quentes, beijos que escorriam líquidos e vermelhos, beijos que apenas as mães sabem beijar porque sangram o mesmo sangue.

 

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Adrienne Myrtes nasceu em Recife e vive em São Paulo desde 2001. É artista plástica. Participou de eventos literários, destacando a 4ª edição da Balada Literária, que reuniu quase uma centena de artistas brasileiros e estrangeiros de 19 a 22 de novembro de 2009, na Vila Madalena, SP. Publicou o livro de contos A Mulher e o Cavalo e outros contos (Editora Alaúde, EraOdito Editora, 2006), a novela juvenil A Linda História de Linda em Olinda (Editora Escala educacional, 2007), este último em parceria com o escritor Marcelino Freire. Participou das antologias Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial, 2004) e 35 Segredos para Chegar a Lugar Nenhum – Literatura de Baixo-Ajuda (Bertrand Brasil, 2007) entre outras.

 

 

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