ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

É O CARALHO


André Sant'Anna

Era de noite, chovia, dentro do ônibus, olhando pra fora, em Copacabana. Tinha visto um filme do Buñuel e nem sabia que era do Buñuel, nem sabia que havia o Buñuel. Gostou das duas atrizes que faziam o personagem feminino principal. Estava apaixonado por elas.

Em casa, explicou quem era o Buñuel.

Não se importou que tivesse matado aula para ver o filme do Buñuel.

Era pra ver qualquer filme, não o do Buñuel especificamente. Deu sorte com o diretor e eram muito lindas mesmo, muito charmosas mesmo, que fazem ficar apaixonado. Podiam ensinar tudo e dar muito carinho e ser mães e ser namoradas amantes professoras.

Iam começar as férias, amanhã. Ia voltar para a cidade pequena, onde sonhava voltar um dia fazendo parte do elenco de uma novela igual Dancing Days. Tinha uma que gostava e gostava de teatro e ainda queriam ser atores e escrever teatro e participar das novelas.

Queria viver as histórias de amor das novelas, com a Lídia Brondi e não chorava. Se fosse adulto, choraria.

Teve alguns amigos que participaram de novelas iguais Dancing Days.

Hoje, e foram protagonistas e beijaram, na boca, mulheres que posaram nuas para a Playboy.

Fizeram sexo com mulheres que saíram nuas na Playboy. Fizeram sexo até com mulheres que a Playboy ofereceu uma fortuna para saírem nuas na Playboy, mas não precisam e recusaram.

Até trabalhou na Globo muito depois daquele dia de chuva e apareceu em alguns programas de televisão. Saiu na revista.

Falaram mal, apontaram defeitos.

Elogiaram muito e foi ficando muito importante. Talvez o melhor seria ter parado.

Foi ficando figurinha fácil.

Sentiu o envelhecimento.

Tem quase 40 anos.

Pensou se poderiam, ou deviam, tomar conta, não deixassem que nada de ruim pudesse acontecer.

Acontecem coisas ruins. Aconteceu.

Não levaram isso em conta e deram umas porradinhas. Não eram amigos, não conhecem, têm que trabalhar, na sexta-feira, de noite, vão para um bar que tem jornalistas e tem artistas. Não pode beber. Bebem e não pensam que tem sofrimento. Sofrendo.

Um dia, pareceu que tinha morrido.

Era muito sensível. No colégio, sentia muito essa sensibilidade.

Não apareceu na Globo. Todo mundo ia ver e iam lembrar lá naquela cidade. Gostaria.

Saiu na Veja. Aí todo mundo reparou.

Gostava de ver o Glauber Rocha fazendo discurso lá no Posto 9.

Sente saudade.

Naquela época daquele dia, de noite, que chovia, olhando pela janela do ônibus: não era amigo de ninguém, no colégio, no Rio de Janeiro.

Demorou uns 2 anos pra ser chamado pras festas e ficar apaixonado pelas meninas que nunca ia namorar. Andava muito com o pai.

Fazia teatro e ninguém conhecia o Glauber Rocha.
Domingo, depois do Fla X Flu, teve o programa com o Glauber Rocha. Ficou entusiasmado.

Ficou parecido com o Glauber Rocha. Tentava.

Abriu um buraco no joelho e foi parar num hospital e não precisou costurar.

De noite, indo para a cidade pequena. Morou na cidade pequena. Tinha o bar, de noite, com o primo. Tocavam jazz. Queria tocar bateria. Tocava bongô em cima do disco do Milton Nascimento - Minas, Geraes.

Depois, não gostava mais do Milton Nascimento.

Fica emocionado quando houve música do Lulu Santos, do Cazuza. Até da Blitz.

Achava que o rock nacional tinha roubado o espaço do Arrigo, do Itamar Assunção. Foi no Circo Voador, no Rio de Janeiro, no Arpoador, falava mal. Viajou com o Circo Voador. Suado, de noite, olhando pela janela do ônibus, faziam teatro dentro do ônibus, tocavam suas músicas, as músicas, daquela noite, do joelho machucado, mancando, com o primo e hoje acha que o Cazuza era um cara legal. O Cazuza foi na viagem do Circo Voador, Nordeste, não foi de ônibus, foi de avião, mandaram sair do time. O Evandro Mesquita entrou no lugar. Não gostava da Blitz. Gostava de ir a São Paulo, na Treze de Maio, no Carbono 14. Tinha grandes amigos, daquela cidade pequena, em São Paulo.

Ficou esquizofrênico, nunca aparece, teve dois filhos, casou de novo, nunca telefona, não deve ser tão amigo. Ficou bem em Genebra, toca guitarra, já deve ter cabelos brancos, fumava uns baseados, não vê há 3 anos. Tem saudade. Acho que era viado. Não era viado, mas comia viado, de noite, naquela cidade pequena, ficavam olhando pra lua, tinha o cachorro, era meio putinha, mordia os mamilos, tinha 12 anos, falava que tinha 15.

Hoje, não faz diferença. Eram amigos. Era do Rio Grande do Norte. Lembrava quando estava no Rio Grande do Norte. (Forma, o caralho.) Nunca mais viu.

Está com dificuldade com os olhos. Assistiu o filme com a história do Marcelo Rubens Paiva, tinha a Malu Mader. Foi bem pior. Tem medo de ir descobrindo aos poucos. Ficou emocionado quando reencontrou o Chacal. O pai gostava do Chacal. Gostava do Chacal, no colégio, no grupo de teatro, lia os poemas do Chacal: Papo de Índio e um do sapato na festa que pedia para parar de dançar. Foi em São Luis do Maranhão. Conheceu o Chacal, conversava, chamou para tocar. Tomou um ácido. Tomava qualquer coisa.

Será que pode tomar um ácido?

Foi bom, começou a fumar maconha. Fumava com a atriz, namorada. Era uma mãe, uma irmã. A viu no aeroporto. Estava trabalhando na Globo. Era o primeiro dia. Ano do Dragão. Falavam muito bem nas revistas. Acabou o tempo ruim. Não conhecia ninguém nas filas do cinema, em São Paulo. O telefone não tocou nem uma vez. No Rio, depois, começou a conhecer todo mundo: o Chacal.

Tinha o Asdrúbal, antes tinha surf, antes da cidade pequena, os primos, a Regina Casé, Camaleoa, Camaleão do Chacal, encontrou quando estava saindo da Globo, não teve problema, depois, naquele bar, em Brasília, estava bem, morando no hotel, de noite, depois tinha trabalhado com a Regina Casé, na Globo, de noite, voltando pra casa e sente uma saudade, não era que era feliz, acabaram os anos do Dragão.

Receitou anti-depressivo, pensava se um dia ficaria deprimido, era pra cima, ficou deprimido quando veio para São Paulo, tem saudade porque depois tudo foi ficando bom. Não via. Não eram depressões fortes. Podia ficar muito mais deprimido. Um vencedor.

Queria transar, namorar, ficou com medo. Podia. Gostam dos diferentes. A amiga foi em casa, queria. Tinha medo.

Ficou tão bêbado com a camisa do Lula. Saiu do Maracanã com a camisa do Lula. Ganhou a camisa do Félix.

Não davam bola. As mães não queriam que namorassem. Sabia. Gostou dela.

Tocaram juntos. Brigavam muito, meio inimigos. Depois, bem amigos. Foram abandonados pelas namoradas. Aquele sentimento. Tocavam nos bares. Deu bola, gostou. Trocaria a outra por essa. Foram para São Paulo, até tocou com o Hermeto Paschoal. Gostou dele, gostava de homens femininos. Acha que era gente fina. De noite, segunda-feira não tocavam, viam vídeos, não devia ter passado, passou os Blues Brothers, teriam mudado tudo se fizesse sexo, apaixonado, foi adolescente, dava pra qualquer um que pagasse um jantar, levou pra Nova York, disse que os europeus são bonitos naquela performance. Era pra ela. Era pra sacanear.

Foi muito bom. Se acabasse. Teria sido uma boa vida. Ia virar mito. Ia virar mito? Acha o Torquato Neto auto-artista. Tem um problema com suicidas. A mesma sensação daquela música com letra do Torquato Neto, das três da madrugada. Nada. Sentia arrepios. Está vivo, como o Pelé gritou. Chorou.

Canta a música com letra do Torquato Neto, aquela sensação, quando voltou, uma noite qualquer, táxi, Túnel Rebouças, descobrindo tudo, não foi no show da Gal, foi no show do Beto Guedes, falava mal do Beto Guedes. Era simpático, falava baixinho, sente quando ouve o Beto Guedes, por causa daquelas noites, mesmo se não chovia, mas uma coisa com a noite, a chuva, o Rio de Janeiro, o Macalé, o Guima. Sente uma emoção. Ouviu o Itamar Assunção, ficou muito emocionado, viu mais novo, gostava muito do Itamar Assunção, descobriu o disco do Itamar Assunção na saída do Teatro Ipanema. Foi outro dia, quase chorando, emocionado mesmo, gosta dele, sentia isso, estava bêbado, queria falar pro Arrigo, mudou sua vida, parece com o Arrigo, engordou, estavam meio pra baixo, sem dinheiro, sabia que isso ia acontecer, com eles, não com ele. Não esperava. Tudo muito diferente. Observador, dependeu dos outros, vai sozinho ao outro lado da rua, agora.

Leu na internet, uma banda igual a do Arrigo. Seria o Arrigo. Uma banda igual a dos Beatles. Era muito mais criança ainda. Sentado na motocicleta, na garupa, abraçada, sentia as coxas, filava o jantar quando tinha batata palha, muito antes, chamaram para jogar bombinhas no corredor, lia Dico, o Artilheiro, usava uma roupa preta toda colada no corpo, as coxas, dormia com ela, era apaixonado, ficava apaixonado toda hora, a filha mais nova dos Robinson, era muito criança, sonhou com um filho.

Sabia que ia ser assim, se acontecer de novo, não vai perceber, está sempre acontecendo. Estavam esperando, não está mais começando, não vai virar mito. Não dá pra inventar toda hora. O que deve ser ser dos Beatles? O George Harrison, pensa no Itamar Assunção, lembra da Alzira, naquela noite, tão relaxado com as mulheres, nadou nu no mar. Perguntou quem era. Foram à praia, à cachoeira, deu um passe de calcanhar, jogou muito bem, brigou com o amigo, falou no telefone, outro dia, uma saudade, do amigo, fazendo coisas muito bacanas, conseguiu ficar músico, andando pela calçada, em Copacabana. Ficou lá deitado na banheira de hidromassagem, podia continuar pra sempre, eterno, tudo, inventando de novo.

Literatura, o caralho.

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André Sant'Anna nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1964. É contrabaixista, compositor e roteirista de publicidade, cinema e televisão. Publicou Amor (1998), Sexo (1999), Amor e Outras Histórias (2001).

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