ZUNÁI - Revista de poesia & debates

ALTO-MAR

 

Artur Rogério

 

Dessa terra não tiro nada, nada aqui é meu, eu é que sou dela, ó, assim. Esta terra é do homem, daquele homem de Recife, ali. Tá vendo aquelas goiabonas ali? Ali, ó. Tá? Assim, se eu tirar umazinha sequer do pé, ele me tira deste barraco. Ó, posso tar morta de fome, eu não roubo. Foi isso o que me ensinou a minha mãe, assim, ela que nunca deixou faltar comida dentro da gente, apesar dos filhos, daquele marido e dos bichos. É, não sei como é que vivo aqui, nem quero saber. Eu não tenho talento pra nada não, ô, seu Artur. Eu não sei dar um ponto de cruz, não sei fritar um ovo, olhe, ó, aqui, veja, assim, eu não sei botar uma água num copo. Nada. A minha mãe é que era talentosa. Se ela tivesse tido estudo, teria sido uma pessoa grande. Costurava as nossas roupas, fazia casaquinhos de lã, cuidava das plantas, ó, essa parte toda era cheia de todo tipo de planta, aqui, assim, ó, tá vendo?, fazia sabão, fazia pão, cada pão gostoso!, fez o parto dos próprios netos, ela preparava um escabeche de arabaiana que só ela. Eu não, ó, assim. E te juro que tentei, mas nunca aprendi. E pode? Eu que sou pobre, eu tenho direto a esse luxo? Eu nasci errada e a minha vida é uma vida tapada. O único florescimento foi o meu nascimento, depois não tinha mais jeito, era viver, assim. E eu apenas tou aqui, ó, tá vendo?, assim, dura de saúde, pra quê? Seu Artur, que tipo de talento a gente tem que ter pra poder viver? Dizem que cada um tem um, né? E se não tiver? E, assim, não existe aquele conto do pau que nasce torto? Ó, seu Artur, veja, eu sou feita daquela madeira que fazem caixão de bebê, ó, tá vendo?

 

Mas isso faz tempo. Assim, que eu vivo aqui, fora, sem existir. Ninguém vê um pé de gente aqui. Só um velho, uma velha que às vezes vai e volta feito um tatu, feito uma memória, sem ter pra onde ir. Tem o povo do sítio, aqui do lado, ó, a família do homem de Recife, que nunca vi. Nunca vi, tá vendo?, nenhum desse povo, nunca vi e nem quero ver. E tem o meu tio Misael, esse só uma outra vida pra curar a vida dele, essa. Tio Misael, quando moço, vivia colado mais meu pai, pra cima e pra baixo, ó, iam os dois. Meu pai era mais velho e mais íntimo do mar, então o irmão ficava de ajudante, pintava o barco, manejava os equipamentos, preparava a refeição lá na pesca, carregava os baldes, descamava os peixes, vivia fedido a piche e a carniça de peixe, meu tio. De meio-dia, na hora do almoço, primeiro chegava a catinga mais maior que ele, mais maior por causa da fome. Assim, ó, ele tem um buraco da venta mais maior que o outro, é coisa medonha de se ver, parece um coral jogado no meio da cara. Magro e inchado, Tio Misael preparava a massa do feijão com farinha, jerimum e pimenta na boca nua e, de longe, naquela fisionomia, fazia que lambia os meus peitos nascendo e, assim, ó, aqui, me lambuzava com o óleo da fritura escoado prum saco escondido dentro daquela barba de ladrão.

 

Ó, seu Artur, eu vou lhe contar um segredo. No dia do meu casamento, eu ainda era virgem, assim. Guardei pro meu marido. Pois no dia do casamento, depois de muita safadeza, tio Misael me prendeu lá no quintal, eu já vestida no vestido da igreja, e ele me arrastou pro mangue. Nem vou relatar o que ocorreu, assim, vocês conhecem muito bem o que é um estupro. Ó, seu Artur, isto aqui é um sarar-morreu, é uma rachadura na alma. Aí, assim, quando voltei pra casa, minha mãe também meteu o cacete pra cima, me castigou, pois pensou que eu tinha buscado escapar do compromisso do casamento e não ouviu nada da minha explicação fodida. Nunca. Morreu moca.

 

Ó, seu Artur, meu tio Misael matou todo mundo, assim. Ninguém falou nada, mas foi ele quem abandonou meu pai no alto-mar. A minha mãe não agüentou e também morreu, assim. Depois de dois anos de casamento, meu marido viajou com uma irmã minha e com a nossa filha. Os outros, de pouquinho em pouquinho, foram partindo e nenhum nunca mais deu o ar da graça. Restou nada, ó, tá vendo?

 

Hoje fico aqui, ó, já não tenho mais idéia pra pensar. Fico observando tudo isso que já tá muito bem observado. Às vezes ele vem, assim. Às vezes o tio Misael vem, aquele fedor de intestino de agulhinha, antes dele aparecer. Ele, quase do mesmo jeito, descarnado feito um cajado, os olhos de azeitona roxa, a barba torrada, o nariz sumido dentro da cratera. Ele traz um fardo de mortadela, bolacha creme craque, cuscuz, sardinha de lata, fumo. Hoje, ó, pra viver, dependo dele. Hoje, ele vive cuidando dessa terra aí, ó, desse sítio aí do homem de Recife. Ele virou, assim, o vigia dessa terra. Veja que vida é essa, ó, seu Artur! Veja que vida! É desse monstro que dependo pra viver. Esse cão, esse estrupício, essa fera dos infernos que comeu o meu coração! Pois esse demônio, ó, é ele o que me deixa viva. Se não eu morreria e, veja, seu Artur, assim, nunca desejei morrer, apesar dessa vida, não tenho agonia pra morrer logo. Ó, assim, seu Artur, a morte será o meu segundo florescimento e isso é a única coisa que ainda vou ter. Além do tio Misael, que, feito uma coisa que vive acima da natureza, vem aqui toda semana. Ele descarrega as sacolas ali, ó, ali naquela parte que é feito uma dispensa, ó, tá vendo?, assim, naquele canto. Depois ele me cutuca, me espreme, retira as botas de onde saltam jias, formigas, mariposas, lagostas, lagartas de coqueiro, embola-bostas. Tão entendendo? Ã? Quem? Conheço não. Assim, conheço nenhum Marcelino não, ó. Ele mora onde? Ele é de Recife? Aí, ó, seu Artur, eu sei que também vem feito uma nuvem de areia transparente que veda essas duas janelas sem janelas, ó, aí ajunto as mãos e deito de barriga pro chão, ó, assim. Tio Misael belisca a minha buceta, gira feito um pião no meio dessa sala, corta os meus ombros com um espinho de laranjeira, voa por cima da pia seca. Ali, aquela ali, assim, aquela pia ali, seca. Não pronuncia nada, é sempre assim, ó, ele tem o corpo frígido como o de um vivo morto, implora pra que eu engula o leite, aí chora na minha saia, pede perdão, entrança os dedos, me oferece o coração de gesso, tudo sem ninguém ouvir um único arroto. Mas quem? Feito o som do alto-mar, assim. Não existe nada lá no alto-mar, viu, seu Artur?, assim, a não ser que o senhor mergulhe. Vocês me compreendem? Ó, seu Artur, aí ele vaza, feito uma chaminé de espuma, pelo telhado da dispensa sortida. Mesmo eu ficando muda, mesmo me trazendo a única comida, ele, quando vai embora, sempre me rouba alguma coisa, uma garrafa, um saleiro, uma erva, uma flor, uma goiaba, um cofre com água de chuva, assim. Nunca sei se ele volta, a gente nunca espera. Mas, ó, seu Artur, ele é o único, ele é o único que vai e volta pra esta Terra.

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