ZUNÁI - Revista de poesia & debates

CÚSPIDE

 

Beatriz Grimaldi

 

Quando a sineta toca todos saem, ela é a primeira deles, sempre a vejo passeando pelo pátio, sei que poderia estar no seu lugar. Trago nas mãos o limite que me separa dela.

 

Só a observo, faço isso há tempos, tento descobrir mais de sua história sem me aproximar, parece que ficou assim após a morte da filha, boatos. Ninguém nunca a visita, já estou aqui há cinqüenta dias, não deixo que percebam minha ansiedade para estar com ela, é difícil.

 

Hoje se sentou bem em frente a mim, seus longos cabelos em movimento, sua delicadeza. Estivemos separadas apenas pelo vidro da enfermaria, quase pude tocá-la, o calor da minha boca embaçou a transparência que nos separava, ela não me viu. Apaixonei-me desde o primeiro dia em que a vi, na verdade mal sabe quem sou. Uma vez trocamos olhares e sorriu, seus lábios carregam tantos beijos, como queria passear por eles, inundar-me.

 

Agora se reúnem para o almoço, senta-se com Ana, uma adolescente autista que nos visita duas vezes na semana. Ela tenta buscar algum tipo de contato com a menina, talvez a faça lembrar a filha. A garota gosta da sua presença apesar de não olhá-la, passa o almoço todo batendo a ponta dos dedos na mesa, um som irritante, a cabeça para baixo e o cabelo mergulhado na comida. Tira suavemente os cabelos dela de dentro do prato, é a única que pode tocá-la, por instantes parece que Ana vai falar, mas joga seu prato no chão e sai andando. Ela ainda tenta chamá-la.

 

Os outros se encaminham para o jardim ajudados pelos enfermeiros, ela também. Não se deixa tocar. Senta-se perto de um pequeno lago, o lugar mais bonito daqui, se não estivéssemos em uma clínica, seria um bom começo para uma história de amor. Chegou à hora de me aproximar, trouxe alguns livros para ela, gosta de ler. Deixo o gravador ligado quero que ouçam esse nosso primeiro encontro:

 

— Trouxe livros para você - Tira da bolsa uma pequena caixa, um terço, começa rezar.

— Desculpe, quer que eu volte mais tarde?

 

Acho que não me ouve, inicia um som repetido que vai entorpecendo a ela e distanciando a mim, não sei o que fazer agora que já cheguei até aqui.

 

Os minutos esquecem de passar, fico sentada ao seu lado contemplando sua beleza, imaginei dizer tanta coisa, mas o barulho de um carro faz com que se levante, deixa o terço cair e corre até o portão. Ana está indo, embora, vieram buscá-la, volta com os olhos cheios de lágrimas. Fico muda, envergonhada de aproveitar do seu sentimento que transborda, pego em suas mãos. Ela não reage.

 

O gravador está ligado ouvindo nosso silêncio.

 

—  Quer conversar?

 

Disse isso, mas sei que ela não vai responder nada. Minhas mãos escorregam involuntariamente pelo seu rosto. Temo minhas atitudes, meu corpo esquenta, não consigo tirar os olhos de sua boca, quero beijá-la, levá-la comigo.

 

Arrisco:

 

— Podemos passear?

 

— Não, obrigada.

 

Precipitei-me, que burrice.

 

— Quer ficar aqui?

 

Ela não me ouve mais, enrola o terço entre os dedos e aperta as mãos com força.

 

— Você sabe para onde ela foi. Quem a levou?

 

— Ana? - Balança a cabeça num sim.

—Para casa, acho que a mãe veio buscá-la.

           

— Você a conhece? - Perguntei.

 

Abriu novamente a bolsa tirou um véu e cobriu o rosto.  O som agora era abafado, balançava o corpo como a ninar-se.

 

Perdi novamente. É claro que tudo estava ali naquela garota. Movimentava-se cada vez mais rápido, tive a impressão que iria cair e abracei-a agarrando toda minha espera. O vigilante passou por nós, não eram permitidos contatos tão íntimos.

 

— Precisa de ajuda? - Ele disse.

 

— Não, está tudo bem, pode ir. - Saiu, mas não tirou mais os olhos de mim.

 

O que fazer com ela ali em meus braços, frágil e entregue. Esperei tanto por isso.

 

— Minha filha.

 

Não podia ser verdade, achava que Ana era sua filha, que dor.

 

— É mesmo?

 

— Sim, não estou doente. Ela é minha filhinha, tiraram-na de mim ainda pequena. Vou levá-la comigo. Estou aqui porque quero.

 

— E quando vai ser?

 

— Amanhã.

 

Abracei-a mais uma vez, meu desejo por ela me constrange. Faz frio e o bico dos seus seios aponta na camisa, quero tocá-los.

 

— Você me ajuda? - Ela atirou em meus pensamentos, uma doente como todas as outras.

 

— Sim. - Não consegui dizer mais nada.

 

— Agora tenho que ir, vou arrumar nossas coisas.

 

— Virou-se uma vez para trás, olhou dentro de mim, tínhamos um segredo.

 

Fui para casa e não consegui dormir. Acariciei meu corpo, olhando para ela. Tenho diversas fotos suas coladas nas paredes por onde passo, a  fotografo com a desculpa de estudar seu comportamento. Faço isso com outros pacientes, mas ela é a única que ocupa meus caminhos, meu quarto, minha vontade do dia seguinte.

 

Amanhece, preciso ir. Chego a clinica, ela linda sorri para mim, faz com as mãos para depois conversamos. Leva uma pequena bolsa e os livros dados por mim, apenas isso.

 

Aproxima-se.

 

— É hoje.

 

— Não consigo dizer nada.

 

— É hoje.

 

— Você não acha melhor conversarmos mais sobre isso.

 

— Não.

 

— Sinto o quanto a feri, com certeza não era isso que queria ouvir. Tampou o rosto com as mãos e entoou uma prece num pedido de socorro, alto, mais e mais. Chamou a atenção dos enfermeiros no pátio. Tentei manter o controle. Mentira, não sabia qual seria sua próxima atitude, nem a minha.

 

— Olhei para Ana sentada no jardim, incrível, mas parece que a esperava. Ela foi caminhando em direção a garota, deixando-me ali.

 

— Agachou-se perto da menina que num milagre lhe estendeu a mão. As duas correram pelo pátio em direção ao portão.

 

— Parem. Gritei de longe.  Ela ainda tentou, mas dois enfermeiros a seguraram, outros levaram a menina.

 

Recolhi a bolsa caída no chão e os livros. Dentro duas passagens para Paris que nunca foram usadas de dezembro de 1998 e um pequeno diário:

 

 “Ana tem 15 anos, meu bebe, minha filhinha. Mudaremos para Paris e ela irá conosco, finge que é médica só pra nos ajudar. Está construindo uma casa lá, em Paris, vamos morar com ela.

 

Ninguém nunca mais vai nos separar, nunca. Preciso ir, Ana está chorando, está na hora de mamar, vou arrumar suas coisinhas. Vamos amanhã, eu e Ana pra Paris, ela irá depois.”

 

Peguei as passagens, estavam guardadas há mais de dez anos. Vou colocá-las na parede junto com suas fotos, acho que vai gostar.

 

No próximo mês inicio o curso de francês.

*

 

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