ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

MAR DE CLARIDADE


- Ilustração: Josemí -


Cláudio Portella  

 

             01h30minhs Escrever até a cabeça doer. Penso nela. Imagino Pessoa escrevendo seu Dessassosego. Sou uma imitação de escritor. Tenho duas pernas, duas mãos. Feito qualquer um. Igual a você. Porém, escrevo, escrevo até a cabeça doer.

             Quero uma mulher que me faça sentir, sentir até meu pênis doer. Escrevo em primeira pessoa versos tristes porque sou sozinho nesse apartamento de sala-quarto-cozinha.

             02h00minhs Uma música suave ao longe. Um Glenlivet com gelo redondo. Cumplicidade. E que o tempo esvai-se. Vire fumaça. Toque outra melodia. Possuo limitações. Limites que não consigo transpor. Ninguém aceita frustração. Sangro o nariz, me afogo em sangue e extrato de tomate. Sinto muita falta de alguém. Poderia ser mártir ou testemunha, mas prefiro permanecer ausente, longe, distante do sol e do cheiro das ruas, dos diálogos e suas orações subordinadas.

             03h00minhs A maré está alta. Leio Agatha Christie. Vejo o mar com suas ondas incansáveis. Sua espuma lembra-me um copo de cerveja com colarinho. Gotas me banham a face. Diana com o copo na mão: "Possuo dois hombres, el gostoso e el gastoso...".  Eu era um deles.

             04h20minhs Uma balança representa o signo de libra. Onde se conclui que o libriano deve ser justo, uma mulher de olhos vendados com uma balança representa a justiça, e equilibrado. Sou um libriano típico. Indeciso. Dúbio. Incapaz. Se gosto do vermelho, com um tempo abuso e só terei olhos pro amarelo. Sou completamente desequilibrado.

             11h00minhs Protegida pelo guarda-sol Diana lia Machado de Assis. Lembrou-me um poema de Denise Levertov: "... e enquanto você lê o mar vai virando as suas páginas escuras, virando as suas páginas escuras...".

             12h00minhs Sempre fui um imbecil estúpido. Imbecil por dá ouvidos a mim. Estúpido por não tentar persuadir-me.

              14h00minhs Depois de dez anos de vida conjugal, Diana perdeu sua identidade. Começou a se mostrar outra pessoa, com personalidade desconhecida. Passou a mentir e a desconhecer nosso passado. Era como se fossemos namorados. Fazia questão de se mostrar bonita, há muito sua máscara se desfizera, mostrando uma criatura relapsa, vaidosa e culta. Mentia. Fizera curso de artes plásticas na escola de Belas Artes de Paris. Seu nome figurara por várias semanas na lista dos Best Sellers do The New York Times. Tudo mentira. Você não acredita mais em mim. Eu dizia que acreditava, que a conhecia bem, que dez anos não eram dez dias. Histeria. Desespero. Puxava os cabelos. Lágrimas cobriam-lhe a face.

             14h01minhs Quanto mais conheço as mulheres mais admiro as cobras.

             15h00minhs Albert Camus e uma música folclórica. Me sinto um vírus. Tonto, inebriado, visão embaçada. Não sei o que falar depois do gozo. Ver vo-cê gozar e esperar. Esperar. Esperar.

             16h00minhs Estou no meu quarto de onde vejo o mar. O mar é tudo que importa. Depois de vento nos cabelos e de tantas palavras jogadas fora.

             01h40minhs Ontem terminamos tudo. Hoje chove desesperadamente. Como se a natureza estivesse chorando por nós. Um choro abundante, demorado. Água. Água. Água. Lágrimas. Lágrimas. Lágrimas. Nossa relação é verdadeira ou essa chuva é apenas coincidência? Tristeza vã. Absolutamente desnecessária feito o papelão que fizemos.

             01h42minhs Que diferença há em matar um inseto ou uma mulher?

             02h00minhs Não quero mais falar de Diana. Tenho que tirá-la de vez dos meus sonhos. Meus pesadelos. Quando era jovem, pensava em ser um grande escritor. Passei a escrever freneticamente. Sem parâmetros. Veio o período das drogas. Usava bolinhas para auto-afirmação. A procura do "eu". Literatura barata de Carl Gustav Jung. Uma mão sorrateiramente escreve: "Tudo que quero é dormir. Dormir para esquecer. Esquecer a dor de cabeça que me persegue. Dor por sua causa. Dor por Você. Solidão. Memórias abafadas demais para serem esquecidas".

             14h00minhs Diante das vagas mato o tempo que me cerca. Sou um assassino ou um suicida?

             15h58minhs Não fui ao velório. A idéia de enterrar alguém me assusta. Menosprezam o corpo. Quando eu morrer não quero que me toquem. Deixem-me onde estiver. Aquele maldito telefonema. Eu poderia tê-la deixado ao meu lado na cama. Com aquele ar matinal. Aquela frescura. Os cabelos esparramados. Um gosto acre na boca. Mas não! Tinham que telefonar. Agora ela está debaixo da terra. Enterrada. Feito eu em recordações.

             16h00minhs A contemporaneidade de um homem é diretamente proporcional ao número de pratos por ele lavado.

 

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Cláudio Portella é escritor. Nasceu em Fortaleza em 1972. Autor de Bingo! (Porto - Portugal: Editora Palavra em Mutação, 2003) e de Os Melhores Poemas de Patativa do Assaré (São Paulo - SP: Global Editora, 2006). Participou de antologias, revistas e sites de literatura. Contato: clautella@ig.com.br

 

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Josemí (José Miguel Goyena Sábado) nasceu em 1947 em Tafalla (Navarra, Espanha). Estudou Sociologia na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. Morou em Paris, Marselha, Tenerife e Palma de Mallorca. Atualmente, trabalha como ilustrador para editoras e revistas.

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