ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

RIOBALDO

 

 

Cristhiano Aguiar

 

8 horas da noite. Pausa nas filmagens de Grande Sertão: Veredas. Eu ainda com roupas do Riobaldo Urutu-branco. Diadorim, ao meu lado, comia salada, silenciosa. Seu cotovelo se encostava no meu braço. Entretanto, não é o nome Diadorim que aparece em todas as capas de revistas de fofoca, mas sim a famosa atriz Mariana Helena - que interpreta o papel - dona, feito uma serpente sinuosa, de mais um nome, seu terceiro nome; este, é nome de batismo e de fuga, pois é uma terceira máscara: Ariadne Bettancourt. E enquanto eu repito Ariadne, Ariadne, Ariadne, como se pudesse, nessa repetição, entendê-la, no meu rosto se estampam as imagens do pico na veia, das marcas do vício, escondidas naquelas mangas longas...

- Próximo take, tu como Riobaldo-tatarana. - Me avisou um dos assistentes. Pessoas lá e cá, horas e horas de filmagem, noite adentro. Eu precisava terminar de jantar e em seguida ir para a maquiagem, pois cada fase por que passa Riobaldo, no romance, possui no filme uma identidade visual diferente. O Riobaldo mais velho, o que conta a história, eu também interpreto, envelhecido por uma cosmética de horas. - Lá na maquiagem, certo?

- Rapaz, você viu as fotos da Otacília na Playboy? - Perguntou Chico Miranda, um dos roteiristas. Ele comia conosco na barraca. Otacília Menezes fazia uma ponta no nosso filme.       

- Sim.

- Gostosa! Gostosa, não é?

- É. - Resposta afiada.

Diadorim, olho em nós.

- Ela deu em cima de ti, não foi? - Diadorim perguntou, ríspida.

- Isso mesmo! - Chico me deu uma tapa nas costas. - Esse aqui é quietinho, mas é garanhão! Só não fica convencido quando for famoso, ficar sem falar com os amigos roteiristas pobres!

- Besteira. - Ela resmungou. Chico fazia de propósito, só para provocá-la. Nada contra ela, ou a favor de nós. É que ele apenas gostava de um redemoinho. - Fale de algo útil: tu leu aquele livro que eu te passei?

- O do Hatoum? Li. Gostei e não gostei. Eu admito - o garfo na mão dele balançava - que há um competente trabalho de linguagem naquele romance, é sim, isso me atrai muito. Mas cansei, sabe, porque ainda é uma história de família, uma história de memória, ali deve ter umas memórias dele. Eu quero saber de Histórias, quero contar aquelas histórias que falem das coisas supremas, das coisas por trás das coisas, ou das coisas adiante, as que estão ali na frente, pulsando. Entende?

- Entendo. - Respondeu, num jeito bem Mariana. Olhou pro outro lado. Queixo sobre a palma da mão esquerda, cotovelo na mesa. Olho anoitecido.

- Eu quero a imensidão! Olhe ao seu redor - Chico moveu o braço esquerdo indicando nossa locação. - Imenso! "Viver é perigoso"!

O ser tão de Minas se enlargueceu. Gosto destas externas, me sinto mais à vontade do que no estúdio, porque me lembro da fazenda.

Palavras por trás de palavras. Tudo misturado.

*

Eu, como Riobaldo-Jagunço, em cima do meu cavalo. Mariana Helena, a atriz famosa: "tu faz amor com esse mesmo jorro teu da atuação, tu é uma corrente, uma correnteza. Tu é meio Riobaldo". Não sei se concordo, Mariana, contigo, porque como posso saber quem é Riobaldo, encontrar-me nele, sem perceber quem sou eu mesmo? Como você pode conhecer Riobaldo refletido em mim? Riobaldo é uma máscara que me atravessa, embora seus olhos estejam vazios; este que você vê, Riobaldo, te revela nada muito importante de mim, mas sim de você mesma, da forma como você espera que ele deite no chão e ponha o ouvido sobre a terra...

Solidão sem limites, o trote trote do meu cavalo; um trilho com a câmera, ao meu lado. Lentes, refletor, pessoas, diretor de fotografia, uma das assistentes de direção, microfone, maquiagem; quando te amei, te amei como Mariana; quando dormimos juntos - ela, agora, nas suas acomodações, direto na veia - você se curvou dentro do próprio pecado; mas você retornou ao seu primeiro nome, o nome em segredo? 

Como eu posso fugir da memória, amigo Chico? Eu me desmancho a cada segundo, o agora é inapreensível: eu sou sempre ontem. Imagens da infância - o rio na fazenda dos meus pais, a canoa solitária, ancorada - e gaivotas de luz boiando sobre a correnteza. Na margem, eu hipnotizado; outras vezes, eu com meus amiguinhos. Brincávamos de imitar as pessoas, os bichos. Eu era o melhor na brincadeira, porque, nos calcanhares, ou na ponta dos meus pés, desde pequeno se mesclam minha sombra com as sombras dos que me atravessam.

- Corta.

Desci do cavalo. Bom take. Me elogiam.

- Tua concentração é formidável! Teu rosto nem era mais teu! Eu te enxergava lá e me perguntava, "poxa, como é mesmo o nome dele? Riobaldo!".

Chico concordou com a assistente. Tapas nas costas:

- Você extraiu vitalidade da imobilidade. Sabe como é o seu nome verdadeiro?

Eu tentei responder com a verdade, mas ele me interrompeu:

- Riobaldo.     

Melhor não ter respondido. De que adianta a verdade, se desde aquele momento eu já estava nas sendas da dúvida?

*

Deus existe? Deus há?

Enquanto tomo café no estúdio do Rio, final da tarde - Ariadne se contorce, braço desnudo, dentro do camarim - eu seguro algumas páginas do roteiro do filme Grande Sertão: Veredas, dirigido por Teodósio Demurggio, o primeiro diretor brasileiro a ter ganhado um Oscar, e embaralho as minhas falas, trocando os papéis de Deus e do diabo. Diadorim aponta, para si mesma, um punhal em forma de agulha de seringa. Um branco absoluto, um branco da cessação de tudo, roda dentro dos seus olhos. Braço alvo. Eu não consigo, Ariadne. Quando fecho os olhos e a manta de escuro cobre o mundo, eu só imagino um braço largado, solto no ar, dedos curvados e o teu nome escrito de modo tal que um simples assopro pode apagá-lo e misturá-lo ao pó áspero do sertão. Mariana: "quando tu faz amor comigo, tu ainda pensa no Deus e no diabo? Tu ainda pensa no pecado aprendido na tua infância?"; em resposta, eu plantei meus dedos fundo nos seus cabelos, galhadas se jogando no véu de fogo, e disse que no meu coração brincam de ciranda Deus, Deus, Deus e o diabo.

*

Não consigo alcançar Riobaldo, a não ser no silêncio. Como se transformar naquilo que só existe como lençol de linguagem, retorcido sobre um rio branco?

Na seleção do elenco, um dos requisitos: enfrentar o diretor e o seu silêncio. Atrás da sua escrivaninha, no seu escritório, acompanhado de duas produtoras, com um charuto apagado entre os dedos, ele observava, olheiras fundas, cada candidato a Riobaldo que atravessava sua porta. Nada dizia. Não queria um ator famoso, embora as co-produtoras o pressionassem para isso. Os coadjuvantes, no entanto, Diadorim incluída, seriam todos famosos. Riobaldo, não: rosto novo; ator desconhecido, porém talentoso. Demurggio, com seu jeitão de filho de italiano, ficou meia-hora em silêncio, o livro Sagarana em cima da sua mesa. Me intimidei, admito. A força que encontrei em mim foi me esvaziar e esvaziar até alcançar o rio nublado que é o rio da memória, rio da fazenda da infância; naquelas margens, nuvens e correnteza, procurava uma fuga do meu pai e da minha mãe, ambos sempre de luto, com franjas brancas nas mangas e cenhos severos.

Fugia do meu pai, do meu pai e da sua barba austera...

- Você sabe cavalgar?

Foi Demurggio quem perguntou - os estilhaços de silêncios caiam no chão, reverberavam nos meus ouvidos vagarosos. 

- Sim... Sim! Fui menino de interior, de fazenda. O senhor também sabe?

Demurggio ficou surpreso. Ele, reduzido ao homem, ali. Não esperava essa pergunta, não esperava qualquer pergunta. Foi nesse momento, creio, que ele duvidou de mim pela primeira vez. Me disse, depois: "eu vi que você pulsava forte, contra mim, mas não pude resistir ao que se movia dentro de você: você e eu somos irresistíveis, por isso foi impossível não te reconhecer".

Uma semana depois, me ligaram. Riobaldo seria eu.

*

Não posso, se faço de conta que sou Riobaldo, tocar Diadorim - amor proibido no romance e no roteiro. Mariana Helena, esta está em mim; mas Ariadne é inalcançável. Mariana Helena esteve em várias revistas, na internet e na TV, por causa de uma novela e deste filme, famoso antes da fama. Filme feito, faltou à estréia; deixou, cruelmente, minha mão em silêncio; internada, a assessoria de imprensa abafando ao máximo, mas as fofocas espalhadas pela internet.

Estas lembranças já me espetam.

O elenco e a equipe sentaram todos juntos, na estréia. Eu já não falava mais com Demurggio, por causa da cena das Veredas-mortas; por isso, naquela estréia, não tiramos nenhuma foto juntos; as resenhas na imprensa fizeram comparações com Borges e acentuaram a genialidade de Demurggio. Revistas de cinema exaltaram o seu preciosismo: a mania de cobrir com exaustão todas as cenas, os storyboards que ele mesmo desenhava, a decupagem precisa. Fala-se de Cannes. Elogiou-se bastante a fotografia de Walter Carvalho, também. Ressalvas sobre o elenco, só duas: Mariana Helena, os críticos insistiam em não acreditar nela, e o meu colega que fez o papel do Hermógenes - o sentiram pouco à vontade. Não é pra menos, pois ele sempre quis o meu papel. Ricardo Roberto, o eterno galã dos anos 70, que interpretou Zé Bebelo, passou, através do namorado, sentado ao meu lado, as revistas e os jornais com as entrevistas que eu dei. Os títulos: "Bonitão e intelectual" - sobre minha formação incompleta em sociologia; "Diadorim e Riobaldo, um romance nada proibido"; "Do interior de Goiás: novelas globais?".

Você e o Chico foram meus dois únicos amigos, Ricardo; gosto da sua integridade. Você também esteve com Ariadne no momento em que ela precisou de mim; não estive contigo, Ariadne, eu confesso, eu não agüentei; não pude perdoar você. Não consegui lidar com o odor da entropia.

Ao assistir à cena do corpo nu de Diadorim, após a cena da luta final com Hermógenes, eu senti que o cinema era uma imensa caverna em que fogueiras projetavam sombras, colchas fantasmagóricas de retalhos, imagens desconhecidas; eu via a mim mesmo e não me reconhecia; não reconhecia Deus, embora a fogueira da verdade só pudesse ser Ele, pois de onde mais sairiam todas as coisas? No emaranhado de sons de centenas de punhais se chocando, efeito criado pela edição do som para a cena, eu vi o teu rosto, Diadorim, se formar na minha frente, feito dessa música metálica, cada toque na tua face libertava uma nota musical que rasgava as pontas dos meus dedos. O mundo não existe. Que deus dançarino rodopia dentro da luz espalhada?

*

Diversas semanas no pacto, câmeras e câmeras cobrindo as seqüências. O cenário das Veredas-mortas foi criado no estúdio e depois recebeu retoques no computador. Foram usadas lentes recém-lançadas no mercado para captar as texturas que Demurggio, a fotografia e a direção de arte julgavam mais adequadas. Naquele momento das filmagens, problemas de orçamento e de cronograma estressando a todos, dois olhares me incomodavam: Mariana Helena, que comunicava Ariadne na mudez verde - ela assistia a todas, todas as cenas que eu filmava; não dizia palavra alguma, lagarta de fogo enrodilhada feito uma espiral de infinito; Demurggio, que me tolerava e transformava a sua câmera em lâmina. Entrei em cena e um rio e uma mão severa me jogaram nas sendas da Dúvida; o gosto dos meus pais na boca; um rosto feito de música e fogo, um tu.

De acordo com o romance e o roteiro, naquela escuridade húmida deveria Riobaldo invocar as artes do diabo - e nunca saberíamos se ele existia mesmo - para poder acabar com o Hermógenes, seu inimigo; Deus e o Demo!

Eu me mexi feito bicho, na cena, eu-me; então ocorreu, todos esperavam as falas mais importantes da história, mas eu metamorfoseei; se no roteiro eu deveria dizer, igual ao romance, Lúcifer! Lúcifer!, eu gritei Jeová? Jeová?; no lugar de Lúcifer! Satanaz!...; Jeová?, Emanuel!...; e, por fim, Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus Infernos! foi filosofado em Ei, Jeová! Deus, dos meus firmamentos!. Quando terminei de improvisar esta cena, Mariana Helena estava de boca aberta, porque percebeu que naquele gesto foi com Ariadne que eu quis falar; nós compartilhávamos um mesmo desejo, mas é preciso muito mais do que isso para que dois possam ser considerados dignos um do outro; por isso tentei escavar, escavar, ultrapassar a luxúria e as perguntas enfumaçadas da alcova; ela levantou-se e saiu, não pôde suportar minhas verdades, porque Ariadne não quis se entregar; se o tivesse feito, eu a teria salvado? Nonada.

Quanto a Demurggio, esse meu outro pai enlutado, me olhava como se eu o afrontasse; você não me compreendeu, homem? Eu te homenageei, ao expor o mapa das minhas angústias, cheio de cicatrizes das pisadas de YHWH; Demurggio não entendeu, ele me invejou, porque não admitia não ter tido aquela idéia antes; este foi seu pior erro de interpretação, pois o que fiz não foi uma idéia, foi uma necessidade; não era uma arte, era eu mesmo; à sua inveja juntou-se o medo, ao descobrir em mim uma fundura tão sua. Ele entendeu. Não me afrontou. Disse corta; mandou repetir a cena diversas vezes. Mantive o meu texto. Eu - pactário. Eu, um Outro.

 

*

Cristhiano Aguiar nasceu em Campina Grande (PB), em 1981, e mora atualmente em Recife (PE). Autor do livro de contos Ao lado do muro (Meta, 2006), é editor da revista Crispim (www.crispim.com.br ), de Crítica e Criação Literária, publicada pela Editora da UFPE, e colaborador do suplemento literário Augusto, do Jornal da Paraíba . E-mail: cristhianoaguiar@gmail.com.

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[REVISTA ZUNÁI- ANO III - Edição XII - MAIO 2007 ]