ZUNÁI - Revista de poesia & debates

PÁS DE JARDINAGEM

 

Emília Barbès

 

casa de vó era aquilo mesmo: quintal, galpão, ferramentas numa caixa mais ou menos só permitida ao jardineiro, à vó mesma. as escavadeiras, os tatuzinhos eram eles. exclusivíssimos sete e cinco anos de proveniência de um amor mar de rosas; futuros pais de bisnetos.

 

viúva, a vó reunia a família aos domingos. único dia da semana em que deixava de observar as mudanças ocorridas entre os muros e o contorno externo da casa. nos demais, sentia-se lesada. os crisântemos não vingavam. papoulas vermelhas e rosas raquíticas simulavam um jardim que não passava de quintal de subúrbio. exasperava-a a ausência de branco. estava com alguns buracos e muita terra revolvida. a vó sorria, balançava a cabeça, cúmplice na complicada operação de alcançar o outro lado. preocupava-se mais com o florescimento do que suas mãos devotas aliciavam e os olhos umedeceriam extáticos ao vislumbrar a maciez branca dos seus crisântemos na aquiescência da terra. a terra, móvel incorporador de todo o poder de projétil que dispara comentários irascíveis faz caras contrariadas provoca muxoxos puxões de orelha dá banho nas crianças lhes incute certo amor, inconveniente.

 

eles conviviam num mergulho, rechaçando datas horários. a brincadeira séria. depois, ela podia-se esquecer lavando as mãos para sempre. ele deixava as unhas sujas e dava no mesmo. concentradíssimos, finalmente firmaram um trato: deixavam em paz o resto do quintal, mas aquele pedaço sombreado no qual as pitombas se suicidavam do vizinho por cima do muro era deles. limites demarcados. segredos sigilosíssimos.

 

o trabalho seria impossível de tão lento não fosse a avidez perfeita de curiosidade, predição de prazer, heroísmo, fama, um sonho, ninguém ousaria duvidar, pioneiro. isso. exploradores. cientistas. desconhecido numa equação igual a liberdade. conseguiriam e pronto: descoberto o caminho para o invertido lado do mundo. passagem para novas manhãs, sem mães. tesouros à flor da terra, sol nascendo no oeste, linguagem de trás pra frente, andanças no céu, sobressaltos.

 

meio de tarde quando se deram os olhares confusos de grandeza. o companheirismo dispensava comunicação e dúvidas. deram-se as mãos e juntos se foram pernas braços orgãos orelhas bocas narizes tudo entrando penetrando tomando parte sendo o próprio calor a quentura o pegar fogo formando e deformando assediando os olhos que teimavam em persistir testemunhas viventes de acusação conjurados apartidários à parte tudo todo deslumbramento descamado nas saliências reentrâncias – anfractuosidades – sob formas diversas indefiníveis de ardor intrínseco magma apresentando-se como prenúncio de vida quentura nervosa já explodindo em ondas parida por uma mornidão sem pudores ingênua que crescia calores enormes curvos moldáveis infinitos num recomeçar sem cor contorno ou outras quaisquer banalidades conexão a ser feita pela papa que se derretia e misturava interminável depurando-se transformando-se branca branca branca branca onde nadavam pretinhos pupilares ridentes que amanheceriam no lado do desejo.

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