O MIÚDO E O LARGO
Eugênia Fernandes
Os dois caminham apressados.
O Miúdo:
— Gigantismo, desencanto, ceticismo, é o que temos por ora.
— E os antigos não padeceram dos mesmos males?
— Agora é diferente.
— Não há aí a soberba dos vivos? O presente tende a se dar uma importância descabida.
— Calma lá! O nosso presente é que é assim.
— Os outros não foram também?
— Não. Isso é coisa de 500 anos pra cá.
— Qual! — escapa-lhe um muxoxo.
— O que você quer, afinal?
— Eu sou o que pondera.
— E eu sou o que acidula. Posso lamentar perda, impotências e limites, como posso louvar a tigela de leite, o cirandar da cabrocha, o...
— Parece cena de Bergman.
— ... fruto pendente, colhível da...
— Cuidado com os carros.
— ... da árvore do dia.
Desciam o bairro no cansaço da segunda, batendo perna dos empreguinhos no centro para o buraco onde moravam. O Miúdo branco, magrelo, semicalvo, era o que acidulava:
— Toda descrença convicta, seja como for, é mentirosa. Não se sustém.
— Você é crédulo demais.
— E daí? Você parece broca, quer furar tudo. Perquirição de preciosismos. Cuidado com os Arcanos.
— Perdi a fé, mas não o aparato, meu caro.
— Afetada! — desmunhecando, tripudia.
Rindo e arfando pela ladeira íngreme, param, tomam fôlego. Dali vê-se uma parte do bairro no seu remexer-se noturno, todas as luzes são tristes, a feiúra imperdoável dos prédios, não venta. Voltavam a pé, por falta de fundos. O maior, o Largo, cabeleira encaracolada, era o ponderador:
— O que quero? Extrair do máximo o melhor.
— Religiões, ideologias, políticas, estéticas vivem de expansão. A agulha no joio é o que você quer, não é? De cada vertente, a centelha que nos enriquece e elucida? Difícil, árdua e, desconfio honestamente, que impossível e, se possível, inútil.
— Pode ser. Mas entre o início, ápice e declínio alguns têm que manter em voo as inquirições vitais. Você se acomoda ao conforto do dogma.
— Axioma, axioma, é irrefutável.
— Do dogma, muito fácil. Irrefutável?
— Negue o motor do mundo, a aorta do planeta, o cosmo micro-macro, as profundezas dos píncaros, o...
— Deus, você quer dizer?
— ... eterno-efêmero.
— Certo. Nossos nano-bisturis e ano-luz-satélites ainda são uma técnica imprópria, para ao menos riscar a pele dos… Arcanos, como você diz.
— Cuidado... Veja: o fascínio pela queda, a lei do bandido, o desafino como pauta, o contrário como caminho, que, se por parte de uns raros houve o se afundar pra trazer à tona um grão de luz de lá, agora, esculhambou.
— Não sei. Será que trouxeram luz mesmo? Tautologia do subterrâneo, o loser como lume, o estranhável como convite, sombrio, sinistro, mórbido, adjetivemos, hediondez.
— Idiotia, bizarrice, contradição nos pormenores, Beemoth e Leviatã.
— Novamente Deus.
Sobem as escadas que levam ao terceiro andar do quarto-e-sala semimobiliado que eles sublocam há um ano. O Miúdo destranca e entram. O Largo vai requentar o rango. O Miúdo, antes de ir se lavar, liga o som. Sentam-se e comem:
— As causas inexplicáveis — bufa de boca cheia o Miúdo — as línguas não pegam, e todo engenho e arte empacam. Há domínios que não é bom mesmo incursionar. Para que tanta xeretice?
— Não é bom? — murmura, engolindo o suco, o Largo. — Teme o sentido nenhum?
— Não é bem isso.
— Muitas vezes é pela avessia que se acha ricos veios exploratórios. Não dissecações estéreis. É cevar o mistério, não emagrecê-lo, se me entende.
— Tô ligado. Esse seu humanismo-idealista-pagão é inquietação desnecessária.
— E você prefere o símbolo palmilhado, o que é natural num dogmático de princípios — o muxoxo agora é seu.
— Não ofende.
— Emotiva! — desmunhecando, tripudia.
— E o cirandar das cabrochas?
*
Eugênia Fernandes. Nasceu em Campinas/SP, mora no Rio/RJ, mas prefere o mar da Bahia, onde mergulha sempre que pode. Publicou, em 2002, sua tese sobre Manuel Antônio de Almeida, Populâncias de Milícias. Possui, no prelo, a novela Ser, não Sendo. [geniafernandes@gmail.com] |