O NEGRO ESCANDINAVO
Eustáquio Gomes
Atribui-se ao marinheiro escandinavo Knut Amundsen, capitão do barco pesqueiro Oseborg, o fato singular de correr ao menos uma gota de sangue negro brasileiro nas veias da população alvacenta da ilha de Bornholm, banhada, em todas as suas reentrâncias, pelas águas geladas do Báltico.
A história apareceu com todas as letras nas páginas da Iceland Review, em 1962, e foi recentemente reproduzida numa coluna humorística do The Guardian, com aquele típico humor inglês que apenas faz pender o cachimbo ou o cigarrinho de cannabis. Consta que Conrad mencinou-a num de seus cadernos de apontamentos para Nostromo, mas por alguma razão acabou desprezando o rico filão, que só por si daria um romance do mar.
Com efeito, não se sabe se em outubro de 1889 ou em novembro de 1890 (os historiadores divergem), o famigerado Amundsen recrutou nas ruas da Bahia o ex-escravo Balbino de Oliveira para cozinheiro de seu barco, pelo simples fato de haver provado de seu tabuleiro umas moquecas muito saborosas. Aliciou mais gente na Jamaica, em Cuba e no Panamá, enquanto galgava as praias calorentas da América e enveredava pelo Canal com o barco repleto de chicanos, todos muito bem pagos e satisfeitos da vida, embora fosse um destino de solidão e de privações o que esperava por eles abaixo da linha do Círculo Polar Ártico.
Luterano de botas e cordéis, o capitão Amundsen ocupava as horas vagas doutrinando a tripulação segundo O cativeiro da Babilônia, obra basilar do sempre reverenciado Martinho, mas não consta que fosse rígido a ponto de menosprezar, digamos, as exigências glandulares dos marinheiros. Mostrava-se biblicamente compreensivo nesse ponto. E como nem por sombra admitisse mulheres no barco (homossexuais, nem pensar), concedia que os marinheiros depositassem seus humores num pequeno barril de carvalho que, depois de cheio, era arrolhado e jogado ao mar. O barril sobrenadava as águas do Báltico ou do Mar do Norte, conforme a rota em curso, e em geral ia dar nos recifes ou nas geleiras eternas do Bótnia, aonde ninguém ia.
Em 1892, uma aldeia costeira de Bornholm foi assolada por um surto de gravidezes em massa. A comunidade, que vivia da pesca e do fabrico artesanal de utensílios de igreja, estava nessa altura inteiramente entregue à iniciativa das mulheres, como acontecia toda primavera, época em que os maridos rebocavam seus barcos para o Golfo da Finlândia, de onde só retornavam meses depois, cantando hinos pagãos e bebendo gengibre.
Pois desta vez, ao voltarem, encontraram prenhas mais de 50 de suas mulheres, algumas na flor do climatério, outras ainda núbeis e tidas por intocadas. Estabeleceu-se o mistério, o interrogatório, a pancadaria. E o medo. Entre si os homens se interrogavam se não era o caso de terem feito jus aos chifres vikings que exibiam nas festividades locais. As mulheres continuavam jurando inocência. Estava-se a ponto de acreditar num novo milagre da Anunciação, desta vez coletivo, quando uma brecha de luz abriu-se a partir da confidência de uma parteira, mulher vivida e curtida em conversas de alcova.
Interrogada por uma comissão de maridos impacientes, apertada daqui e dali, a mulher acabou fornecendo a pista para o desvendamento do enigma: “Um barril”, murmurou. “Barril? Que barril?”, indagaram, desconfiados, os homens. Tratava-se de um barrilzinho de carvalho, “fechadinho, bonitinho”, que as mulheres haviam encontrado na praia certa manhã. Ali mesmo o abriram, julgando que contivesse vinho ou gengibre. Mas tudo o que encontraram dentro dele foi cera, cera branca até a borda, a cera que escasseava nos depósitos da cooperativa.
“E o que fizeram com ele?”
A mulher fez uma longa pausa antes de responder lugubremente:
“Fizemos velas.”
Nessa altura os historiadores tornam a divergir sobre um outro ponto do episódio. Uns afirmam que, conhecedores das práticas reinantes no Oseberg, os maridos aviltados armaram-se de arcabuzes e partiram em busca do barco fecundante, surpreendendo-o na entrada do estreito da Dinamarca e matando toda a tripulação. Outros asseguram que nem toda a tripulação foi morta, tendo alguns escapado em direção a Copenhague, inclusive Balbino, que teria conseguido embarcar num navio mercante francês que rumava para a Guiana. O ano de 1904 é dado como aquele em que Balbino se fixou definitivamente em Caiena, onde morreu em 1923, dizem que muito respeitado e admirado pela gente do lugar. Não há registro de que tenha voltado ao Brasil. Menos ainda, com certeza, ao Báltico. |