A CARTA NA GAVETA
Gabriela Kimura
São Paulo, 20 de dezembro de 2008.
Querido Raduan,
Você deve estar se perguntando como diabos esta carta foi parar aí bem no meio do seu silêncio. O que posso dizer é que certos ruídos querem ser tornar vivos aos olhos de destinatário.
O mundo mudou bastante depois que você partiu. Sim, os carros triplicaram. Quadriplicaram, para ser um pouco mais exata. São como pragas a tomar conta de tudo aquilo que deveria ser espaço, vão, lacuna, buraco. Não sei mesmo se você se acostumaria novamente a tanta pressa e desleixo. A tanta falta de palavra.
Os crimes ainda acontecem, embora já não se pareçam tanto com os tiroteios novelescos que nos alcançavam como surpresas ou pequenas catástrofes. È comum por aqui os arroubos da tal juventude que, por certo, você continua a querer distância.
Mas o motivo que me traz a esta carta não é retratar nosso cotidiano que pouco lhe causa interesse. É que ultimamente ando me perguntando pelos cantos o que fez você engavetar papéis, trancar as portas, modificar hábitos, abdicar de paparicações e mimos, depois de nos causar tanto espanto. A buscar em outra lavoura, a paz de um quase anonimato, da bucólica visão de um homem, de cabelos já grisalhos, a contemplar a sua simpática (e lendária) criação de cabras.
Talvez você tenha razão em seus desagrados. A sabedoria da velha mão à procura da própria história. No entanto, eu não poderia deixar de registrar o meu cansaço diante das fugas que não consigo compreender. “Com que direito?”, você deve estar pensando. O mesmo que me fez vir até aqui. Sim, o mesmo que é quase nada entre o mínimo eu e o seu infinito distanciamento.
Afinal, não me confunda com aquela sua velha ficção (ainda pregada na minha memória) onde eu deveria dizer, ao final da história, “não, eu não conheço este senhor”. O ventre, caro Raduan, embora insista em secar com o passar do tempo, ainda persiste à imaginária condição de ser exatamente aquilo que o ensinaram a ser. Assim como os carros, as cabras e essas tuas velhas mãos.
Com carinho,
Gabriela Kimura.
A CARTA (SEM RESPOSTA)
Dia 5 de janeiro de 1996.
Tia Lurdinha tudo bom? Comigo tudo bom também. Hoje faço 12 anos e estou escrevendo essa cartinha pra pedir uma coisa pra você. A Janete brigou com a Cristina e tá de castigo. Ela chora o tempo todo e eu num aguento ouvir ela gritá e xingá o dia todo. Eu num gosto da tia que brigou com ela mais ela enche muito o saco com esse choro. É triste demais e dá uma coisa ruim na gente. Penso que essas coisas fazem mal pro crescimento do ser humano e não ajudam a gente a ter uma vida melhor. Será que você não podia me levar pra morar aí na sua casa? Eu prometo que vou me comportar e escovar os dentes e os cabelos todos os dias. A Janete num precisa ir junto não. Ela é muito desobediente e tem a boca suja. Acho que ela num tem futuro que nem falam na televisão. Outro dia passaram um programa de criança que fica num lugar cheio de outras crianças que roubam e xingam seus pais. Eu acho um absurdo isso porque deus vê e fica triste e castiga com drogas e violência. Os pais choram e sentem muita vergonha. A Janete sempre diz que é melhor num ter pai que faz coisas com seus filhos. Eu num acho porque isso só acontece com os filhos que num tem futuro nenhum. Por isso gostaria que você viesse me buscar logo e me tirar desse lugar. A dona Joana que faz a comida fala que sou uma laranja que ainda num ficou podre. Ela deve ter razão porque ela tem dois filhos que gostam muito dela e que ela num traz aqui porque acho que tem medo deles ficarem junto dos outros e aprenderem coisa que num presta. Eu quando sair daqui num vou querer voltar nunca mais porque me preocupo com o meu futuro e quero ser sempre uma laranja boa e feliz e ter um marido que me ame muito e que vai me dar uma casa bonita e dois filhos educados com as pessoas. Espero sua resposta e ficarei muito contente com a sua confirmação. Sei que você é uma pessoa boa porque dizem que quando alguém escolhe ser assistente social é porque se preocupa com o estado que as pessoas vivem. Prometo ajudar na sua casa e ser educada com as visitas. Estou esperando. Muito obrigada e um abraço para todos os seus familiares.
Jenifer Maria da Costa.
MAIS UMA CARTA
20 de agosto de 1973.
Rubem,
Espero que dessa vez você receba esta carta. Foram 16, só nesses últimos 3 meses. Ando preocupado, Rubem. Entenda o meu desespero e veja se algum sentimento bom lhe toma o coração. Um telegrama, um telefonema a cobrar, um bilhete, qualquer coisa. A nossa casa anda muito vazia. Meu apetite, meu querido, foi embora no dia em que você saiu por aquela porta. O pó que você tanto tinha pavor tomou conta de toda casa. Nossos amigos quase não ligam mais e, quando ligam, já não perguntam por onde você anda.
A louca da Soraia me disse, outro dia, que andou sonhando contigo. No sonho você sempre aparece sorrindo, camisa aberta e feliz. Mas me diga, Rubem, como pode ser? Como alguém estaria feliz enquanto tudo aqui são ruínas?
Sua mãe não vai bem. A pressão continua subindo e as visitas ao médico aumentando. Mas eu sei que isso atende pelo nome de tristeza. E disso eu conheço bem. Estou mal, seu ingrato, muito mal. Essa tosse que não passa, a garganta que guarda tanta coisa para dizer. Um grito. É isso.
Já a dor, essa você me deve como pagamento. Não. Não se trata de uma ameaça. É um juramento. Porque para ela, não existe tratamento. Você sabia que quase já não saio mais de casa? Pois sim, tornei-me um moribundo, Rubem, a procurar pelos cantos alguma pista sua dentro das gavetas, embaixo dos móveis, em algum livro do Poe. Em troca, a minha esperança se esvaindo pelos ralos, moeda fraca, feito música com a melodia trocada, disco ruído, janela que não abre.
Não me reconheço em frente a esse velho espelho que ainda mantém a marca do teu polegar direito. A me lembrar a todo o tempo, que talvez não haja mais tempo para tanta infelicidade.
Se ainda insisto, é por tua mãe. Que a coitada já tem idade suficiente para dizer não à saudade. À maternidade. O que falta a ela, Rubem, é apenas coragem. A mesma que faz destas, as últimas palavras que dirijo a você.
Passe bem.
Teles.
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Gabriela Kimura nasceu em 1973, na cidade de Ourinhos, em São Paulo, e mora na capital paulista desde 2005. Formou-se em Produção Editorial e publicou seu primeiro livro, Dona Estultícia, em 2006, pelas editoras Alaúde e eraOdito. Participou ainda da antologia de contos Doze, pela editora Demônio Negro, e do projeto Portfólio, do Itaú Cultural. Colabora com revistas e sites de literatura e trabalha com revisão e produção de textos, além de (tentar) manter o blog http://oplayground.zip.net. E-mail: gabrielakimura@yahoo.com.br. |