ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

OCO

 

Geraldo Lima

I.

um feto indesejável, um tumor maligno, um grito que incha até chocar-se contra o  muro do peito, os nervos, os ossos, a carne tépida, o grito de dor, de asco, de náusea querendo  retalhar a cara insossa da noite com a navalha da angústia,  lata de cerveja na mão, pálpebras pesando toneladas, chumbo, manganês, arenito, vou por entre as entrequadras, ela abriu a porta do apartamento, decidida naquela noite, adeus, desceu as escadas com a mala de roupas, cosméticos, revistas, algumas jóias, bijuterias, eu ouvindo o som do salto do sapato decrescendo, sumindo, evaporando-se embaixo da marquise, sob um céu crivado de estrelas, a lua cheia navegando entre rascunhos de nuvens, Leda, Leda, como pode partir numa noite assim, veja a Lua, maravilhosa Lua, dá até pra ver São Jorge espetando o dragão, Leda, vamos andar no parque, olhe pro céu!, não volveu a cabeça, tão decidida,  e eu pensando: não tem nenhum objetivo em mente, lugar algum aonde ir,  vai perambular pelas ruas, talvez entre num café e se arrependa em meio ao incêndio das conversas, se sentirá sozinha, à meia-noite tocará a campainha, vencida, abro os braços sem rancor, sem nenhum  laivo  de vingança, sou todo alegria, meu amor, meu amor, os olhos boiando numa poça d'água salobra, no bar, onde me refugio, o álcool, a nicotina, a coisa gosmenta inchando dentro, nas entranhas, nas entrelinhas, sufocando, ar!, o céu bonito, ornado com pencas de estrelas, eu nem devia  estar triste, me sentindo tão fodido, olha o céu coalhado de estrelas, porra!, estrelas estrelas, de que me servem? se uma ao menos caísse sobre mim, cadente, decadente, eu, só uma massa de pastel distendida sobre esta calçada suja, esburacada, aqui mesmo  a  minha  cova, a paz, o descanso eterno, sem nênias, coroas de flores, orações fúnebres sob uma garoa  gelada, você não sabe o que quer da vida, vou cuidar de mim, olha só o meu corpo, acha que vou me acabar feia e gorda assim?, peguei a lata de cerveja no congelador, geladinha, tec!, dois goles seguidos, sôfregos, procurando uma ou duas palavras para rebater os golpes vindos dela, da sua língua-metralha, onde estavam as malditas palavras?!, torpedos, lâminas, armas que ferissem de morte o inimigo, vou te deixar, está me ouvindo?, vou cuidar de mim!, a lata de cerveja secou,  a última!, restou  a saraivada de palavras me atingindo em cheio, bem na testa, bem no peito, bem bem, eu buscando duas ou três palavras que me salvassem do mutismo, do não-tenho-nada-a-dizer, merda, cinco anos de guerra conjugal e tudo acabando assim, o cara trouxe a carteira de cigarros, dois blocos de gelo no lugar dos olhos, eu poderia até gritar, crápula, não vê que estou sofrendo?, que custa botar um pouco mais de humanidade nesses olhos de capitalista infeliz, aí, o dia todo contando as moedinhas, as notas de cinco, de dez, controlando a maldita fortuna que teima em não chegar, minto?  ah, você está sofrendo? mas quem é que não sofre neste país de bosta? hein, me diz, seu imbecil!, a saraivada de palavras, o murro no balcão,  no meu peito, o cigarro atravessando o trecho turvo, a vida breu, o corpo-nau  sem vontade de atracar, chegar a lugar algum, o sítio arqueológico da utopia, da felicidade, e ela deve estar tranqüila agora, sentindo-se livre, uma nova mulher, um horizonte inteiro à sua frente, me esconjurando, me pondo lá embaixo, no limbo, não vale nada, perdi uma boa parte da minha vida com aquele traste, e eu nem por perto para me defender, colocar o pingo nos is, repartir eqüitativamente os débitos desse caso, o condomínio atrasado, o aluguel prestes a vencer, os sonhos falidos, o cigarro e a lata de cerveja varando a penumbra, sem Cruzeiro do Sul, sem alma, na lama, indo indo, sob escombros, descendo escadas até o centro do nada, o quase-inferno, mendigos revirando contêineres à procura de restos de comida, dando risadas, bêbados bêbados.

 

II.

a palavra descarnada é tudo o que me resta, faca cega, prego rombudo, e não há mais aquela noite tão decantada páginas atrás, a lua navegando entre rascunhos de nuvens, pencas de estrelas, resta o dia claro, duro, cínico com o seus contêineres alimentando a fome dos mendigos, resta a lógica louca do cotidiano, automóveis, celulares, resta, pensa que vou voltar, que não sei pra onde vou?, duvidei, e ainda agora espero, nem posso crer que tenha realmente tomado um rumo definitivo, que tenha traçado, ao final da guerra, um novo mapa no qual não figuro em ponto algum, vou riscar você do meu mapa, falo sério, e eu nem cri, depois de tantas brigas, tanto vou-sair-por-aquela-porta-e-não-volto-mais, pensei, puro blefe, ela sai, mas amanhã estará de volta, o amor renasce em dobro, varamos a noite transando, recuperados os gemidos de antanho, o gozo, a carne rejuvenescida após tanta carnificina do espírito, Leda, a ferrugem corroeu o sentido nupcial do nosso amor, lembra?, a essência, o equilíbrio acima de tudo, sem ternura, jamais!,  deveríamos ter chegado ao extremo de selar esse pacto com sangue? o bar onde me refugio, fumaça, cerveja, o cara de olhos gelados esperando a fortuna matreira, ingrata, tanta dedicação assim merece uma recompensa, das nove da manhã à meia noite, senão mais, agüentando toda espécie  de  bêbado,  ela  simplesmente  abriu  a porta e se foi, entende, cara?, se foi!, e já se passaram três semanas, nem mesmo um telefonema, o que você acha, hein? já arranjou outro, não estou certo?, ele ouvindo, ou fingindo ouvir, cera nos ouvidos, gelo nos olhos, é o seu escudo contra essa merda toda de sofrimento, de corneação, dia seco, a ternura por um fio, resolvi andar no parque da cidade, sem lua, sem nada, fazer uma longa caminhada, mais com a esperança de dar de testa com Leda do que manter a forma, oi, mas que coincidência, pois é, como vão as coisas?, bem, bem, nem uma ruga de sofrimento no rosto dela, sinal de que a liberdade  está lhe fazendo muito bem, vejo que  rejuvenesceu, quanto mal eu lhe fazia!, parece tão feliz, pluf!, a nuvem nefasta se evapora, estou sozinho na pista, loucura pensar que a encontraria aqui, no domingo, no Eixão, a caminhada solitária sob sol intenso, entre patins e bicicletas, nada, nada, a mesma busca em vão, a mesma bosta de esperança,  loucura pensar que a encontraria aqui também, neste exato momento, talvez malhe em alguma academia, ou relaxe num spa, quiçá esteja num motel, numa banheira de hidromassagem, os pés tocando a carne morna de outro homem, canalha! canalha!, filho, esquece, esquece essa mulher, esquece tudo, comece do zero, você precisa é se encontrar, saber da tua alma, um artista sem alma é nulo, essa mulher só te fez mal, nunca te deu segurança, mãe, mãe, isso é implicância de sogra, a voz materna migrando de algum ponto da cidade até os meus ouvidos, andando comigo no parque, entre patins, malhas, óculos escuros, entrando comigo em todos os inferninhos, mosca maldita zunindo dentro do meu ouvido, resvalando entre o martelo, a bigorna e o estribo, a Leda não  sabe  o que quer e você, ah, meu filho, você precisa se decidir, encontrar o seu rumo, o seu estilo, quer ser como o seu pai, que não foi além das obras dos outros? tocando sempre a música alheia, poderia ter sido um excelente compositor, ter ousado, mas, peço-lhe que  deixe a alma do meu pai descansar em paz com seu saxofone, entre querubins e arcanjos, ou no inferno, talvez, tocando blues, papeando com Robert Johnson nalguma encruzilhada em chamas, felizes à beça, Me and the Devil was walking side by side, o velho músico que viveu só para as músicas de Pixinguinha, de Cartola e para o blues, o blues, compreende, filho? não há nada mais belo que isso, mais nervo exposto, me apresentando a essa dor ancestral ali, na sacada do apartamento, terceiro andar, um pôr do sol sangüíneo, lindo lindo, os lábios grossos do meu pai em torno da embocadura do instrumento, vibrando a palheta, as bochechas infladas, lembrando um pouco Gillespie, quase chorei quando a música  penetrou sofrida os meus ouvidos, e dali em diante nunca mais fui o mesmo, avanço para a tela, o pincel ensaia um movimento febril, nervoso, pinceladas furiosas no branco, o vermelho insurgindo-se na vertical e na horizontal, um grito violento, insano, mas me contenho, o suor marejando na testa, recuo até a parede, acuado, caio de joelhos, derrotado, um penitente, abandono a paleta sobre o piso, tudo não passaria de gestos inúteis, repetição, repetição de  experiências estéticas cujo sentido ultrapassa os horizontes da arte,  e o meu gesto não alcançaria nem um terço da essência dos gestos paranóicos, angustiados de Van Gogh, ergo-me decidido, o ego à míngua, mas  algo precisa ser feito, urgente, me castrar? me silenciar definitivamente? avanço e  esmurro  a  tela,  vazo-a com a fúria da mão, a lâmina-mão, oca, violentada,  o não-ocre, o não-verde, recuo, o suor goteja da  testa, a camiseta ensopada, miro a tela, o oco, a obra está pronta, o conceito, a dor expressa com sinceridade, extrema, mas ainda não é isso, merda, merda, e Leda, no limiar da porta, voltou-se e lançou sobre mim um olhar que até agora não sei se era de desprezo ou piedade.

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Geraldo Lima nasceu em Planaltina (GO) em 1959 e vive em Sobradinho (DF). É professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Publicou os seguintes livros: A noite dos vagalumes (contos; Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, 1997);  Baque (contos; LGE Editora/FAC, 2004);  Nuvem muda a todo instante (LGE Editora, 2004).  Publicou textos nas seguintes revistas eletrônicas: Messaginabotou, nº 01 (www.messaginabotou.net); Bestiário, nº 16 e nº 22 (www.bestiario.com.br); Famigerado, nº 02,   nº 04 e nº 05 (www.famigerado.com).  E-mail: gera.lima@brturbo.com.br 

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