ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

 O OVO ENCALACRADO

Hudson R. Santos

 

                                                                            A lua é habitada por ovos.
- Clarice Lispector

Agora é um ovo delicado, tenro, humilde,
e não tenho medo, e sinto pena dele, quase ternura  

- Caio Fernando Abreu

 

Às duas da manhã encontro o ovo sobre a mesa enquanto desfila a monótona e gélida chuva de setembro. Demoro a voltar a mim, meus pensamentos vagueiam pelo labirinto da casca do ovo. Mentalizo acender um cigarro, mas tenho preguiça de buscá-lo no quarto, fico no escuro queixando-me da enorme escada, quinze degraus, absurdo, ave de rapina, escada é coisa de nazista, sento, o dia anterior evapora do calendário, dissolvido, meus olhos ficam mais pesados, mas noite após noite pássaros invadem meus sonhos e juntam-se aos outros em revoada. Os ruídos distantes dos automóveis estilhaçam-se nas notas do piano invisível da chuva. Debruço-me, há orvalho ou lágrimas cobrindo o ovo. Sinto pena do ovo na solidão da mesa, não muita, para poupar energias, as mesas deveriam estar sempre cheias de gente, as portas abertas. Farei-lhe companhia até de manhã, isso não exige muito esforço, temo esquecê-lo se deixar a cozinha.

Os ovos são quase imperceptíveis de tão comuns, nenhuma garota encontra um ovo na praia num domingo de manhã e diz que ele se parece com o James Dean ou o Marlon Brando, isso nunca acontece, por outro lado nenhum ovo sofre o complexo de Édipo, nem precisa trabalhar nas eleições.

Fito-o demoradamente, não porque não possa fazer outra coisa, mas porque isso é cômodo, ele parece palpitar com seu ar bíblico mais ou menos trágico e seu perfil de Al Capone, talvez em seu interior um mago brinque de encantar serpentes ou pássaros e sopre um arco-íris de estrelas entoando canções de lavadeiras se eu quebrar a casca, mas estou fraco para isso.

Parece que todas as coisas ignoradas estão fechadas e aprisionadas num ovo que nunca encontramos. Ovo na geladeira ou embaixo da galinha, aéreo e subterrâneo, na capela ou no bar da esquina, o ovo está em toda parte, o ovo é o mundo, o ovo é dentro da gente.

 

Fico amedrontado sem razão, ébrio de modorra ou sonolência, parece que o ovo tragou sorrateiramente, mas não quero levantar-me e dar a volta na mesa e ver se está escondendo um cigarro, prefiro esperar para ver.

Colombo só chegou à América porque sempre carregava um ovo cozido no bolso, muitas culturas arcaicas tinham-no por: O primogênito, aquele que dava a forma correta ao tempo e espaço, mas eu acabo vendo-o apenas parecido com um cara mais ou menos frustrado, que não bebe cerveja, não ouve Beatles e talvez fume escondido.

A vontade de fumar aumenta, chove mais forte, a preguiça também aumenta, quase letargia, o ovo sempre na dele, sei que se eu fosse até o quarto o ovo ficaria exatamente no seu lugar, não me sacanearia desaparecendo ou transformando-se em cinzeiro, lagartixa ou aspirina. Comovo-me com esse lado humano do ovo, meus olhos marejam-se, quase subo para pegar o cigarro, mas minha preguiça mentaliza a tempo, todas as campanhas antitabagismo que conheço e me faz refletir um pouco sobre a incoerência funcional das escadas.

Apoio os braços para economizar energias, o ovo não parece isolado das coisas e do mundo na solidão da mesa, parece que as coisas e o mundo se distanciaram dele, na solidão de fora, da chuva, da noite. Fico pensando que se um cigarro girasse velozmente, sem parar, não ficaria parecido com um ovo.

Os apaixonados deveriam presentear suas amadas com um ovo, pensei até em um receituário: para os encontros noturnos o ovo deve ter vaga-lumes amarrados em volta, para as indecisas um poema de Camões na casca, para as castas um seio pintado na ponta, em todas as outras situações uma dúzia de ovos fresquinhos, isso comove qualquer um, sem contar que o ovo não vai sacaneá-las também, quando apagarem a lâmpada para dormir, se aproveitando disso para dançar balé de sombrinha ou tocar saxofone com palito de fósforo.

Sinto um cigarro materializar-se entre meus dedos e a idéia de levantar-me e subir a escada e atravessar o corredor e girar a maçaneta e empurrar a porta, desmaterializá-lo. O ovo é quase impossível, um instante substitui outro, o universo incessantemente se mete numa série infinita de mudanças, mas o ovo não muda, nem num átimo, nem em uma hora, nem em um dia, ovo é reacionário, deve ter doença de convicções e verdades eternas, só pode ser adepto de alguma seita fundamentalista.

Talvez se eu subisse rastejando para o quarto economizasse energias, nem precisaria levantar-me, era só jogar-me da cadeira e pronto, mas essa é uma atitude muito suspeita na frente de um ovo, que talvez tenha o péssimo hábito de fumar escondido. O ovo é quase nada, só sabe ficar onde o deixamos, e isso comove pra caramba, é triste pensar que Marilyn Monroe ,por exemplo, jamais escreveu embaixo da fotografia de um ovo: "isso não é um ovo", nem que existiu outro ator como Chaplin para comer um ovo cozido, numa cena, é triste mesmo.

Fecho os olhos para pensar num plano para chegar até o cigarro, sei que o ovo não vai se aproveitar disso para mudar em bula de remédio, camisinha, cigarro ou dentadura, e de repente descubro porque o Salvador Dali pintava tantos ovos em seus quadros, as pessoas veriam simplesmente um ovo e não uma vaca siberiana vestindo terno, o pingo do i visto de Júpiter por um furação bailarino, a revolução francesa segundo a perspectiva das formigas ou um isqueiro que declama poemas em grego.

Elaboro um plano perfeito, porém irrealizável, ligo para um amigo, digo que fui seqüestrado em minha casa e estou em estado de choque, quando ele chegar consigo que busque o cigarro, dizendo que estou paranóico e acho que um seqüestrador esqueceu de ir embora, ou resolveu seqüestrar meu quarto, mas são dez passos até o telefone, uma odisséia, teria que me jogar da cadeira, rastejar e arriscar-me a discar sem olhar os números, pois usaria muitas forças para sentar-me, teria que ser deitado mesmo, com o braço esticado. Poderia também colocar fogo na casa, é simples incendeio a cortina, é mais fácil arrastar-me até ela, e fico esperando os bombeiros socorrerem-me, mas estou com preguiça de verificar se tenho um isqueiro no bolso, seria como procurar o Minotauro num labirinto, a fatigada busca do Santo Graal ou a demorada de um sentido para a vida, não dá, péssima idéia.

Acho que a chuva parou, apenas acho, não vejo necessidade em olhar para a vidraça, meus braços ainda estão apoiados na mesa e lentamente vou abaixando a cabeça para eles, meus olhos parecem uma porta fechada onde alguém fica batendo, batendo, batendo. O ruído distante dos automóveis mistura-se com o canto das sereias que não sai de dentro do ovo, ainda tenho vontade de fumar, mas constato que a cozinha e o quarto estão em universos paralelos, não quero dormir, sempre há pássaros em revoada, quero esquecer que o ovo existe, abrir os olhos e levantar a cabeça para olhar um ovo não tem sentido, mas temo que ele perca seu lado humano se deixá-lo, mudando em aparelho de tv, parafuso ou panfleto de eleição, mentalizo um cigarro voando até meus lábios, aceso, e ouço o rumor dos pássaros no telhado, pousando como chuva.

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Hudson Reginaldo dos Santos, nasceu em 1976, São Paulo. Têm textos publicados na antologia Tempo e Territórios de Diadema e no site Palavreiros.

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[REVISTA ZUNÁI- ANO III - Edição XII - MAIO 2007 ]