ZUNÁI - Revista de poesia & debates

A ARTE DE MORRER

 

Hudson R. Santos

 

O inverno chegou abruptamente e você Alan, contrário às expectativas interrompe seu périplo pelo silêncio e retoma o hábito antigo de vagar pela noite onde rostos flutuantes passam velozmente e escorrem para o esquecimento. Agora sim Alan, você morrerá. Esqueça seus planos delirantes e ouça a voz da razão. Ainda recordo você dizer que gostaria de estar em sono profundo, o pescoço fortemente anestesiado e embaixo de uma guilhotina que baixaria velozmente, isso é bobagem Alan. Recordo suas tentativas de pular pela janela (lembre-se que nunca fui eu a te impedir, eu não Alan). Você quis morrer até com resfriado, queria conduzi-lo a uma serena pneumonia que tornaria mais e mais grave. Quantas vezes parou na rua e perguntou onde estavam os motoristas bêbados naquele instante, Alan, isso faz rir. Em silêncio quantas vezes você rezou para que uma bala perdida encontrasse seu crânio. Quanta má vontade meu caro, quanto tempo perdido. Quem quer morrer Alan, tem que se matar! Agora é comigo, os medicamentos que te enviei serão eficazes, como pedra amarrada no pescoço e lançada em rio profundo (a pedra Alan, nunca mente para a gravidade), como dois tiros nas têmporas, como furos de faca nos pulmões, como chamas cobrindo o corpo e descendo pelas tripas acompanhando o álcool, como dois balaços, Alan, de Winchester dois canos no céu da boca, como a voluptuosa hemorragia nos pulsos quando as mãos são decepadas, mas de uma maneira, Alan, tranqüila e serena e sem uma gota de sangue, a não a de uma possível hemorragia nasal, devido a alta dose de medicamentos, um risco de nada. 

 

Antes de tudo cautela. É necessário completo silêncio sobre o assunto. Um pequeno comentário pode por tudo a perder atraindo excessiva vigilância e uma verdadeira greve será feita para você não morrer. Dissimulação é outro ponto: mostrar apatia, dores existenciais, tédio sem fundo, remorso sem quê, são equívocos terminantemente fatais. Sorrisos cordiais ajudam, mas abraços calorosos e gargalhadas francas possuem efeitos mais enérgicos. É aconselhável ter algumas metas para os próximos anos, como um argumento inconsciente, mas plenamente satisfatório de que você está longe de ser um suicida. Esqueça os antigos amigos, aqueles ingratos que te seguraram quando tentou várias vezes pular pela janela (queria saber Alan, porquê nunca pulou quando estava sozinho? que insensatez!) e concentre-se nos novos amigos que são mais fáceis de enganar, pelo menos enganá-los quanto aos seus planos de morrer por conta própria. Dinheiro é fundamental: o suicídio eficaz é oneroso. Faça reservas consideráveis. É aconselhável banir o uso do álcool e demais drogas “evasivas” que além de trazerem dúvidas infundadas sobre sua resolução são dispendiosas e podem obrigar a que o suicídio seja praticado bem mais tarde, quando talvez perca o sentido. Tão logo tomada a resolução recomenda-se o prazo de um mês para sua realização.

 

Um bom local para morrer são os hotéis – como recomenda também Claude Guillon –  exceto para aqueles que possuem seguro de vida e querem que o mesmo seja recebido por sua família, cuja morte mais eficaz sem dúvida é a simulação de um acidente de trânsito, para o qual ajudam algumas garrafas de destilados. Tente um hotel Alan. Não um bom um hotel, mas um onde as pessoas sejam mais ou menos displicentes, é preciso observar. Não avise ninguém onde estará. Se por cúmulo do azar telefonarem quando você tiver acabado de tomar os medicamentos, será um desastre, as pessoas são obsessivas em darem recados, alguém baterá em sua porta e como não haverá resposta, pegará uma chave na portaria para ver o que está acontecendo e te flagrará em pleno andamento do suicídio. E fique sabendo que anti-vômito não agüenta com dedo na garganta. É muito provável que esse patife te reanime e você tenha que seguir alguns anos com terríveis seqüelas, algumas das quais podem impedir irrevogavelmente o suicídio. Se o córtex motor for afetado por exemplo, você pode perder os movimentos dos membros superiores e inferiores, e então meu caro, quero ver só como é que você se matará. Por isso utilize apenas a dosagem que deixei indicada, exagerar pode ser um mau negócio. Pague dois dias adiantados e minta descaradamente afim de não ser incomodado. Diga que é fundamental que você permaneça sem ser incomodado, e como isso é verdade, diga com veemência Alan. Se encontram seu corpo antes que os medicamentos façam efeito tentarão reanimá-lo, não permita isso. Depois de uma tentativa a segunda é sempre mais difícil. Se quer morrer Alan, é preciso morrer de uma vez. Preste atenção Alan, quando eles entrarem em seu quarto, talvez lá pelo terceiro dia, devido ao seu “sumiço” – preste atenção em como essa palavra é engraçada Alan – devem encontrar apenas seu irremediável cadáver. Se morrer no primeiro dia, ganhará um dia inteiro de segurança no segundo. Assim que combinar os dois dias na portaria o mais correto é subir, esperar algumas horas, pedir um lanche fugaz, reforçar que você não quer ser incomodado e tomar os medicamentos que combinamos em seguida. Não esqueça o anti-vômito, é imprescindível. Não esqueça que a alta dose de medicamentos pode causar vômitos e afastar Tânatos, deixando sérias seqüelas no lugar de uma agradável morte. Insisto em que reforce o estômago com um lanche e o anti-vômito. Não reforce a porta, de nada adianta. Deixe em um envelope as despesas do enterro e um maço de notas ao lado para ser roubado impunemente – lembre-se de que seu cadáver dará algum trabalho – e suas despesas fúnebres serem deixadas em paz. E não esqueça, Alan, a música, ouça uma música que goste enquanto os medicamentos fazem você desaparecer do seu corpo.

 

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Hudson R. Santos é ficcionista. É editor da seção outras vozes da revista laboratório de poéticas. Publicou no site palavreiros e na revista Zúnai.

 

 

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