ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

LÁZARO

Ivana Arruda Leite


Dos 15 aos 33 anos eu achei que fosse morrer podre.
Eu nasci num tempo em que a lepra assombrava toda a gente. Nasci na Lapa, perto do matadouro, onde de vez em quando vinha o pessoal do Sanatório perguntar se havia alguém com alguma marquinha no corpo, alguma região insensível.
Entravam, punham todos sentados na sala e iam, um por um, mandando virar pra lá, pra cá, examinando, pedindo pra levantar a manga da camisa, abaixar o shorts, suspender a barra do vestido.
- Se aparecer alguma marquinha branca ou vermelha, alguma região insensível, avisem o Sanatório. O telefone é esse aqui.
Foi numa dessas visitas que o enfermeiro viu uma marquinha na perna da minha mãe. Olha daqui, olha de lá, põe óculos, tira óculos, levanta, anda, dói?
- Não, nada, nada.
Ele espetou uma agulha.
- Sente alguma coisa?
- Bem de levinho.
- Tá aqui o endereço.
Mandou minha mãe comparecer ao Sanatório com a maior urgência.
Eu fui com ela. Era o filho mais velho.
- Mãe, eu faço companhia pra senhora.
Os dois pequenos ficariam bem com a vizinha.
Quem sabe aquela fosse a última vez que eu visse minha mãe. Quem sabe minha mãe ficasse pra sempre naquele Sanatório que eu só conhecia de longe, dos muros altos que não se enxergava dentro, quem sabe minha mãe fosse morrer lá dentro dos muros altos e eu não fosse vê-la nunca mais. Esta podia ser a última vez que eu andava na rua de mãos dadas com a minha mãe.
Na sala de espera tinha muita gente. Na maioria mulheres. Umas sozinhas, outras com marido, filho. E comentavam enquanto o doutor não atendia.
- E esse aí?
- Esse tá com um sinalzinho no braço.
A lepra assustava a Lapa inteira.
O médico ia chamando por ordem de chegada. Quando chamou minha mãe, ela não me deixou entrar.
- Você espera aqui e se comporta, hein?
Uma mulher gorda disse que tomaria conta de mim.
Não demorou e minha mãe saiu lá de dentro, rindo a boba. Me pegou pela mão, despediu da gorda e fomos embora. Na porta me comprou amendoim torradinho.
Pra minha mãe, a lepra acabava ali. Pra mim, não.
Depois desse dia comecei a ver manchas pelo meu corpo, manchas brancas, vermelhas, azuis, amarelas. Qualquer lugar que eu apertasse não sentia dor alguma. Eu estava coberto por imensas zonas insensíveis na barriga, na perna, no pescoço, no braço. E elas mudavam de lugar, ora estavam na frente, ora nas costas, e elas andavam pelo corpo, e elas aumentavam, diminuíam. Foi quando Ben-Hur entrou em cartaz no Cine Roma.
A molecada do bairro se organizou. Estávamos a espera desse filme há muito tempo. Um primo do Celsinho tinha visto o filme no centro da cidade e tinha contando uns pedaços pra gente. Mas o filme era tão triste e o menino chorava tanto que a gente nem entendeu a história direito.
Fomos em seis.
Eu estava gostando do filme até que chegou a lepra. Daí eu vi o que a lepra faz com o corpo das pessoas, daí eu vi o que a lepra por pouco não fez no corpo da minha mãe e o que ela ainda faria no meu.
Estava ali, na minha frente, o que ia acontecer comigo. O corpo podre cheio de feridas, coberto por um cobertor podre, cabeça coberta pra não assustar as pessoas, um monstro, sem nariz, sem cabelo. Nem na cidade eu podia morar. Tinha que morar numa caverna feito bicho, com outros bichos iguais a mim, todos monstros com a carne caindo aos pedaços, se esfarelando. Eu não podia suportar aquilo. Saí correndo do cinema, correndo e chorando, apavorado. Os moleques não entenderam nada.
- Porque o Nicola saiu correndo desse jeito? Será que ele tá apertado?
- Parece que ele tava chorando, eu escutei uns soluços.
- Esse cara é muito sensível.
- Vai ver é mariquinha.
Eles continuaram lá, devem ter visto o filme até o fim. Eu fui correndo pra casa, sentei num toco de madeira que tinha no fundo do quintal e chorei, chorei muito, chorei a tarde inteira. Quando anoiteceu, o jeito foi conformar com meu destino.
Procurei manchas pelo corpo até os 33 anos. Apalpava aqui, ali, cutucava.
Minha mãe está viva até hoje e goza de ótima saúde, graças a Deus. O único leproso da família fui eu.

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Ivana Arruda Leite nasceu em Araçatuba (SP) em 1951. É socióloga. Publicou, entre outros títulos, Histórias da mulher do fim do século (2000) e Falo de mulher (2002).

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