SANGUINATA
- Ilustração de Sônia Alves
Dias -
João Filho
Umbroso, escuro e grosso, o tempo era esse.
De cachecol Analiz dispensa as azeitonas da
pizza, voz sotaque sussurrante:
-
É rala.
-
A pizza?
-
Não, a trama intrínseca de Uilcon.
-
E o mapa no miolo?
Cuspo caroço, ela:
-
Conduz mesmo ao céu?
-
Não descodificaram céu, descodificaram ouro.
-
És parvo?!
Numa Sanguinata é de bom tom não
seviciar as feminas, penso para dentro. Analiz é sabedora, daí
que ironíssima.
Dou os solecismos da Sanguinata e alguma
nervura da perspectiva:
Nos originais do Um Diário para o Ano 2000
de Uilcon Pereira, um indenominado bibliófilo (desses
enfarados com o tédio filo-pós-pós dos chegados tempos),
tipocodificou um mapa-manuscrito e o alardeou nas alcovas dos
grupelhos. Sucede que o tormentoso trajeto que percorreu os
rabiscos encadernados do inquieto velhinho deu deságüe
ensangüentado.
Analiz ao descrer da figura "céu" não está
sendo maneirista, afetada ou pedante, faz uso dum mentar
próprio livresco, logo, duvidoso. Pois esse suposto "ouro-céu"
que três peritos desventraram das páginas do Um Diário...
poderia conotar signos sujos (espécime raro que leva a outro
infinitamente e que é tesouro apenas para fetichistas), em vez
do vil metal que uma leitura leiga sugere.
Marcel, Perfil-Pigmeu e ProsaRadical, os tais
peritos dedo-escolhidos por M. M. Como essas inicias chegam ao
mapa-miolo põe-nos alertíssimos. Elas, as iniciais, que
custearam as minúcias de achar e descodificar, para tal
utilizaram métodos maléficos.
M. M. é a máscara de si: bochechudo, olho
arregalado, solidão sedentária e, para não escapar do que se
propõe a Sanguinata, era autor. Pior, crido de estilo.
Por mandante e custeador é a víbora que instiga esta empreita
a aguardar seu desenlace. M. M. chegou ao mapa-miolo enquanto
incursionava pelos baixios da Paulista, pagando puta. Vê-se aí
o tendencioso de ditos estilistas atuais - o borralho.
Debruçam lentes, pinças e truques, mas cadê o corpo-nascença?
M. M. era um. Num desses incursos foi ter com D'Umbra, putana
d'alta fidúcia (que como Analiz se diz femina intocável,
veremos). O Um Diário... foi paga do insidioso Sr.
Traça, o inominável (que descaradamente disse não ter mais
pique para caça ao tesouro). Após seus trimensais descarregos
religiosamente realizados com D'Umbra, um elfo de ninfa,
rodadíssima, conhecia proporcionalmente brochuras e caralhos.
M. M. não fez mais que surrupiar o Um Diário...
dopando D'Umbra.
Ao contratar os peritos, ardiloso, um outro
autor de prontidão deixou. Marcel, Perfil-Pigmeu e
ProsaRadical se empenharam, descodificaram e procuraram se
esconder. Como perdeu o mapa? Tobinha, um estoura-tênis, num
traquejo de tímpano pegou M. M. borracho, numa incursão pelos
baixios da Paulista, dar bom-dia cavalo, palrador sem papas
apalpando o volume relíquia e crente dum porvir céu-ouro.
Tobinha, na treição o seguiu, e na kitchenette,
catou.
ProsaRadical deixou trechos do trajeto:
"Desce degrau, desemboca de cara na Avenida
Paulista o Brucutu-Fundamental Tobinha, nem carecia autopsiar
bolso polpudo oportuno, com o embrulho relíquia sob o capote,
garantido ia, mas na fissura da facilidade fez cata numa calça
frouxa de bunda burguesa - meteu quatro dedos e saiu de
pinote. Porém, Tobinha, bufa-pinga, pelanca-e-osso, topou
tranco ao quebrar a esquina e por triz não atravanca a
travessia. Ia de avião na jogada. Mas postado lá, Marcel, no
proveito esfaqueia Tobinha, sobraça o embrulho relíquia e se
manda."
Do método maléfico de M. M., ProsaRadical foi o
atropelo. Não o primeiro, aclaro:
O pneu-pasta-Pasolini que um bofe
vida-imita-arte fez com carro. Tal qual desfigurado ficou
ProsaRadical. Segundo a perícia berros foram testemunhados,
mas moucos por desdém a rara vizinhança ignorou. Não ignoremos
outros trechos dele:
"Esfaqueado Tobinha, Marcel sucinta, sabe o
relicário que leva. Perto onde habita dá ouvidos aos seus
hormônios e se envolve com o autor-michê deixado de prontidão
por M. M. que, perceberam ou não, depois da paga da
descodificação está a se livrar dos peritos. O fingido puto
seduz Marcel, se adentram no ap e boa-noite Cinderela nele.
Fez o ungimento."
O ungido foi Marcel. Nua, enroscada em
mim, Analiz chorosa debulha, pois amava Marcel:
"Nascido cabeçudo e feio num sertão-sertânia
era autor de livrinhos pseudosemióticos de extração
publicitária com resvalos eruditos. Sua gay-gaiatice propagada
era propaganda. Sei que sua solitude não se esgotava no outro.
Digo isto, claro, depois de aprofundá-lo. Do que sei há
algumas reservas como temos todos. Gramou na santiputificada
megalópole e se orgulhava disso. No início, como você diz,
ganhava o cala-boca, mas Marcel era vivência vibrância, isso
percebi quando, após longos contatos virtuais, nos deparamos
numa roda enfado acadêmica. Marcel, no entanto, foi faísca
ali, e sua poética possuía a dança. Sua prosa era seu corpo
inteiro. Encontrá-lo era dádiva. Figuraça..." Lambo seus
lábios e lágrimas, Analiz, ronrona e mais se enrosca, "lembra
quando estivemos no seu ap e ele tripudiou de seu colecionismo
miniatural, dizendo: homossexual tem cada esquisitice?"
Colamos. "A perícia nos deu este laudo: por michê seduzido a
vítima foi completamente imobilizada de quatro e azeite em
fervura milimetricamente derramado no ânus", Analiz soluça. "A
sua prosa-dança ele trouxe da experiência teatral
em Recife. Mas,
ai, meu amor era promissor e promíscuo, inconciliáveis," em
sua cama.
Marcel, azeite anal embebido, cato o embrulho
relíquia, já não sou o irrevelado. Dos peritos, Perfil-Pigmeu
era chegado e único conhecedor do meu decurso, vou vê-lo. Mal
entro no seu muquifo, desmaio. Malhado, hirsuto, voz lisa
contradizente com sua aparência de espião russo - era este o
resumo de Perfil-Pigmeu. Irmão em armas, mas ambicioso.
Derrubou-me somente, não me desencarnou. Sabido da trilha do
Um Diário para o Ano 2000 do Uilcon pôs-se a
praticá-la. Desacordado fico.
Relendo agora revelo um paradoxo ou erro na
feitura da Sanguinata:
Já tendo estado no ap de Marcel como
enganá-lo como autor-michê? Sabemos que um paradoxo só se
resolve dialeticamente, nunca de fato. Foi o que fiz - fingi.
Trecho de ProsaRadical:
"O Brucutu Fundamental Muguegue, pose de
prosódia falhada, melaço como as matérias marrons do seu
jornaleco. Acende careta, no poste encostado, espera. O
tempo-mofo é o mesmo - umbroso, escuro e grosso. Garoa e ele
manudefende a brasa. Perfil-Pigmeu acoitado mira-o. Decifrador
do Um Diário... ele sugaria de Muguegue umas
indulgências - aguçou no tal o animalesco: buça e grana, o
prosódia-província comeu.
M. M., sôfrego, fareja o trajeto do mapa-miolo
e aguarda.
Muguegue faz menção de ir, Perfil-Pigmeu
desacoita-se e ruma. Diz:
-
Preciso de papelada.
-
Qual?
-
Exílio.
-
Onde?
-
Não lhe diz respeito.
-
Nada feito.
Nisso M. M. rifla silenciosamente os dois, no
quengo."
Arrasto-me pra fora do muquifo de Perfil-Pigmeu
e vou tê-la. O que me acompanha desde cedo? Toda
catita, Analiz interroga, o medo. Quem comigo vai não
deve deduzir que estou sendo dessultório. Evite o ócio
colonial e verás que a intriga não peca por incongruência.
Analiz desconhece que o autor-michê, o pneu-pasta-Pasolini,
etc., sou eu. Pervago a pista dos envolvidos e sei onde achar
o Um Diário...
M. M. em sua kitchenette desenrola o mapa-miolo
e raivoso range os dentes.
Por quê?! Analiz atinada ironíssima no primeiro parágrafo
razão teve: é um signo sujo e os peritos apenas salivaram pelo
fetichismo do tomo, e deram a crer que levaria ao céu-ouro.
Mr. Traça logrou nos desavisados o ilusório do vil metal. M.
M. foi um.
Sendo autor também desejo os manuscritos do
velhinho Uilcon e interfono pro meu empregador. Subo, entro e
vou esbofeteando o desgraçado. Mas tardei. A femina Analiz
desencaminhou sedutoramente o bochechudo que babava ao vê-la.
Ao visitá-lo pegou o mote dessa Sanguinata. Trespassei
às bochechas com perfuro-cortantes achados na kitchenette.
Debatendo-se qual suíno na sangra M. M. reclamava o dito
estilo que cria ter. Acharam-no bochecho-espetado.
Seu riso raiado num boteco focalizo. Analiz,
marmanjos a cortejam. Chapada, dócil encaminhei pro ap.
Acamei, amaciei, das tetas os piercings num puxão! rasguei. A
si ela veio, pus de bruços, travando os braços, inquiri:
-
Cadê? Esganada nem relutou:
-
Sob o colchão.
Apanhei o Um Diário... enquanto duas manchas
sanguíneas se expandiam na cama.
*
João Filho
nasceu em Bom Jesus da Lapa em 1975. Participou das antologias
Os Cem Menores Contos, Ateliê Editorial, organizada por
Marcelino Freire; Contos Sobre Tela, Edições
Pinakotheke, por
Marcelo Moutinho; Terriblemente felices. Nueva narrativa
brasileña, Emecé Editores, organización, traducción y
prólogo Cristian De Nápoli, e 35 segredos para chegar a
lugar nenhuma, Bertrand Brasil, organizada por Ivana
Arruda Leite. Em 2004 publicou Encarniçado, pela
editora Baleia. Participou dos Rumos Literatura Itaú Cultural
em 2004 e 2007. Mantém o blog:
www.hiperghetto.blogspot.com
*
Leia outro conto
de João Filho.
*
Sônia Alves Dias,
nasceu em São Paulo (1972) . Estudou Artes Plásticas na Escola
Panamericana de Artes. Participou em 1998 do grupo Vinte e
Sete + Um em NY e da coletânea Eis Poesia na
cidade do Porto (Portugal) com o conto "Safra Amarga".
Atualmente, é escritora anônima de cartas alheias e cuida de
um pé de trevo com várias folhas. |