ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

CLAROSCURO


José Geraldo Neres

 

O sangue baixava pelo morro e os anjos a procuravam, mas os cálices eram de vento e ao fim enchia os sapatos.

- Federico García Lorca

A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos.

- Mia Couto, do romance Terra Sonâmbula

 

Toda a noite combato um anjo - na sombra de um exército estéril - poucas lágrimas, poucas palavras. Nos olhos uma dança coral com secretos demônios. A fragilidade humana. O canto de sangue caindo fora do tempo. As horas, entulhos do tempo rodeado de serpentes.

Na caverna de uma música perdida - minha boca se encontrava com as notas cortadas de toda poesia andaluza - corpos de pele exaltada nos mistérios que torturam o vento. São olhos, lábios que presidem os espelhos, vivem nas águas do silêncio.

Nas portas do pátio de sua alma - com golpes de ira - dançaremos com Cronos. A boca guiará seus passos ao naufrágio. Boca de preces e bênçãos, e na minha cintura o fogo dos deuses exilados. Oh senhor, e em mim só cresce o deserto a que me condenaste!

Sou o corpo do menino que desafia o sol e entra no escuro bosque com as ardidas naves do verbo proferido pelo desejo do outro que fui. Sou o vôo dos anjos sem palavras, e que agora cantam a canção do esvaziamento. Na pálida dança (o único vigia, a última testemunha do inferno), a mão a guiar esta sombra que a morte não presencia. As aves vão migrar noutro coração e as flores são as aves que agora me abandonam - os crucifixos dos meus olhos. Passo de dança que não atinge o presente! Serei eu, um espectro? Ou a grande voz do deserto que cresce?

A TRAVESSIA DOS ESPELHOS

Corre na beira do abismo. Na sombra do sol. Mergulha em direção a um punhal. É perfurado. O perfume selvagem escorre pelas mãos (uma de cada cor). Elas abrem um pouco mais o coração. A sombra entra, e doze pássaros saem do peito. Uma melodia no deserto. Envolvo-o. Joplin bebe o líquido vermelho das palavras. A voz move-se pouco a pouco: no peito, na sombra, no punhal. Os quatros ventos alimentam a melodia. Atravessam os espelhos. Seus olhos. Duas línguas buscam o seu dorso. Descem por suas pernas. Tocam o abismo, e voltam. Nas chamas do espelho: o corpo - pétalas, suor - o jardim asteca: canta. Dentes afiados. O grito na doçura dos pesadelos. O ritmo das janelas, de todas as janelas submersas no relógio. Duas línguas; olhando uma para outra. O sangue da noite. A dança da noite e seu suave barco. Nas pálpebras a verdade dos deuses, e os doze pássaros no ventre. O deserto caminha. Joplin se espreguiça nos seus braços. Desaparece no calendário. A tempestade chega. Meus olham dançam. "Summertime, time, time, / Child, the living's easy. / Fish are jumping out" Summertime - Janis Joplin

QUANDO O VERDE DOS TEUS OLHOS

A estiagem prolongou-se levando o brinquedo preferido. O Mandacaru alimenta e fere os olhos verdes da inocente infância. Lágrimas secas rolam de semblantes amarelos. A esperança é uma nuvem d'água, mas essa migrou para um povoado distante.

O alazão voador está aprisionado no solo ressequido, seu olhar pede um pouco de carinho - não consigo mais sonhar.

Meus amigos brincam de esconde-esconde, uns na jardineira engolidora de pais e, enquanto aos outros, a fome fechou os olhos.

Zezinho e Antônio são companheiros de caminhada para a escola - e esta é nossa única sombra de um futuro melhor.

Na volta da aula uma momentânea alegria me acalma. Perco-me propositadamente de meus colegas e sigo Ana: flor que nunca vi, a estranha e mais bela nestes sertões. Seu perfume é só meu. Para minha sorte, eles a ignoram.

Nossa caminhada é prazerosa, embora o tempo imponha seu curso impiedosamente: sol, mugido de gado extinto.

Ana me carrega e seu sorriso brilha como uma manhã nunca vista. Promete desvendar-me seu segredo, assim que chegarmos em sua morada. O caminho parece diferente, as aventuras ficaram para trás.

Debaixo de uma grande árvore, com galhos de folhas mortas, ela revela de forma enigmática:

- Voltarás a sonhar. O teu caminho será verde. O céu te dará asas. Amanhã não voltarei.

Naquele dia de setembro, como em muitos outros dias do ano, Zezinho e Antônio foram à minha casa. A notícia dada por minha mãe não os assustou, fazia parte do cotidiano da região:

- Ele só esperou a primavera, parece estar sonhando.

O silêncio apoderou-se de meus amigos e assim se retiraram de casa.

De volta à peregrinação, Antônio acrescentou:

- Aquela flor que ele segurava, eu nunca vi aqui no sertão.

EPISÓDIO

Metal impuro, medalhão da sorte sem poderes ocultos, moeda cunhada nos tempos do sofrimento. Estas foram as primeiras hipóteses para descrever o objeto que estava cravado entre os dedos daquele incógnito ser na angustiada mesa de necropsia.

Ele fora encontrado no cume da montanha [ironicamente denominada Paraíso]. Ainda não atingira a idade do lobo.

Concluídos os primeiros exames, tentava eu montar o quebra-cabeça do devorador de minha tranqüilidade. Não saí da primeira peça. Nenhum indício de sua morte, os órgãos internos estavam perfeitos, o que era incomum para alguém de sua idade. Uma luz artificial refletiu-se em meu rosto e o Senhor das Dúvidas percorreu-me o corpo. A moeda abandonou seu hospedeiro, furtando-me a concentração nas análises.

A ampulheta é invertida. As runas traçam diferente destino. O vento noturno conduz a uma estranha sensação; estou na montanha Paraíso. Solitário. Vestígios de sanidade. Abruptamente o cenário é invadido por outra criatura, mas ela não sente minha presença. Senta-se em posição de lótus, parece admirada com o horizonte. Num movimento angelical, ela retira um objeto circular de suas entranhas. Olha-o e seu semblante transforma-se. Grita e atira furiosamente o objeto montanha abaixo. Vira-se para mim: olhar vago, um quê de decepção. Chove. A chuva cobre seu corpo num lamento. Uma gota rubra remete-me à cena inicial: [Metal impuro - Forja mestra de almas, invento impondo sua cadência, arquitetando o cotidiano, monarca das ilusões. Sou servo banhando-me em espelhos de lágrimas]. Permitiram-me o sol, mas há dias não sinto sua luz.

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José Geraldo Neres (Garça - SP, 1966). Produtor Cultural, poeta/escritor, roteirista, dramaturgo, co-fundador do Grupo Palavreiros (escritores/poetas sediados em Diadema/SP), arte-educador, atual coordenador de Comunicações e Webmaster do site PALAVREIROS. Co-editor da revista eletrônica Poética Social. Redator do Portal UBE - União Brasileira de Escritores. Assessor de Literatura da Secretaria de Cultura do Município de Diadema.

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