AVENIDA
BRASIL
Júlia Debasse
Uma garota distribui panfletos
ultracomunistas na Avenida Brasil, em seus dedos ela veste
anéis que pertenceram a uma czarina russa que durante a revolução
fugiu com um príncipe judeu da Galiléia e os dois se refugiaram
na pequena casa de um padeiro francês que fabricava farinha
em um velho moinho que à noite servia de cenário para os encontros
secretos de dois jovens amantes parisienses, e foi lá que
eles foram assassinados por um ladrão assustado que nunca
mais conseguiu dormir e que ao ser enforcado deixou sua amante,
uma cigana que lia o futuro, grávida de 7 meses. Ela deu luz
a uma criança cega que tateou pelo seu mundo de trevas até
se casar com um chefe de polícia inglês corrupto que aceitava
propina de uma dupla de contrabandistas italianos que eventualmente
se esconderam em algum país abaixo do trópico de câncer onde
conheceram um mendigo que implorava por gorjetas pelos seus
atos inconcebíveis, até que finalmente ele bateu de cabeça
na sarjeta e estrebuchou em uma performance que foi assistida
apenas pelo seu fiel vira-lata que uivou por 49 horas seguidas
e depois saltou em um ônibus aonde foi carinhosamente adotado
por um senhor de 62 anos e a sua respeitável senhora, que
estavam a caminho da respeitável cidade de São Paulo onde
encontrariam sua filha, uma garota de olhos caipiras embaçados
que estava casada com um anão gago que era um influente sociopata
e trabalhava como jóquei no hipódromo local, de onde foi despedido
depois de um incêndio pelo qual ele foi culpado mesmo que
todos soubessem que a verdadeira culpada era uma velha cujo
marido havia pago por grande parte das reformas nas arquibancadas
da onde um velho jogador assistiu seus últimos centavos evaporarem
no suor de um cavalo fraco que cambaleou até a linha de chegada
e morreu aos pés de um poderoso executivo que fumava um charuto
Monte Cristo e soltava cada baforada contra o rosto de sua
jovem esposa que contava os segundos até o último suspiro
dele e finalmente cansada de esperar contratou os serviços
de um matador de aluguel que retornou mil pratas mais rico
para casa onde sua amada aguardava a grana que nutriria o
seu vício em champanhe, e os dois beberam taças de ponta-cabeça
e cuspiram da sacada acertando um homem que corria para a
estação de trem com um guardanapo cheio de números em sua
mão esquerda, ele resolve pegar o metrô e desce pelas escadas
passando por um homem negro e barbudo que toca um saxofone
prateado que reflete a imagem distorcida de uma criança que
berra o nome de sua mãe a plenos pulmões até ser abordada
por um policial gentil que, com um sorriso branco, se abaixa
e acalma o menino com as mesmas palavras que ele ouvira de
seu pai antes de ele dar no pé com uma mulher 20 anos mais
nova e agora, vinte anos depois, ela vende rosas de plástico
no Saara e um homem velho compra 14 dessas rosas e as entrega
a mulher que ele tem amado por 40 anos enquanto sua esposa
escreve um bilhete de despedida que ela entrega ao caseiro
que olha para o envelope enquanto o cachorro late alertando
a presença de uma estranha que chora no portão segurando um
telegrama respingado pelos primeiros pingos de uma chuva que
havia sido anunciada pelo homem do tempo que agora se senta
em uma grande cadeira de couro observando as sombras que passeiam
pelas paredes e pelo retrato de uma menina que receberá uma
notícia triste por telegrama e que terá que achar um homem
que passeia com uma mala cheia de notas de 10 pratas que serão
gastas em uma passagem sem volta para Honolulu onde outro
homem observa a chuva que bate na janela depois de acordar
de um pesadelo no qual seu filho caçula fugia de casa e era
atropelado por um carro de bois, mas foi só um sonho e ele
vai até o quarto do filho que de fato passeia ileso pelas
ruas até se deparar com um bar aonde uma garota bebe uma taça
de vinho barato e contempla o noticiário na TV que narra a
estória de um senador que lavava dinheiro em um banco no Rio
de Janeiro onde, neste exato minuto, um garoto vestindo uma
camiseta com a imagem de Che Guevara observa: uma garota distribui
panfletos ultracomunistas na Avenida Brasil.
*
Julia Debasse é compositora. Não se incomoda em ser carioca,
mas acha que podia ser qualquer outra coisa. A moça também
escreve contos, poemas e pinta.
Para ler: www.juliadebasse.blogspot.com
. Para ouvir: www.psicotronica.com.br
. |