HÁ UM ABISMO NOS CANTOS DO MUNDO
Lucélia Majistral
Eu estou correndo pela praia e não posso parar nem olhar para trás ou para os lados enquanto as ondas arrebentam como se quisessem empurrar a terra para longe. Há um abismo nos cantos do mundo e não me interessa que o universo seja redondo, curvo, infinito, que o universo esteja se expandindo, se eu estou no universo ou é o universo que está em mim, encolhido aqui dentro como um feto, um tumor. Eu ouço os passos e a respiração dele, e é quase como se o ouvisse sorrindo assim por dentro, de si para si, porque ele sabe, é questão de tempo, meus passos cada vez mais incertos, o cansaço embotando as minhas vistas como se a noite caísse sem aviso, única e exclusivamente para mim. Há o momento em que a brincadeira não se parece mais com uma brincadeira, o escuro dos olhos descolorindo o resto por um instante, como se perder o controle fosse uma questão de escolha. Não posso ver os olhos dele enquanto corro, porque corro, mas este é o momento, a nítida impressão de que ele me fará muito mal se me alcançar, quando me alcançar, e eu sinto o pânico crescendo no escuro feito as unhas de um defunto, em silêncio. Eu não digo nada, apenas corro, e ele também, as ondas arrebentando com mais força, ou talvez eu tenha me aproximado da água sem perceber, e agora ou serei alcançada por ele ou pelas ondas. Sigo correndo como se houvesse salvação, como se correr fosse me salvar de alguma coisa, como se a qualquer momento fosse vislumbrar uma porta aberta e entrar por ela assim, num mergulho, e estar salva, e ele não, perdido correndo em direção à água porque eu já não estou, estaria: suas mãos nos meus tornozelos, e eu caio sem forças para me desvencilhar, continuar correndo ou sequer gritar. Eu não vejo os olhos dele para saber se é a sério ou o quê.
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Lucélia Majistral. É psicanalista e, desastrada, passa o dia pedindo desculpas. Nascida em Curitiba (1977), mudou-se para São Paulo ainda criança. Nunca foi a Pinheiros. [lumajistral@gmail.com] |