ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

AVAREZA

Mara Liz

 

Hoje direi que ele é sempre bruto comigo, amanhã que estou com uma dor de cabeça pontiaguda, depois resmungarei que minhas costas doem feito tábuas empilhadas, então estarei estressada como nunca, virá a TPM ou para ser mais precisa um mau humor de cão que me empresta um certo charme de deusa-louca-feiticeira; finalmente, ficarei menstruada, o que me dará mais alguns dias, direi até, só para irritá-lo, uns bons 7 dias. As notícias do jornal me deixarão deprimida (por que não?), a comida cheia de temperos da mãe dele me fará mal, ficarei sensível porque briguei inutilmente com o cachorro que solta pêlos em excesso, minha unha preferida quebrará assim do nada, a ex-namorada dele me tirará do sério, terei um inexplicável dia daqueles, a lavanderia sei-lá-o-quê, o supermercado não-sei-o-que-lá, e assim por diante, desculpas para mantê-lo afastado nunca me faltarão.

O fato é que não quero dar, ele não vai me comer, não vai tirar nem uma lasquinha minha. Não vou dar porque não vai dar e ponto final! Nem que eu tenha que.... o porteiro toca desagradável interrompendo meus pensamentos tiranos. Visto toda a meiguice do mundo para recebê-lo.

- Oi, meu amor lindo, tudo bem? Ai, que saudade... pensava em você agora mesmo…

- Ele dá um amasso forte para que eu possa sentir todos os seus pêlos incontáveis e se inclina para me beijar. Entro fundo em seu perfume égoiste que adoro, mas sou forte, ele não vai conseguir chegar lá, aliás não vai conseguir chegar nem perto! Viro levemente a face e pergunto mandona o que ele trouxe para o jantar.

- Sushi, sashimi, saquê e de sobremesa huramaki de chocolate com sorvete. E não esqueci disso, olha só que picante para o meu docinho!

Ele me mostra, entusiasmado, o tubo de raiz forte. Ahhhhhhhh, eu fico louca com raiz forte. Aproximo o nariz e é tão, tão penetrante, que uma lágrima corre feliz para a minha saboneteira direita. Ele chega com a língua para resgatá-la mas sou mais rápida, com o dedo a entrego sã e salva para o vão dos lábios. Ele acha graça e supõe que eu quero instigá-lo. Tadinho! Mas não é que ele acertou bem na mosca! Quem disse que os homens não têm intuição?

- Ai, que vontade... digo com sentido dúbio para provocá-lo, mas só penso em comer o atum cortado fininho com muita raiz forte, que passo como manteiga, mergulho no shoyu e nhac-nhac.

- Também estou morrendo de vontade…

Se eu disser ninguém acredita, mas este ridículo fala a frase acima encostando a língua na minha orelha, assim de levinho, e sussurrando cada letrinha. Quanta petulância! Pois pode fazer de novo que não tem trégua! Pode fazer mil vezes! UM MILHÃO SE ASSIM PREFERIR!!!

Pensando bem, melhor não. Acho mais prudente não arriscar. Vai que eu me entrego sem querer? Definitivamente, nada pode ser pior que isso, nada pode ser pior do que sucumbir por fraqueza.

Livro minha orelha de qualquer resto de desejo, girando o corpo disfarçadamente, e coloco o nosso jantar na mesinha da sala. Sentamos sobre o tapete, eu encostada no sofá de frente pra ele. A saia de feltro vermelho incendeia minhas pernas sutilmente abertas para que ele veja, não com facilidade, a calcinha branca transparente bordada com singelas florzinhas do campo.

Assim que percebe a abertura (quase instantaneamente), mira sagaz para o meio das minhas coxas. Enquanto mastigo o peixinho dente a dente, ele diz que a comida está deliciosa, mas veja só, ele ainda não experimentou nada...e nem vai. Vidrado na calcinha, acompanha o movimento da minha boca. Prefiro não explicar como para evitar de matá-lo de vergonha.

Pego o hashi pingando shoyu e espeto um pouquinho de wassabe na ponta. Passo a pasta verde pelo lado de dentro do braço esquerdo dele e lambo sutil o traçado que contorna a tatuagem de luminária parisiense. Assim que chego lá, ele tenta pôr as mãos em meus cabelos. Levanto a cabeça jogando os cabelos para trás e pego mais um sashimi. Fingindo bem-estar ele serve o saquê. Coloca sal no cantinho e oferece a bebida cheio de intenções segurando o recipiente com as duas mãos grandes, bastante másculas e decididas. Encosto a boca no sal e, propositadamente, babo um pouco. Ele pensa que é uma espécie de deixa e vem impetuoso em minha direção escondendo a mão direita na parte interna da minha coxa, mas eu seco os lábios com a palma e coloco o hashi entre seus dedos atrevidos.

- Será que você já aprendeu a usar direitinho o hashi? Porque da última vez você não conseguiu segurar nem um inofensivo peixinho morto!

- Olha só que tonta, fazendo pouco de mim. Eu só vou deixar pra lá porque você é muito gostosa.

Abro um pouco mais as pernas agradecendo o elogio e mando um beijo pra ele estalando os lábios - tão bobinho o meu gatinho, nhu-nhu-nhu!

- Aliás, hoje você está especialmente deliciosa, e eu estou perdendo a cabeça!

- É mesmo? Quanto?, digo demonstrando interesse zero.

- Muito, muito, muito. Quer ver?, ele indaga, aflito.

- Não! Agora eu quero a sobremesa!, peço determinada.

- Tudo o que você quiser… Come que eu como depois.

Ele me dá o huramaki com uma colher, mas eu dispenso. Vou comer com as mãos porque quero ser provocante e também porque o sorvete está derretendo como estou eu por dentro. Um pingo de chocolate começa a escapar dos meus dedos para o abdômen, mas eu consigo detê-lo. Chupo o dedo médio.

- Nãaoooooooooo!, ele grita em desespero, deixa que eu faço essa delicadeza pra você, deixa eu lamber a sua barriguinha!

Delicio-me ainda mais, não com o doce, mas com o semblante de “pidão” descarado dele.

- Como você é mesquinha!, ele diz quase com dor no coração.

Olho para os seus olhinhos negros que refletem uma megera de varinha de condão e chupo o dedo mais uma vez, mais uma longa e interminável vez. Pisco vagarosamente, depois olho fixo para ele, pisco de novo e quase perco meu pulso num seqüestro violento.

- Me solta, deixa eu terminar de comer em paz!, reclamo com razão.

- Não, cansei da brincadeira, não tem mais sorvete, você já comeu bastante, agora quem vai comer sou eu!

Ele arranca o huramaki da minha mão, pula para o outro lado da mesinha e começa a passar a mão sobre a minha blusa branca, tão branca e pura que o reflexo quase o transforma num boneco de papel. E o meu bonequinho cheio de energia insiste em me beijar à força, quer me ter toda, mas, como experiente domadora, viro o rosto obrigando-o a parar.

- Você é que vai parar e agora! – ele põe toda a macheza da voz tentando me inibir. Segura meu rosto com a mão, com a outra puxa meu corpo para bem perto e me beija fortemente enquanto arrebenta meu sutiã. Mordo a língua dura até sentir a temperatura agradável do seu sangue.

- Que merda! Você nunca quer transar comigo, só fica me provocando! Qual é a sua? Quer que eu perca a razão?

- Pááááraaaa!!!!, grito encarnando rapidamente uma carpideira – é claro que eu não quero transar, não vê que você me machucou toda, você é um monstro, nunca pensei que você fosse cafajeste desse jeito! Você é um típico homem das cavernas, machista, você é um animal, não consegue controlar seus instintos primitivos nem na hora do jantar! Ele me olha assustado não reconhecendo os seus atos. No fundo é um bom garoto, eu sei disso, ele relutou muito, se segurou muito antes de explodir. O problema é que eu não sou uma boa garota! Olho para o chão fingindo medo enquanto ouço a defesa.

- Se eu sou isso tudo que você disse, você é uma super vaca-vagabunda! Se veste desse jeito, abre as pernas pra mim, me provoca o tempo inteiro e quer que eu faça o quê? Fique olhando pro teto? Eu não sou um homem de ferro, ENTENDEU?

Vejo que é chegada a hora da despedida, não vou ficar aturando um marmanjo deste tamanho tendo chilique do meu lado.

- Não, não entendi nada! Só sei que você é um tosco-cabeludo-asqueroso, VAI EMBORA DAQUI AGORA!

Choro sentada no sofá. Ele está puto e sei que olha pra mim pesando os prós e contras da sua atitude. Deve estar pensando que eu estou de TPM, em como sou sensível, que ele não soube sentir o meu momento e blá blá blá, coisas de mulher que o homem contemporâneo é obrigado a entender se não quiser ficar deslocado. Respira fundo, senta no pufe, pega carinhoso em minhas mãos e pede desculpas.

- Não fica assim, você tem razão, eu sou um bruto. Como pude ser tão violento? É que você me deixa louco, olha só pra você com esta sainha, com este jeitinho, com esta blusinha. Me perdoa? Olha pra mim vai, me perdoa de verdade… por favor…eu te amo…

Com dissimulada timidez balanço a cabeça afirmativamente.

Ahhhhh, estou tão feliz por dentro! Mais uma batalha vencida! Ele não conseguiu nada de mim! Não teve nem um gostinho! Ninguém tira nada de mim!

Faço cara de santa e me despeço.

- Tudo bem, pode ir embora, eu também te amo e pode deixar que vou ficar bem (você nem imagina como...)

Esmago um beijo em seu rosto bem barbeado e fecho a porta antes do elevador chegar. Vai que ele muda de idéia e resolve ficar mais um tempinho comigo até eu me acalmar? Pego o hashi, o wassabe e vou correndo para o meu refúgio secreto que só eu conheço, só só só meu. Hoje vou ter uma noite e tanto!

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Mara Liz nasceu em Santa Catarina, morou no Rio de Janeiro e vive hoje em São Paulo. É redatora. Criou vinhetas e campanhas para a MTV, dirigiu clipes e curtas de animação na Conspiração Filmes. Atualmente, é free-lancer.

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