FILHINHO DE PEIXES
Marcelino Freire
Vendo assim não tem quem diga.
Menino como ele, calmo como ele, educado como ele fazer o que fez.
Cadê sua sensibilidade à flor? Onde socou? Ele que sempre foi a própria flor.
Delicado e cheio de amor. Típico pisciano,
romântico.
Nunca fez maldade à mosca. Nunca assassinou uma formiga.
Pobrezinho do passarinho, coitadinha da lagartixa.
Nunca atirou a primeira pedra. Ou a última. Nunca se envolveu
em briga, baixaria do tipo: assim, agora, eu não lembraria.
A pessoa mais amiga e mais compreensiva. Que Deus pôs na terra.
Dos frutos bons que Deus pôs na terra, acredito.
Lembro como se fosse agora, como se fosse hoje o seu nascimento. Dia 20 de
março, há 19 anos. A família reunida e o médico dizendo: é um menino bonito
e grande. Cheio de saúde para todo o sempre.
Para todo o sempre.
Do signo de Peixes. Porra, nunca lembrávamos o ascendente.
Alguém sabe o seu ascendente? O problema talvez tenha sido o
seu ascendente. Por que não pensei nisso antes?
O ascendente.
Há quem diga que Peixes é o "Sanatório do Zodíaco". Vai ver que é isso. Que
outra explicação há para o acontecido? Nesta madrugada, cena
tão horripilante. Não eram dele aqueles olhos,
não eram. Tem certeza que foi ele mesmo? Não houve engano?
A polícia é sempre do contra, não respeita quem vive no mundo
da lua. A polícia sempre acusa a primeira alma fraca que encontra,
é isso.
Não tem sentido.
Logo ele que sempre estudou na melhor escola. No melhor de
tudo. No melhor do melhor. Condições sempre teve de viajar
pelo Brasil e pelo mundo. Fala fluentemente, fluentemente.
Tudo que é língua.
How are you, mother? I love my mother.
Mammy.
Menino cheio de ternura, um
capetinha azul. A coisa mais linda
correndo pela casa, bagunçando os móveis, pedalando as
plantas. Que maravilhoso futuro o aguardava. Nada parecido com
esse futuro, agora.
Que horas são essas? Que horas? Minha cabeça anda tonta.
Tudo é um sonho, um sonho. Um pesadelo de mau gosto. Ele
nunca foi um menino assim, bruto. Assim, desumano.
Deselegante. Desamável, inculto. Muito pelo contrário: ouvia
Beethoven, tocava piano. Nunca gostou de rock. Nunca pôs um
cigarro na boca, bebida, droga de maconha.
Sempre pedia à mesa suco de morango. E um canudo. Consumia um litro
de água por dia. Cuidava da saúde. Sempre dizia: "O
corpo é a casa do espírito. E a casa sempre precisa estar
arrumada e limpa e protegida".
Bem protegida.
Amigo e companheiro como ele não havia. Gostava também de
poesia. Vivia recitando coisas pelo jardim. No computador
ainda pisca um verso assim: "Eu nasci assim capim". E eu
achava aquele verso engraçado.
Enfim.
Dizia também que o Brasil era um país sem cultura. Sem
cultura. Ele ajudava a cultura. Não entendia tanta gente no
olho da rua. Ajudava a filantropia. Quantas vezes saiu
para dar aula no subúrbio? Adorava os pobres. Pelos pobres
era capaz de fazer tudo.
Tudo.
Não quero pensar nisso. Os pobres estragaram o menino, quem
sabe? Alguém pôs um mau caminho no seu caminho.
Não, não acredito. É impossível. Fazer o que ele fez, deve
ter sido a conjugação dos planetas, o movimento da maré.
Alguma nuvem mal que se aproximou do seu signo. A lua
crescente, minguante. A força dos planetas, algum desastre no
céu de março. Mercúrio e Plutão em quadratura.
Não sei onde li isso. De repente, a gente vai lembrando de
coisa muito maluca.
O ascendente dele é Câncer.
Lembrei: é Câncer.
Ouço a chegada da viatura. Outros tiros pela casa. Outros
tiros pela casa.
O estardalhaço que a imprensa vai fazer do caso. O povo à
rua querendo
queimá-lo vivo.
Saiam já da minha porta. Da minha porta. Não deixarei que
façam isso. É tudo mentira. Não existe sangue. Não estou
morrendo, o mundo não está morrendo, ninguém está
morrendo. Estamos todos bem.
Amém.
Venha e abrace sua mãe, hã, hein? Fique calmo, fique tranqüilo.
Este inferno é só um inferno astral.
Meu
filho.
*
Marcelino Freire é pisciano. Nasceu em 20 de março de 1967,
na cidade de Sertânia, interior de Pernambuco. Vive em São
Paulo desde 1991. Escreveu, entre outros, eraOdito,
Angu de Sangue e BaléRalé,
todos publicados pela Ateliê Editorial. O conto Filhinho
de Peixes faz parte da antologia Zodíaco,
a ser publicada pela Nova Alexandria ainda este ano.
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