AO SOM DE DUAS INSÔNIAS
- Ilustração:
Josemí -
Marcelo Tápia
Je sentis ma gorge serrée par la main terrible de l´hystérie.
Charles Baudelaire
Eis que coloquei minhas palavras em tua boca.
Jeremias, 1.9
Só sobrevivo se rio do que é sério.
Anônimo
Naquele dia do mês de março de 1909, Giovanni Pascoli havia
recebido, pela manhã, uma carta que o deixara inquieto. Datada
do dia 19, trazia um conteúdo inesperado, e a resposta a dar
suscitava reflexão, embora não pudesse tardar. Olhando a
paisagem quieta do entardecer, em pé no pórtico de sua bela
casa em Castelvecchio, o poeta sentia um rebuliço interior que
o impedia de pensar com clareza; não sabia se deveria
responder à carta, ou, caso respondesse, se deveria fazê-lo de
modo indefinido ou com decididas afirmações. Optou por
respondê-la com evasivas, cuidando, contudo, de não
alimentar esperanças. A despeito da decisão, não se
tranqüilizou por inteiro, restando-lhe uma espécie de tremor
sutil na mão direita, suficiente para dificultar sua escrita;
restou-lhe, também, um fio muito fino e frio no abdome, apesar
da bebida quente que ingerira antes de se deitar. A estranha
sensação acabou permanecendo em sua noite insone, povoada por
imagens de letras, que se embaralhavam formando nomes, a soar
em sua mente, imersos em versos que não conseguia delimitar, e
dos quais logo se esquecia, numa sucessão de aparições e
perdas.
Longe dali, Ferdinand de Saussure, depois de mais um dia dedicado à
preparação da segunda série de conferências sobre lingüística
geral que ministrava na Universidade de Genebra, também não
pudera dormir, e se dedicava a continuar seus cadernos de
estudo sobre anagramas, sistematicamente preenchidos durante
as noites, até a hora em que o sono o impedia de prosseguir.
Nessa ocasião, com a insônia, o trabalho avançava até um ponto
em que sua vista se turvava e seu pensamento se aturdia, num
misto de sonho e realidade que o tornava ainda mais aflito
quanto à veracidade de suas descobertas; vinham-lhe à mente,
então, a partir de direções difusas, inauditos sons guturais,
enquanto sentia, pouco a pouco, a garganta apertar-se. Uma
breve pausa e alguns goles de água, sorvidos em silêncio num
canto escuro, eram suficientes para que se percebesse
parcialmente refeito, retornando à sua longa tarefa.
Após alguns anos de pesquisa incansável, permanecia a dúvida
primária quanto à própria existência do objeto de sua busca:
apesar do deslumbramento a que se entregara, por reconhecer
tantos anagramas evidentes nas obras que examinava e conseguir
formular as regras que deveriam ter orientado os autores na
realização daqueles feitos poéticos, persistia nele um duro
foco de incerteza, imanente ao seu estudo, que se contrapunha
ao encanto como um gume aguçado, impiedoso, a introduzir-se
cada vez mais fundo em seu espírito. Durante a madrugada, além
do trabalho, ocupava-lhe a imaginação uma possível segunda
carta dirigida a Pascoli, na qual formularia, de maneira
sucinta mas suficiente, a questão crucial que o aliviaria pela
resposta que obtivesse, mesmo que negativa. Lia e relia a
primeira carta enviada àquele poeta, um dos poucos a cultivar
ainda a poesia latina, e tantas vezes premiado no Certamen
Hoeufftianum da Academia de Amsterdã:
Tendo me ocupado da poesia
latina moderna a propósito da versificação latina em geral,
encontrei-me mais uma vez diante do seguinte problema: -
Certos pormenores técnicos que parecem observados na
versificação de alguns modernos são puramente fortuitos ou são
desejados e aplicados de maneira consciente?
Entre todos aqueles que se
distinguiram em nossos dias, por obras de poesia latina e que
poderiam, por conseguinte, esclarecer-me, são poucos os que se
poderia considerar ter dado modelos tão perfeitos como os seus
e onde se sentisse tão nitidamente a continuação de uma
tradição muito pura. É a razão que me leva a não hesitar em
dirigir-me particularmente ao senhor e que deve servir-me de
justificativa pela grande liberdade que tomo.
Caso o senhor estivesse
disposto a receber em pormenor minhas perguntas, eu teria a
honra de enviá-las numa próxima carta.
Saussure iniciara sua pesquisa sobre os anagramas em 1906, e, a
esta altura, já havia preenchido seu 1170 caderno,
além de papéis avulsos; no momento, fazia anotações nas
grandes folhas em que tratava dos poemas latinos de Pascoli e
de outro autor, também italiano e também Giovanni, Rosati.
Seus cadernos continham essencialmente exercícios de
decifração, por meio dos quais buscava encontrar os anagramas
fonéticos que teriam sido incluídos pelos versificadores: um
ou mais versos comporiam uma certa palavra, geralmente o nome
de um deus ou de um herói; ao escutar versos latinos, Saussure
ouvia levantarem-se, pouco a pouco, os fonemas principais de
um nome próprio, distribuídos - acreditava - intencionalmente
e conforme normas definíveis. A cada lance de dados do olhar,
surgia um premeditado arranjo anagramático, a evidenciar a
intervenção do demiurgo, uma inteligência organizadora do
caos, que a sua própria desvendava; divisados em toda parte,
os nomes insuflavam o seu ânimo, nunca serenado, todavia, pela
convicção.
Pascoli, professor da Universidade de Bolonha, e, portanto, seu
colega de ensino acadêmico, seria seu salvador, o deus vivo a
revelar-lhe a própria intenção criadora, a dar-lhe sustentação
às asas do seu vôo, a confirmar-lhe a determinação dos gestos
por ele desvelados; a dar-lhe a paz necessária à sua
excitação, chão a sua descoberta sem limites.
Ao raiar a aurora, entrevendo por uma fresta um tênue raio de sol,
Saussure adormeceu. E teve um sonho curioso, com estantes e
estantes de livros; numa delas (onde seus olhos captaram de
relance a palavra "Ficção" encerrada numa etiqueta)
apareceu-lhe, num close a meia-luz - detalhe
sobressaído em meio às contíguas edições na linha da
prateleira -, o título Sobre a psicopatologia da vida
cotidiana. A inscrição o fez despertar; lembrou-se, logo,
de já ter visto tal volume numa livraria de Genebra, sem
chegar a folheá-lo - era, sabia ele, outra obra de Sigmund
Freud, autor de A interpretação dos sonhos, que também
não lera. Tratava-se, aquele vislumbre, de algo estranho e
mero acaso, como lhe pareciam ser, quase sempre, os sonhos;
após deixar de lado os signos esvanecidos na memória, voltou
ao seu mundo presente, focalizando a resposta que receberia do
poeta italiano.
Maria, irmã de Pascoli, notou, na manhã seguinte, sua inquietude;
estava lívido, com as feições contraídas, visivelmente
maldormido; trazia uma expressão rude, grave, interrogativa,
além do habitual ar sombrio que se instalara nele desde o
assassinato nunca aclarado de seu pai Ruggero, quando tinha
apenas 12 anos. Ela ofereceu-lhe, então, um revigorante
desjejum, que ele mal tocou. Ainda na mesa, o escritor relia
versos seus, de Ultima linea -
"Ergo Vergilius cecinit nova saecula frustra, / frustra ego
praedixi, frustraque effata Sybilla est..." -,
de Senex Coricius - "Spectabat mare caeruleum de
vertice collis / mente Cilix tota. Prope falx et marra
iacebant" -, e de "Nestor", na página casualmente aberta de
Catullocalvos - "sub arbore umbra Nestoris sedet senis";
depois, debruçou-se sobre versos de seus familiares poetas
latinos, buscando neles, também, possíveis "pormenores
técnicos" a que o lingüista aludia. Seriam procedimentos por
ele ignorados? E, se apareciam em seus próprios poemas, seriam
fruto de uma consciência misteriosa que guiara sua pena, uma
consciência alheia que o tornara um simples instrumento de sua
vontade? Ou estaria tão imbuído da poesia no idioma do Lácio
que a criaria, em seus moldes, como um meio transmissor de uma
tradição, sem que isto se limitasse à sua iniciativa? Afinal,
ele, Iohannis, recebera medalhas de ouro do concurso holandês,
o que revelava que, aos olhos dos críticos, assim como aos do
próprio Saussure, seus versos eram legítimos e destacados
representantes da poética latina. Não lhe agradava a idéia de
não saber coisas importantes acerca de sua própria obra,
composta com o máximo de atenção, labor, dedicação e controle
que podia oferecer a si mesmo, naquilo que mais lhe importava;
conhecia e estimava, é claro, os momentos em que lhe vinham
soluções sem que as perseguisse, as fases mais férteis, a
inspiração especial de alguns momentos, sem os quais,
acreditava ele, não seria um poeta; mas a simples sugestão de
algo que fizesse sem ter plena ciência de que o fazia
fincava-lhe, novamente, no abdome, um frio e fino fio, como se
a ponta delgadíssima de uma seta, ou mesmo uma agulha gélida,
estivesse cravando-se em suas entranhas. Desencorajando o
interlocutor sobre a existência de algo que não identificava,
foi cortês o suficiente, em sua resposta, para propiciar a
nova e esperada carta, com a questão mais definida acerca dos
tais "pormenores"; a mensagem não categórica dava-lhe a
alternativa de estar escondendo o que não queria revelar, em
vez de atestar o possível desconhecimento de algo que pudesse
ser real.
Ao receber a resposta de Pascoli, Saussure inicialmente
prostrou-se, por não lhe indicar, ela, qualquer identificação
com suas sugestões. Anteviu, portanto, a negativa quanto à
realidade de seus achados, talvez apenas uma miragem, uma
projeção de sua mente excitada sobre uma massa, ou mancha, que
se prestava a qualquer molde que a ela se impusesse. Mas a
chama de uma possível revelação, vista a cada passo de seu
empenho, não se apagava com mais uma incerteza, e sua
iniciativa de escrever a segunda carta deu-se logo, sem
rodeios. Era o dia 6 de abril:
Dois ou três exemplos bastarão
para colocar o senhor no centro da questão que se colocou ao
meu espírito e, ao mesmo tempo, permitir-lhe uma resposta
geral, pois, se é somente o acaso que está em jogo nesses
poucos exemplos, disso decorre certamente que o mesmo acontece
em todos os outros. De antemão, creio bastante provável, a
julgar por algumas palavras de sua carta, que tudo não deve
passar de simples coincidências fortuitas:
1.
É por acaso ou intencional que, numa passagem como Catullocalvos
p. 16, o nome Falerni se encontre rodeado de palavras
que reproduzem as sílabas desse nome
... / facundi cálices hausere - alterni /
FA AL ER ALERNI
2.
Ibidem
p. 18, é ainda por acaso que as sílabas de Ulixes
parecem procuradas numa seqüência de palavras como
/ Urbium simul / Undique pepulit lux umbras ... resides
U - - - UL U - - - -
- ULI- -X - - - - S - - - S-ES
assim como as de Circe em
/ Cicuresque /
CI -R- CE
ou/ Comes est itineris illi cerva pede /
...
A carta continuaria, mas o essencial estava dito. Se isto não
fosse, como deixara explícito, um procedimento consciente,
nada o seria, e seu esforço teria sido em vão. A angústia
instalou-se nele com um suspiro indefinível, pelo tempo que
durasse a espera de uma resposta que previa desértica, árida,
vazia, a consumir-lhe o ânimo.
Sem prestar muita atenção à correspondência, Maria passou-a ao
irmão, que apanhou imediatamente, dentre as diversas cartas, a
do mestre suíço. Ela notou, mais uma vez, que o desassossego tomava conta do poeta,
alçando-se, pela premência de algo oculto, a um nível bem mais
elevado do que aquele que percebia nele desde os dias finais
do último mês.
Pascoli leu-a rapidamente, e dirigiu-se, como em busca de ar, aos
arredores de sua residência. Uma névoa discreta tomava conta
do lugar, fundindo-se a seu pensamento, curiosamente vago. Não
pensara, considerava-se certo disso, em espargir elementos de
nomes nos poemas, mas eles estavam ali, e o remetente da carta
tinha razão. Desconhecia de fato algo que ele próprio fizera?
Ou seu conhecimento era maior do que supunha? Por um instante,
pareceu-lhe natural que tivesse engendrado tais palavras nos
versos. Seu devaneio ingressou numa dimensão mais interna, a
olhar para dentro, buscando enxergar em meio à névoa que
espelhava o exterior, agora não visto; e viu um possível outro
de si, a rir de sua ignorância, a ironizar sua cegueira.
Voltando novamente o olhar para o lado de fora, dominado por
uma superfície vaporosa amena, continuou a ver uma face de si
mesmo no éter, como um reflexo que, não obedecendo a seu
gesto, ria enquanto ele franzia o cenho. Seria este outro o
autor daqueles gestos precisos de sílabas, de sons,
entremeando-se em seu ofício como uma linha que costura no
tecido alheio, mas cede à fusão de seu feitio? Ou seu riso
denunciava a não-autoria de quem quer que não fosse a própria
escritura, a gerar em seus meandros suas próprias leis, dotada
de um cérebro, motor da linguagem, criador de urdiduras
independentes do veículo de sua concretização, esta mão
trêmula?
Não havia resposta a dar, sem partir-se; sem negar a sua
consciência, ou exaurir a do outro, ou afirmar o inexistente,
ou cegar-se diante da evidência, ou admitir que sua poesia lhe
era transcendente, ou que, se não o era, talvez fosse algo que
não conhecia bem, e, se não conhecia bem, talvez não
existisse, assim como sua consciência, que agora lhe parecia
demente, com um teor indistinto de mentira a roer-lhe desde
dentro - e desde fora.
Nada a responder. A decisão amainou-lhe a alma, que clareava em seu
centro, enquanto a névoa se dissipava, permitindo contornos
mais nítidos. O ar frio entrou mais livremente em seus
pulmões, acalentando-lhe o peito revolto; parecia
delimitar-se, em raros traços de vapor, a face translúcida de
seu pai, sugerindo-lhe, com voz pálida e longínqua, que
deixasse os mistérios se diluírem nos vãos do intelecto.
No início, a ausência de resposta intensificou a agrura de
Saussure, que, febril, já não conseguia prosseguir a escrita
em seus papéis grandes. As noites tornaram-se vazias, porque
povoadas apenas de fantasmas. Fantasmas são nada, vêm e vão, à
mercê dos ventos de nossa fantasia; emergem e retornam ao
infinito das possibilidades amorfas, ao vazio das formas. Só a
intenção, só o ato atento determina a existência do que se
identifica; o que apenas surge, e some, nada é, desprovido da
determinação da vigília. Assim os sonhos, incertos, das noites
em Genebra, quando a elas retornou o sono, só reaparecido no
momento em que os cadernos foram definitivamente ocultados dos
olhos exangues de seu autor, num móvel de sólida madeira.
Marcelo Tápia, novembro-dezembro de 2007.
Nota: Este conto foi
motivado pelas informações contidas na obra As palavras sob
as palavras - os anagramas de Ferdinand de Saussure, de
Jean Starobinski (tradução de Carlos Vogt), publicada em São
Paulo pela editora Perspectiva, em 1974. Os trechos das cartas
de Saussure foram retirados dessa edição, com alterações
mínimas, assim como dela provém alguma frase incorporada ao
texto.
*
Marcelo Tápia
é poeta, tradutor e editor. Publicou, entre outros, os livros
Primitipo (1982), O bagatelista (1985),
Rótulo (1990), Livro aberto (1992), Pedra
volátil (1996) e o volume de tradução A forja - alguma
poesia irlandesa (2003). Dirige a Editora Olavobrás. Vive
em São Paulo. E-mail:
marcelotapia@superig.com.br.
*
Leia também
Dez
contos secos,
de Marcelo Tápia.
*
Josemí
(José Miguel Goyena Sábado) nasceu em 1947 em
Tafalla (Navarra, Espanha). Estudou Sociologia na Universidade
Católica de Lovaina, na Bélgica. Morou em Paris,
Marselha, Tenerife e Palma de Mallorca. Atualmente, trabalha
como ilustrador para editoras e revistas.
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