MÉTODOS EXTREMOS DE SOBREVIVÊNCIA:
TRÊS MODOS DE USAR
- Ilustração de Sônia Alves
Dias -
Márcia Bechara
1
(Comme il fault)
Lucas tinha apenas quatro anos quando Fatel, de seis,
abriu-lhe um rasgo profundo de têmpora a têmpora com uma
pequena lâmina achada ao pé da escada, onde costumavam
brincar. Da testa de Lucas eclodiu um grosso vulcão vermelho,
o que contrastava e muito com a textura fina de sua pele de
bebê, e ele olhava aparvalhado para seu agressor de calças
curtas e cabelo muito bem cortado, como quem olha para um novo
bicho que acaba de conhecer, mas ainda não lhe compreende as
estruturas.
Lucas curou-se completamente da abertura do corte e até mesmo
da severa infecção seguida de tétano, causada pelas impurezas
da lâmina, mas nunca - nunca mais se recuperou da proximidade
da presença de Fatel.
Durante anos, Lucas construiu e manteve distância segura da
possibilidade de seu opressor. No epicentro de uma cidade
pequena, onde todos lhe conheciam as infâncias, ele soube
ignorar o enorme e profundo vergalhão de dor e dúvida sobre
sua testa servindo mesas em um antigo restaurante de certa
classe.
Mas
não era sem repetido espanto - susto mesmo - que Lucas
observava o bartender atacar seus limões, ou Gero, falso
italiano nascido na província, degolar suas galinhas.
Nunca mais Lucas achou normal o navalhar da lâmina. Qualquer
corte era e sempre seria uma violência para ele. Passava de
olhos semicerrados no balcão do açougue para retirar a carne
apenas no final. Impassível, aquele gigante com um enorme vale
na testa passava calmo, e só quem observasse de muito perto
notaria que as mãozarronas de falso garçom tremelicavam na
proximidade dos instrumentos cirúrgicos.
Uma
tenebrosa barba de Maomé lhe crescia em desalinho, era-lhe
impossível ameaçar as próprias faces.
Entendam: quem sofre um corte destes nunca mais será o mesmo.
Um corte lancinante na própria pele equivale a uma violência
surda.
Uma
guerra eclode e mata com barulho, esfuziante. No meio de
grande alarde, militares chineses assassinam compatriotas. Um
uivo terrível anuncia a morte do furacão, que estapeia rostos,
janelas e cidades. Até mesmo os animais morrem aos gritos. Mas
o corte do pequeno Fatel na lisura de bebê de Lucas veio sem
um único estampido.
Serviu-lhes o destino (e certa propensão à tragédia) de
carrasco e voyeur: quando servia as mesas laterais do
restaurante numa tarde ainda quente de outono, Lucas viu sua
violência adentrar o salão, um violência bem-vestida e
acompanhada do que Lucas supôs - uma possível noiva.
Fatel havia escolhido (sem saber), para jantar ao lado do seu
objeto de amor e desejo, o restaurante onde trabalhava (ou se
escondia) a principal vítima de suas primeiras violências.
Todo homem perpetua, acumula e acarinha suas violências ao
longo da vida. Mas Fatel sentia-se extremamente mal em lembrar
desta única que havia cometido quando bebê. Não era violência
de homem, era quase de bicho. Por isso, fingia para si mesmo
constantemente que tal fato jamais houvesse acontecido, e para
este fingimento contribuía a desmesurada timidez de Lucas, que
vivia mais à sombra do que à luz da cidade.
Mas
a situação social do restaurante colocou os dois oponentes em
risco. Alguém deveria mexer no tabuleiro. Fatel havia se
sentado em uma das mesas e, antes mesmo que este reconhecesse
o imenso sulco na testa de Lucas, o mesmo resolveu
apresentar-se à mesa do casal, numa irrefletida corrida, como
se pudesse abreviar de uma vez o sofrimento, o fim, o que
viesse.
-
Pois não?
Um
frio súbito desenhou medos na espinha de Fatel, cujas faces
ficaram afogueadas, primeiro de constrangimento, mas, logo em
seguida, de prazer. Que homem não espera ser servido pelo seu
oponente castrado? Reconhecida a figura de Lucas, o outro, já
alto de drinks anteriores em um bar, quase ria. Não sabia por
quê. Não conseguia tirar os olhos do imenso rasgo que ele
mesmo havia feito na testa do antigo amigo. Um poder corrosivo
lhe fritava os sentimentos. Desculpa, como está, quanto tempo,
eu quero matar você, por favor não me acuse, meto-lhe e na sua
namorada, que faz ainda vivo, sua aparência me enoja, tenho
saudade de você, tanta coisa passou entre dois homens em
poucos segundos, uma vida. Uma vida, meus amigos, e tudo ainda
é lembrança e sentimento.
Fatel pediu costelas de porco. Havia se decidido pelo horror.
Tomou doses vigorosas de vinho tinto doce encorpado, comeu
como um leopardo, a bela noivinha lhe pinçando os restolhos
com o guardanapo. Lucas serviu-lhe o banquete, comme il fault.
Não
satisfeito, Fatel lhe ordena que separe a parte mais tenra do
animal para o paladar doce de sua noiva. Facas afiadas à mão,
Lucas, gigante e trêmulo, não se reconhece. Tem medo do
oponente, mas um imperativo de sobrevivência lhe ordena que
fatie a carne. E quando o faz, um fio quente, definido e
mortal molha suas calças, uma urina quente, que vem ao mesmo
tempo do homem e do menino.
A
gargalhada de Fatel custou-lhe a própria vida à saída do
restaurante, quando, ainda trôpego do horror e da bebedeira,
sentiu quente em seu próprio olho a mesma faca que havia lhe
fatiado o belo prato principal, e, por trás da faca, a mesma
mão trêmula, incerta e inábil, que nunca soube cortar nenhuma
carne.
2
(Ilegal, imoral ou engorda)
Longa é a relação de ódio e amor entre a mulher e a serpente,
desde os tempos bíblicos, quando as pessoas separavam os mares
com uma espécie de vareta mágica. Arquiinimigas, incendiadas
entre objetos como desejo e conhecimento, fêmea e áspide se
estranham e se adoram como espécie, gênero e descendência.
Insípido e pleno de vontades absolutamente naturais, o macho
não se presta a estas pequenas contendas.
Mas
no meio do paraíso irremediável, Eva Maria esmagou a cabeça da
serpente. Para que o movimento de sua língua não mais lhe
deixasse predisposta ao conhecimento, para que a cobra não lhe
desse mais prazer e para que a mulher não se apartasse mais do
homem.
Afinal, depois de andar sobre as águas, ascender aos céus e
multiplicar os pães, o próximo passo seria ser promovida e
transformar água em vinho, esses milagres da culinária moderna.
3
(Nada)
Não
posso deixar que Jorge me abandone, este homem que não me ama
mais. Eu o negligenciei por tanto tempo sem me dedicar aos
exercícios corretos. Meus joelhos estão flácidos, minhas mãos
inábeis e meu coração aborrecido. Tudo isso é fruto de meu
completo descuido. Preciso reeducar-me. Não me reconheço.
Engordei muito durante a última gravidez e Jorge não me
procura mais.
Não
paro de pensar em Luíza, mulher que foi (não sem razão)
dispensada por Dagoberto. Uma mulher pública está sempre em
estado de infâmia, diz Jorge, e por mais que minha ignorância
não me permita compreender completamente o sentido desta
afirmação, tenho medo deste estado. Tenho medo principalmente
de não ter sido naturalmente talhada para estas tarefas que me
aguardam dentro de casa, e isso me desespera. Não posso perder
a lucidez, agora que já perdi o controle. Preciso de
diligência.
Já
perdi o controle sobre meus filhos, que não me obedecem e à
hora em que Jorge chega, muito cansado do escritório, e deseja
descanso, as crianças saltam-lhe nos joelhos, o que lhe deixa
extremamente irritado e meu marido sai batendo a porta,
procurando sem sombra de dúvida outra mulher que controle
melhor seu ambiente e suas circunstâncias, sem dúvida uma
mulher mais controlada.
Jorge não me proíbe os remédios para depressão, mas não posso
parecer histérica ou louca, uma vez que meu marido deve se
candidatar imediatamente e suas pretensões políticas podem
elevar um homem comum e sua família a outros patamares de
existência. Outra gravidez seria extremamente desejável em
época de eleições, desde que, conforme disse minha sogra, eu
não engorde mais e aparente descuido.
Uma
mulher gorda e flácida não deve aparecer em público, porque o
homem ao lado dela nunca seria levado completamente a sério, e
meu marido é um homem sério.
Amanhã mesmo comprarei aquelas revistas com exercícios para
musculatura e bons truques para o cabelo, com ingredientes
mais baratos e fáceis de serem encontrados em supermercados
acessíveis no bairro. E tenho ainda comigo guardadas aquelas
publicações que Luíza me deu, onde aprenderei a agradar meu
marido de todas as formas que ele desejar, sempre que ele
desejar, com total controle das circunstâncias.
Aprenderei posições, saberei novas posições.
Assim, quando Jorge chegar novamente em casa (se ele chegar
amanhã) terei caminhado com os pequenos durante todo o dia no
parque, e as crianças estarão cansadas e não mais predispostas
a atrapalhar o divertimento de seu pai, e eu poderei me
dedicar com mais técnica, preparo, atenção e flexibilidade às
suas necessidades.
Estarei de volta, então, e trarei meu marido comigo, como um
pássaro que se perde momentaneamente de seu bando, mas é
novamente uno com ele, e somente com ele é uno.
*
Márcia Bechara,
35, é escritora, atriz,
performer
e jornalista. Mineira, radicada em São Paulo há 10 anos,
publicou
Casa das Feras
(2007, 7Letras) e
Alegoria para Dinorah
(1994, Mazza Edições). Ensaia e pesquisa atualmente, com a
Kiwi Cia de Teatro, o trabalho
Carne,
encenação que busca investigar a opressão de gênero, a
violência contra a mulher e as relações entre patriarcado e
capitalismo.
*
Sônia Alves Dias,
nasceu em São Paulo (1972) . Estudou Artes Plásticas na Escola
Panamericana de Artes. Participou em 1998 do grupo Vinte e
Sete + Um em NY e da coletânea Eis Poesia na
cidade do Porto (Portugal) com o conto "Safra Amarga".
Atualmente, é escritora anônima de cartas alheias e cuida de
um pé de trevo com várias folhas. |