O,10
Marcus Alexandre Motta
a Mariana Munõz,
sem ela estaria ainda nos corredores.
Primeira vez: a pequena mancha de luz negra passa. No televisor, cena de muitos pianos a tocar, nos diferentes degraus da escada. Na segunda: atravessa um pouco mais lenta. Os olhos buscam, atrás da nuca, o último ponto daquele brilho de margem. Trêmula. Na terceira: lentamente. Os olhos retorcem. Desmaia. Contorcido; geme.
Acorda. O quarto de janelas fechadas deixa tudo bruno. A dor de cabeça reage à mínima sonoridade. Sente-se humilhado e distinto. Há algo de penúria divina nele. Pelas atenções que recebe, se conhece eleito na profunda crise que é só sua. Numa voz indigna, tenta dizer algumas palavras; gagueja a pátria da sua ausência.
Sem saber achaque algum, repousa, admirando com dor as linhas de luz que teimam em se desfazer em poeiras gentis. Ao lado, lentamente, falam os tolos. Só há esse acontecimento. Nesse acontecimento, a atenção existe. Apenas nele. Quando acabar, ninguém mais o saberá assim. A mãe culpada. O pai traído.
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No dia seguinte, vai à escola. Agora, todos já sabem. Um combinado de pena e receio pinta aquelas faces. Espertamente, pede a professora para sair. Fica do lado de fora no balanço a cantar baixinho uma música qualquer. A voz, dizem que é linda. Cantarola e se põe em tristeza arrogante.
O recreio se inicia. Escolhe uma árvore distante ― talvez só houvesse ela. Aos pés, sentado na raiz, vê crianças para lá e para cá. Lembra com cuidado o fundo das mesas em que se colocava, quando um choro, sem motivo, o vinha perseguir. Ali debaixo, o entre as pernas figuram os cantos de mesa. Não sabia ter nascido de um deles; cultua-os a lacrimejar.
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Rápida volta a casa. Na rapidez das pernas, ninguém o alcança nas brincadeiras. Quase pulando, repica idéias da cobiça de saltar mais longe. Longe. Longe. Via verter-se em fantasias, vivendo o bom alimento do passado próximo de cada convulsão. A mãe inclina a cabeça com a benção que pede. Pergunta: a senhora está bem? Um sorriso é devolvido pelo silêncio. Ela, tendo dúvidas sobre o valor da pergunta, afirma: seu pai já chega!
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Abre a porta e escapa para rua antes de ouvir. A voz continua com ele em cada lance dda escada. Assobia e pula dez degraus, infundindo um barulho nos corredores. Dobra a direita. Acelera. Dobra a esquerda. Retorna ao chão. Meio-Quilo o atinge com um soco no olho e escapa rindo. Dolorido levanta; turpilóquio. Volta. Sobe tonto. Senta. Reclama. Chora. Recebe um bom bife cru no olho roxo.
A potente humilhação ressoa. Lento cresce em comparação com outros meninos. Dentuço. Epilético. Magro. Cabelos longos e louros e que não se a aquietam. Deve haver uma explicação e, no banho, repete: um dia terei corpo capaz de não cair. O pai chega. Vê a sua face e num lance espetaculoso desce enraivecido para encontrar o criminoso. Sente a cena do pai. Era isso real? Corpo prostrado na cadeira em ânsia de vômito. Ele não era. Ela, de ser, havia de cinza como tempestades.
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Cada móvel da casa com pés cortados. O lar cheira a piso de banheiro encharcado de haver dias. Os três irmãos o chamaram de pá desde os primeiros momentos. Com longos braços quebra a primeira louça. Grita. O pai calado a espia. Grita. E antes de gritar mais, solicita que ele leve os irmãos para dentro do quarto e ali fiquem.
Ali fica de ombros caídos, desaconchegado no segredo dos barulhos que vinham de fora. A distância nele é segredo, a raiva nele é secreta, como os olhos dos irmãos. Todos moram nos casebres sombrios daquela paisagem. Segredos exaustos de segurar os seus cetros.
Engasgado odor de surradas cadeiras o movia a partir. Menino ainda, responsável por algo que dele nada tinha. Mas não são assim as responsabilidades? Sim, ele nunca fez uma coisa como não estar ali naquelas horas. Apenas as convulsões e o escape das ruas se diferenciavam daquilo. Porém, bastava chegar, que horas fosse, e ali estar, para que tudo acontecesse.
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Certo dia permanece demais. No corredor longo, repleto de cinco portas ao lado direito de quem entra, acha a mãe em haver cinzas como tempestades. Ele pergunta: a senhora está bem? Ela sorri trincada e esbraveja em contida raiva: seu pai tem uma amante! Seus os olhos sumiram em favor da órbita dos dela.
Vê uma gilete. Na mão esquerda, da mãe. Tenta enxergar. Ela exclama e se corta. Exclama. Corta e corta e exclama. Sem pavor observa. Breve esquece. Não sabe como termina o encontro. Já está na rua à noite.
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Canta em varandas ou nas salas dos apartamentos. Enche todos eles dele, daquilo que não era ele. Terminado, próximo das 11 horas, ruma para a calçada e assobia pedindo a chave da portaria. Do terceiro andar, a mãe aparece e joga.
Um líquido da matriz do medo escorre nas paredes dos andares que o separam da porta onde mora. Quanto mais acelera o passo, mais para trás fica a receber barulhos da mente. Ao chegar diante, erra muitas vezes a chave na fechadura. Erra e aumenta o seu horror. Ao conseguir, falta ainda caminho. Quatro portas ali enfileiradas ― a sua é a última. Corre. Abre a porta. Acende a luz. Muitas vezes, lança urina na parede encostada à cama.
Lembra do remédio, 0,10. Deve levantar. Percorrer o caminho dos quartos. Acende a luz da copa, pega-o no armário, abre a geladeira, põe água no copo e, então, engole. É muito. É muito. Não há jeito. Há de ir pelo corredor. Olha e dispara. Chega ofegante. Luz acesa. Deita. Dorme. De manhã, a mãe pergunta: quem deixou a luz acesa da cozinha? Aquela do quarto ela não viu e nunca verá! |