AO
MUNDO DAS MÁSCARAS
Marília Kubota
Ficar muda,
enterrada sob lençóis. Múmia seca no
sarcófago como lagarta encapsulada no casulo. Queria
não descerrassem as cortinas, ainda não! Não
abrissem. Olhos com remela sob pálpebras isolados do
mundo solar. Que o jato de luz não jorre, janela, não
abra a tumba. Dentro, musgo nas pálpebras, larvas entre
dedos, mastigando unhas, pêlos, ossos. Fique, fique,
fique, murmuram, enlouquecidas, agarrando pés, mãos.
A luta, acordar, a luta, espada do cavaleiro solitário,
liames decepados entrelaçados a troncos crescidos em
desespero na selva, bromélias, bananeiras, figueiras
travando o espetáculo luminoso. Lá fora, escapamentos,
buzinas, apitos, engates, blasfêmias. Cavaleiro sem
cavalo guerreia contra cipós selvagens, barbas de bode.
A espada abre caminho, porta mágica: o despertador
zune.
Deslizou
o sabonete no corpo. Bom sentir o corpo. Avó Michiko
não sentia mais. Ameixa chupada entre pétalas
de crisântemos e sempre-vivas, máscara no jardim.
Tão rápido. De manhã: sabe que está
muito mal? Vôo para São Paulo, à noite,
último desejo: Posso cantar? Claro. Primeiros acordes
duma canção japonesa, dois suspiros, depois
morreu. Lembrava a máscara, camélia desmaiada.
A água
escorreu pelo corpo, sensação de vida. Mistério,
morrer. Não tinha tempo pra filosofia, marcou encontro
com uma amiga que vinha de Belo Horizonte. Devia ter cancelado,
enfim um dia como outro. A vida continua.
Amigas há
tempos, moraram juntas. Grete casou, mudou pra Minas. Durante
anos mantiveram contato por telefone, carta. O fim das afinidades
e a falta de convivência regular fez o relacionamento
murchar até reduzir-se a um cartão no fim do
ano. Surpresa quando ligou dizendo que vinha passar uns dias
em Curitiba, queria encontrá-la.
Pensou em levar uma lembrança. Ela gostava de coisas
de brechó. Passaria na loja do China. Sempre passava
ali a caminho do trabalho. O chinês era um velho imigrado
de Hong Kong nos anos 60. No brechó tinha tudo: gramofone,
relógio de corrente, jaquetas e medalhas, bonecas de
biscuit, louça em miniatura, castiçais de prata.
Tudo cheirando naftalina.
Gostou da
boneca de biscuit. Ponta do nariz lascada, mas o cabelo de
seda natural e o vestido de organza em ordem. Conversou com
China, que, como de hábito, queria empurrar mais trastes.
Ao sair, sentiu um botoque na cabeça. Ai! A carranca
despencou do teto. Não quebrou nada, né?, perguntou
o chinês, referindo-se à carranca. Ajudou-a a
levantar-se sorrindo. Olhou a carranca de expressão
furiosa. A bocarra com dentes cerrados. Espanta maus espíritos,
explicou o chinês.
A confusão
a fez atrasar. Grete esperava, ansiosa, robusta e alegre.
Abraçaram-se, beijaram-se, falaram. Conversaram sobre
as novidades, mas havia um entrave. Olhar de soslaio, pernas
descruzando impacientes, mãos gesticulando. O que a
trazia de volta? Contou que mãe não estava bem
de saúde. Não sabe porquê, não
comentou a morte da avó.
Na despedida,
o presente. Esqueceu no banco de trás do carro. Grete
a
surpreendeu com um pacote. Abra, vai gostar. Reconheceu o
papel de
presente: a carranca. Confusa um minuto, olhou a amiga, riu.
Sabia que ia gostar. Despediram-se.
Ao voltar
para o carro jogou no banco de passageiro a máscara
feia. Por que ela me deu isto ?, pensou, irritada. No banco
de trás a boneca sorria, sem graça.
*
Marília
Kubota (PR) é jornalista e redatora free-lancer.
Publicou poemas e contos nos jornais Nicolau (PR), Suplemento
Literário de Minas Gerais e nas revistas literárias
Medusa e Babel. Participou das antologias Crônicas
Paranaenses (Secretaria da Cultura do Paraná),
Pindorama (na revista argentina Tsé-tsé)
e Passagens (Impressa Oficial do Paraná).
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