ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A PARTIDA


Nazarethe Fonseca

 

Pedro realmente ia partir, a mala estava pronta. Em seu olhar havia o vazio de quem olha sem nada ver, ou, pelo menos, tenta ignorar o outro. Recolhia seus livros e deixava as recordações que juntos viveram. Dora, sentada à beira da cama, nada mais significava.  Ela lembrava dor e tempo perdidos num passado, que logo esqueceria nos braços da nova amada. Uma mancha no canto de seu olho, algo que desprezou. Havia um brilho de recomeço, a estranha sensação de quem diz: "Dessa vez será melhor". O futuro lhe sorria e as lágrimas dela nada significavam; seus pedidos, suas súplicas. Ele só via o seu futuro. Passado, lembranças, era somente o que restaria para a ex-mulher. A cama onde tantas vezes fizeram amor, os travesseiros, o banheiro, a mesa de café onde tantas vezes riram e brigaram por um sentimento, um círculo de ouro jogado no chão do quarto com desprezo e nojo.

Sala, quarto, escritório. Ele corria contra o tempo, e a esposa contra um amor não correspondido. Onde estavam as promessas, as palavras carinhosas? Dora abriu a gaveta, puxou a arma e o esperou calmamente. Se Deus os uniu, que os recebesse em seus braços agora. Pedro não esperava, a surpresa quase o matou de susto, soltou a mala e ainda debochou. Havia se esquecido da arma. Dora riu amarga, e em suas últimas palavras, um "Eu te amo". Dois disparos e o silêncio.

Um sonho, uma ilusão. Balançou a cabeça para vê-lo terminar a mala e, cansada de esconder a verdade, falou sem medo:

__Estou grávida.

Ele parou com a mala nas mãos e ficou por algum tempo no meio do quarto. Durante cinco anos de casamento sempre quiseram ter filhos, mas nunca acontecia. E por que agora, quando nada mais significava? Abraçado à mala, sentou na cama e ficou assim por quase meia hora. Pensava, lembrava de seu tempo de infância. Pegou o telefone e diante de Dora dispensou a amante. Ele levou uma semana para que esta entendesse, que ele ia ficar com a esposa, agora grávida. Claro, a amante fez escândalo, ligou muitas vezes, mas Pedro não atendia ao telefone, só Dora. Ele morreu para ela. A casa estava silenciosa, um casal perdido dentro de sua agonia, uma criança sendo gerada e o olhar vidrado do pai.

Pedro não desfez a mala, apenas ia tirando as roupas de dentro dela à medida que precisava e a fechava com uma expressão rígida na face. O guarda-roupa continuava vazio.Era um homem de princípios, não ia abandonar um filho no mundo! Pensava na criança. No que iria sofrer, sem ter a figura do pai para lhe proteger do mundo, como um dia ele mesmo foi desprotegido. Graças a um trauma de infância, ficou ao lado da esposa, mesmo não a amando. Ainda era jovem, poderia suportar algum tempo até que a criança crescesse um pouco. O corpo ficou, mas a alma não, ela estava muito longe.

Dora fingia o tempo todo, era como se ele nunca houvesse lançado a aliança sobre ela e lhe dito coisas tão odiosas. O viu com prazer  procurar a aliança, pôr no dedo. Pedro ficou muito caseiro e sequer falava com os amigos, estava o tempo todo ao lado da mulher. Parecia evitar o mundo. Além do portão de madeira, só havia problemas e tentações. Mudou bastante, não falava muito e até comia seu bolo de milho sem reclamar. Todos o acharam diferente, arredio. Dora o defendia e até tentou levá-lo à igreja, mas mudou de idéia ao ver o carro da amante dele pela vizinhança. Ela ainda o queria. Um mês depois e ela ainda insistia com aquele romance absurdo!

Dora na cama notou que a mão de Pedro estava inchada. Pela manhã acordou e não o viu na cama; a aliança sobre a mesinha de cabeceira. Correu desembalada pela casa e o encontrou no portão conversando com o padeiro. Foi somente um susto, ele ainda estava ao seu lado, e iam criar seu filho, os dois juntos. Segurou o ventre sentindo uma dor aguda e caiu ao chão.

O padeiro a juntou do chão e começou a gritar por ajuda. Ninguém apareceu do interior da casa. Sem alternativas, a tomou nos braços e a levou para dentro, enquanto ela gemia e sangrava. Pela casa, procurou o quarto e logo o achou. A visão é um dos cinco sentidos, provavelmente o mais enganoso deles. Ela lhe prega peças.Uma sombra pode ser um vulto, um vulto pode ser um homem. E um cadáver pode ser um marido fiel.

Pedro não pôde sentir-se aliviado, e muito menos livre. Estava morto há muito tempo para sentir qualquer coisa. Seu corpo apodrecia sobre a cama há um mês. De sua mão a aliança já havia caído há muito tempo com o resto de seu dedo. O padeiro vomitou até quase morrer, e Dora continuava chamando o marido. Logo a casa ficou cheia de gente, a ambulância surgiu e levou Dora para o hospital. Ela perdeu o bebê.Naquela manhã ensolarada, naquele quarto cheio de moscas e mau cheiro, na casa, nos arredores ninguém conseguiu tomar café da manhã. Era por demais nauseante a visão do cadáver e mais ainda em imaginar Dora vivendo com ele durante todo aquele tempo. O assunto virou manchete de jornal. Dora foi internada completamente louca, pensando ainda estar grávida. A amante virou celebridade. O legista encontrou dentro de um cadáver de trinta dias, pedaços de bolo de milho.

*

 

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