FESTA
DE GENTE GRANDE
Regina
Benitez
Vinha o ganso, vinha a anta, vinha o namorado. Todos de carreirinha
e se punham a olhar.
Ágata inventa histórias
enquanto trança folhas e faz engates de flores e hastes.
Minha prima é muito
criativa. Conta histórias esquisitas e compõe
aqueles mínimos encantos, construídos de folha
e flor. Trouxe uma lembrancinha dizia, estendendo
o presente. Não escolhia as pessoas. Ia dando aqui
e ali, do dentista até a diarista e até mesmo
para mim, seu primo distante. Sempre colecionei os presentes
de Ágata com um certo fervor e com o mesmo fervor ouvia
as suas histórias.
Elas começavam
simples. Era aos poucos que se tornavam dramáticas
e sujas. Isto porque vinha a anta, o ganso e aquele namorado
que era capaz de horrores. O ganso e a anta mal possuíam
sentido, porém, o namorado era capaz de amar e de matar.
Ágata me visita
regularmente. Traz caldo verde e um cesto com pães,
que diz recém-assados. Também sempre tem alguma
coisa para beber e daí para começar a festa
é um passo bem pequeno.
Nossa família é
grande. Moramos todos nesta mansão inteira branca,
cheia de quartos, escadas, corredores e desvãos. Ágata
ocupa o quarto em frente ao meu, o que nos aproxima. Todas
as noites fazemos festas. Ela fica lendo contos policiais
e de repente lá vêm com suas histórias.
Vinha a anta, vinha o ganso e mais o macaco e o namorado.
Todos de carreirinha. Cheia de imaginação inventa
mais e mais personagens. O macaco era até novidade,
mas o namorado é que sempre se convertia no vilão
principal. Ele era perverso. Por culpa dele nunca mais
peguei em meus gatos e em minhas bonecas explicava.
Ele era imundo. Pegou em minhas mãos e elas
se tornaram horríveis- Ágata vive com as mãos
recolhidas dentro de bolsos enormes.
E vinha o ganso, a anta,
os convidados, o macaco e o namorado.
Nossa casa vive cheia
de gente que mal conhecemos. É muita festa. Mas existe
um enorme controle, o que faz que seja impossível chegar
perto de mim ou de minha prima. É que para essas festas
que se realizam na sala nunca somos convidados. Mais que isto:
somos escondidos. Que ninguém vá olhar para
aqueles dois seres abjetos que ocupam a casa e destroem qualquer
vestígio de felicidade.
Fechados no quarto, imaginamos
a festa que se arrasta na sala. Diferente da nossa, por lá,
brilham os cristais e as pratarias. Tocam música. Riem.
Nós sabemos fazer festas melhores. Comentamos,
cheios de ressentimentos. Gostaríamos de estar naquelas
festas, onde o caldo verde é de verdade e os pães
não são desenhados.
Às vezes espiamos
o que acontece por lá e, desesperados, dizemos que
tudo nos parece muito pouco.
Uma casa grande como a
nossa tem vantagens e desvantagens. A maior das vantagens
é não ficar esbarrando aqui e ali, a todo instante,
em pessoas desagradáveis. A desvantagem é que
em muitas ocasiões nos perdemos. Minha prima vai para
um lado eu para o outro e levamos dias para de novo nos encontrar.
Mas esses momentos, de reencontro, são preciosos e
então providenciamos outra e mais outra festa, enquanto
olhamos as festas de gente grande, despeitadíssimos.
Sempre que nos achamos
de volta, Ágata tem muito para contar. Metade verdade,
metade mentira. Ela sempre impressiona com histórias
esquisitas, meio feitas de sonhos, meio feitas de pesadelos.
Tentando corresponder
à sua intensa imaginação, conto que na
escada havia uma mulher morta. Ela diz que também viu.
Quem será que matou
a mulher? indaga e começa a desfiar a história:
E vinha o ganso, o macaco, os convidados e a mulher
assassinada. Pior! Vinha o namorado. Um cara obsceno que pegava
nas mãozinhas dela e sujava tudo. Foi ele quem
matou a mulher confirma.
Tomamos o caldo verde,
do faz-de-conta, e ela apresenta licores que inventou arrancando
as cores de papéis de seda. Enche litros e litros.
Este é de morango, este de uva, este de sei-lá-o-quê.
Hoje, a mulher morta estava
com um vestido verde e usava brincos de esmeraldas. Ontem,
ela estava de vermelho.
Minha prima é muito
criativa e inventa roupas para a morta.
Em nossa casa, todos são
enormes. A mãe, o pai, todos pra lá de seis
metros. Eu sou bem pequeno. Já minha prima é
maior. Menos de dois metros? Imagine se... Dizem os
pais e os tios quando nos impedem de ir às festas de
gente grande, que acusamos de monótonas. Também,
todos beirando os 400 anos, não entendem crianças
de 90, igual a mim, ou de 150, como minha prima. Por isso
é que ficamos confinados nos quartos, preparando nossas
festas que declaramos ótimas.
Sabemos quando a mãe
se aproxima. O perfume dela se espalha por toda a parte. Ela
deve usar litros de perfume, diz a prima, e inventa que a
mulher morta estava com este mesmo perfume e vai ainda mais
longe: diz que a empregada também está com esse
cheiro. Coloca o narizinho esperto no colo da empregada. A
coitada nos acusa de feios e impertinentes. Só
fico aqui porque pagam bem, desabafa. Imagine se vou
roubar perfume de patroa. Que o menino diga isso e mais aquilo,
tudo bem. Mas você? Quase uma mocinha... Até
dói.
A empregada fica magoada
e se vai. Minha prima vive imaginando formas de matar a empregada.
Conta que já acabou com milhões de pessoas.
O namorado também, ela confessa.
Às vezes, ela se
põe a imaginar armas. Agora mesmo anda de lá
pra cá com uma tesoura minúscula. As mãos
ocultas, enroladas em trapos, e afia que afia as lâminas
finas que brilham como prata.
Sei que minha prima nunca
teve nenhum namorado. Sei que é minha tia que confina
as mãos dela em trapos saturados de pimenta para que
não roa as unhas. Eu sei.
O tempo passa que passa
e as festas diminuem. Tudo porque morreram todos de carreirinha.
O pai, a mãe, o tio, a tia, a empregada, os convidados,
o namorado. Todos mortos.
Já o macaco, a
anta, o ganso, fugiram todos.
Ficamos aqui, minha prima
e eu.
Agora imensos, na sala,
entre cristais, pratarias, convidados que riem e música,
descobrimos, pouco a pouco, que as nossas festas do faz-de-conta
eram bem melhores. Bem mais.
*
Regina Benitez, curitibana, tem publicado um livro
de contos: A moça do corpo indiferente. Está
incluída em inúmeras antologias nacionais e
também da Alemanha e Portugal. Sua melhor criação
foi realizada em parceria. Trata-se de Greta, a filha.
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