O
PINTOR E SUA SOBRINHA
Ricardo
Soares
Havia
um mundo na cozinha. Outro na sala, logo ali vizinha. A janela
enorme dava para o mar e à noite ventava muito. Diante desta
janela e deste mar ele pintava sonhando com Rimini ou Taormina,
imaginando que a igreja mais azul da serra da Ibiapaba não
seria tão azul quanto a cor que agora estava na sua tela.
No
mundo da cozinha, imenso pavilhão de azulejos claros, a sobrinha
reinava todas as tardes entre panelas minúsculas e bonecas
despenteadas que babavam nos vestidinhos. Às vezes quando
ele se cansava
de olhar suas telas ou o mar pela janela encostava-se
no umbral da porta da cozinha e ficava olhando, escondido,
a sobrinha deitada nos azulejos. A cena, anos depois, pouco
antes dele morrer, serviu de inspiração para inúmeras pinturas.
Agora,
ali diante da sobrinha que não o via, ele não sabia
que ia morrer.
Não
sabia que ela um dia também gostaria dos filmes de Fellini
ou da voz de Nina Simone. A sobrinha era apenas uma criança
entretida com a bunda pra cima. Tudo o mais era o futuro.
Memória de fatos que ainda não aconteceram. O mundo daquela
cozinha cheirava vagamente a orégano. Limpeza, higiene, panelas
arrumadas, facas dispostas em simetria. Território de sua
irmã. A mãe da sobrinha.
Depois
da imersão no mundo da cozinha ele voltava para o mundo da
sala com novo ânimo . Sua tela nova era um acontecimento.
Mesmo as expressões deformadas que criava para seus personagens
aflitos ganhavam lirismo, poesia , sopro novo. Era culpa da
sobrinha. A menina de olhos de jabuticaba. Olhos que veriam
muito depois outros tantos quadros e expressões. Mas olhos
que jamais se esqueceriam das expressões e telas de seu tio.
Quando
ele dançava, ria ... balançava a cabeça e todo o vento frio
que entrava pela janela esquentava. Com o tio ela poderia
dizer que tinha entendido pela primeira vez o que era o amor.
Amor que dá e não cobra. Amor que não paga fatura , não funga
porque não chora. Amor que não explora. Amor de pegar na mão
e sentir-se a mais segura das meninas.
Estas
tardes em que ele pintava e ela deitada sonhava com o futuro
ficaram tão remotas que chegam a doer na sua lembrança de
viva e na nostalgia que ele guarda no mundo dos mortos. Ele
ainda tem vontade de pegar na mão da menina. E ela o procura
quando vê suas próprias unhas roídas pela ansiedade
que os descaminhos do amor sempre provocam.
Ela
o vê de dia às vezes. Não como uma assombração noturna . Mas
como uma aparição solar, tão cheia da luz azul que ele amava,
tão saudosa das histórias que ele contava. Ele gosta de aparecer
na praia , torso nu , exibindo um sorriso e um corpo belo.
Cheio da vida que não tem. Lhe sorri cúmplice, chega a insinuar
com seu lindo rosto de morto que ela deve fumar menos e aprender
a amar mais. Diz com os olhos que o difícil
é entender o amor . Um amor que mesmo em vida distante
ele ainda busca. Mas ela ainda não entende apesar de ter morrido
várias vezes.
Deitada
na grama sobre uma toalha xadrez de piquenique ela olhou o
céu ardido de azul outro dia e achou que estava começando
a entender. E então veio aquela paz. Exígua, mas paz. Sensação
que não durou até a noite cair por completo mas que foi forte
o suficiente para ele entender que amor é ato de sacerdotes.
Que
pode não requerer castidade quando o objeto do amor
está distante . Mas requer sinceridade. No entanto a castidade
do amor é sagrada quando ela é entregue apenas à pessoa amada.
Este foi o recado do tio. Se é que um recado destes pode chegar
com tamanha clareza de lá do outro lado do rio.
O que
procura a sobrinha ? a terceira margem ? a derradeira viagem
? algo parecido - sublime - com o amor que sentia pelo tio
? onde está o fim do vazio ? talvez nas belas artes, no mesmo
remoto vento nordeste que chega com o mar, nas ruas cheias
de Lisboa , no dedo de Deus que aponta o céu em Fernando de
Noronha.
A
sobrinha deitada sobre a toalha , a fruteira na cozinha da
infância, o copo de uísque derramado, as gaivotas mancas,
os olhos vermelhos de choro, as ruínas romanas, um fim de
semana perdido. Tudo isso é tela. Paisagens pintadas na memória.
Quais respingos ficam quando a memória se esvai ? um beijo
que cai , um abajur que não acendeu, o grande amor que não
aconteceu, sapinhos que coaxam do lado de fora de um chalé
?
Ah,
meu tio. Tudo isso é pintura. Gravura, aquarela, mau riso
e mau choro sobre círios imperfeitos. Óleo sobre tela. Mãos
peludas segurando um pincel. Uma dor profunda e uma alegria
divina. Um porre de vinho, manchas no lençol, um anel grande,
amarelo e robusto... um susto meu tio, um susto.
*
Ricardo Soares é escritor, diretor de TV e jornalista.
Publicou Cinevertigem
(ed. Record) e os romances juvenis
Valentão
e Dia de Submarino (ed. Moderna), entre outros títulos. Dirige e apresenta
o programa Mundo da Literatura da Rede Sesc Senac de Televisão.
|