ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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TENTATIVA

 

Ro Druhens

 

“... pois tanto mais nos desencontros nos revemos,

tanto mais nas despedidas consentimos”.

- Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

... ou, só mais uma. Tentativa. Tantas vezes ensaiara e nada eram além de cicatrizes, sangrando a impossibilidade nas tardes vermelhas. Mistérios do entardecer. Se de nós o resto é eu, desfaça-se, pois que feito está.

Curvas e surpresas. Distâncias e esperanças. Linha reta em direção ao abismo e, todo o tempo, monótona coreografia sobre o nada. Jogo de amarelinha na calçada; céu e inferno. Se da foto exalava o cheiro de poucas primaveras, o sol que a iluminava já o ameaçavam nuvens de inverno. Vento frio que espalhasse até os confins do nunca mais o calor acontecido entre as flores do lençol. Se de nós resta eu, desfaça-se, pois que desfeito está.

Chegasse a noite, viesse ele, esperaria no portão. Nova fronteira demarcada, trepadeiras. Novo limite estabelecido, damas da noite. Estrelas respingando lágrimas. Orvalho iluminando o medo. Desfeita a mesa. Feita a cama. Mala posta à cabeceira. Arquivo morto de viva dor. Sobrevivente do naufrágio dos desejos. Se de nós resta eu, desfaça-se, pois que um é quase nada.

Chegasse a madrugada, viesse a luz, desesperaria à janela. Veria rastros no jardim. Margaridas desfolhadas no jogo do não-te-quero, não-me-queres. E o café coado amargo. Leite azedo. Pão dormido. Despertar de toda ausência. Preenchendo os cantos, as gavetas, os espelhos. De nós que foram laços, lançada a rede em mar sem peixes.

E a tarde, outra noite, mais um dia. Talvez meses. Anos. Vida toda. Recorrentes ritos. E, de novo. Mais alto, talvez mais gordo. Talvez verdes, ou castanhos. Ou lentos gestos, voz macia. Embalagem de conteúdo adivinhado. Monotonia. Construção de nós a partir de fragmentos do eu, desfaz-se ao primeiro fulgor da manhã.

Enxugou as lágrimas no avental. Pôs a mesa em renda e velas. Fez a cama em linho e seda. E a mala dos desejos, por debaixo. Abriu portas e janelas. Das tranças, desfez os nós, pois que nua esperava.

Mas, tentara.

 

 



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Ro Druhens. Escritora, formou-se em letras (português e francês). Um prêmio: primeiro lugar no "Ferreira Gullar para Poesia em Língua Portuguesa", promovido pela Editora Uapê, em 1999. Participou da antologia Alguns Contistas Contemporâneos (Rio de Janeiro: Editora Uapê, 2000). Publicou Outras Marias (São Paulo: Os Viralata, 2007). Tem textos publicados na internet. [rorodruhens@hotmail.com]

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