ACORDOS
Rogério Augusto
Lisboa, certo inverno.
A relíquia chegou intacta ao Alfarrábio Queirós. Carlos, um cabo-verdiano em busca de dinheiro rápido, negociou facilmente a obra-prima com Camilo, proprietário do sebo. Em menos de cinco minutos, o português de fartos bigodes tinha nas mãos uma rara edição comemorativa de Os Lusíadas. Melhor ainda, por uma bagatela. O estado do livro era perfeito. Capa dura, título em letras douradas. Exemplar sem marcas, exceto o amarelado do tempo e uma dedicatória amorosa na primeira página. Raridade. Bem negociado, pagaria parte do aluguel atrasado do imóvel.
Maputo, fim de um outono.
Naquele dia, o sobrado onde morava Herculano recebeu a visita de sua família. Depois da morte do patriarca, restava fazer a distribuição de sua vasta coleção de livros. A partilha foi rápida. Alguns parentes levaram os exemplares mais caros. Outros, as obras mais renomadas. Eugênia escolheu uma edição comemorativa de Os Lusíadas. Peça adquirida por Herculano numa viagem a Goa. Capa dura, título em letras douradas. Uma dedicatória amorosa na primeira página. Seria útil para o filho. Leitura obrigatória no colégio de rapazes.
Rio de Janeiro, um dia de verão.
O Sebo do Paço abriu suas portas às nove horas. Luís chegou cedo ao local. Procurava por Os Lusíadas. Presente para dar a Virgílio, seu avô que completaria oitenta anos. Português, nascido em Coimbra, o avô de Luís era apaixonado pela obra de Camões, embora nunca possuísse o celebrado livro do escritor conterrâneo. Na prateleira do sebo, despontava uma edição comemorativa do clássico lusitano. Um cliente trouxe de Macau.Impecável. Capa dura, letras douradas. Na primeira página, uma dedicatória amorosa.Não era barato, mas Virgílio merecia o mimo do neto tão querido.
Luanda, na última primavera.
Carolina entrou na Livraria Angolense com uma única intenção. Recuperar a edição comemorativa de Os Lusíadas, pertencida a sua tia, Inês. Emocionada pelo resgate, Carolina tocou o livro com carinho. A preciosidade chegou de Bissau, na noite anterior. Uma encomenda cara. Mas ela não se importou em bancar. Foram muitos anos em busca da relíquia em terras longínquas. Pedido constante da tia enferma. Destino, quase um milagre. O livro estava inteiro. Capa dura, letras douradas. Na primeira página, a prova de um amor perdido em forma de dedicatória. Saudade.
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Rogério Augusto nasceu em São Paulo, em 1967. Publicou o livro de contos Além da rua (Com-Arte). Participou das antologias Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê), Visões de São Paulo (Tarja Editorial), 35 segredos para chegar a lugar nenhum (Bertrand Brasil) e da coleção Muro de Tordesilhas (Amauta). |