ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

RUE DUPHOT, 8



Silvana Guimarães


O piano brilha no palco vazio Os músicos entram O teatro está cheio O homem e a mulher estão sentados na quarta fila central O vestido dela é vermelho Tem um corte do lado até a metade da coxa direita Ela cruza as pernas Uma delas nua se não fosse a meia Eu não devia ter vindo ela pensa Não sem avisar Eu não devia As pessoas em volta conversam O homem aperta a mão da mulher na sua As luzes do teatro piscam Os músicos preludiam O golpe do arco no cello (portato) Entram o maestro e o pianista Vai começar Silêncio O pianista senta-se no seu lugar O maestro anda até a frente do palco e cumprimenta a platéia Seu olhar de sol poente vagueia autômato sobre as pessoas Até tremer na coxa nua dela Até reconhecer os olhos dela Luas cheias Verdes O homem estranha o frio da mão da mulher na sua Eu não devia Escuro Dois focos de luz se cruzam no meio do palco Um no maestro em frente à orquestra Outro no piano Eu não Agora O maestro levantou a batuta  

BACH, Johann Sebastian. Cello Suite No.1 in G, Prélude.

  

O homem e a mulher entram no quarto do hotel. Paris é uma festa mesmo no inverno ele diz arrependido. Ela não ouve. A sentença fica boiando no silêncio dos olhos vadios dela. Você está feliz ele pergunta desajeitado. Está gostando da viagem? A gente estava precisando, não? Gostou do concerto? Ela responde você já me traiu? Tira os sapatos o vestido as meias a calcinha os brincos deita-se de sutiã. Você tem cada uma, ele nega. Seu corpo de black tie deitando-se sobre o dela. A bunda do homem mexendo (spiccato). Mexendo. Pra dentro Pra fora Pra dentro Pra fora Pra fora  

CHOPIN, Frédéric François. Prélude, Op. 28, N°.4 in E 'Suffocation'.

 

De manhã ela acorda primeiro. Eu sempre quis te amar ela pensa olhando para o homem que dorme. É tarde ela diz empurrando o braço dele adormecido em torno dos seus seios. Bonjour ele suspira enfim feliz. Antes de dormir eu pensei que a gente devia ter um filho. Ela não ouve. Antes de dormir pensou nas mãos do maestro (martelé). Você já me traiu? Ela insiste em saber. O homem tira o resto da roupa que dormiu com ele. Senta-se na cama. Nu e sincero confessa o nome da melhor amiga dela. Confere datas. Conta detalhes. Tenta motivos. Alisa o suor do peito. Procura mais fôlego sob o verde valente dos olhos dela. Paris é uma festa mesmo no inverno ela diz sorrindo. E sente uma saudade esquisita de subir em árvores. O homem sente outra coisa. Um mal-estar súbito. Algo no coração que ele ainda esfrega. Até parar. Até ela se desesperar. O telefone. A mulher liga para a recepção. Mon mari mort ela avisa. Procura o casaco. Encolhe-se dentro dele agachada. Os braços envolvendo os joelhos. Num dos cantos daquele quarto azul. Azul azul azul. Insuportavelmente azul.  

TCHAIKOVSKY, Pyotr Ilich. Concerto for Violin and Orchestra in D, Op.35

   

A mulher veio depois do almoço do maestro, eta homem mais fominha e de paladar tão exótico: além de sádico, mistura queijo-de-minas com foie gras e doce de leite, deixa poucas migalhas, tenho que me virar pelo apartamento sombrio. Quando ela chegou, ele já esperava, a porta estava aberta e ele disse "tire o casaco", ela tirou, ficou nuinha em pêlo, pelo jeito, se ele dissesse "voe", ela voaria, mas agora estavam se agarrando, se lambendo, se babando, "onde eu me acabo", ela sussurrou com pressa, ele respondeu "aqui, ó, aqui". Eu nem vi o ó, com essa fome danada, aproveitei o ensejo, corri pra dispensa, que é onde ele foi me achar, atrás de uma garrafa de vinho, azar o nosso, meu e da garrafa, que ele carregou. Ela, debaixo do braço direito, eu, suspendido pelo rabo preso na sua mão esquerda, meus olhos se arregalando dentro dos olhos dele, encarei, ele riu da minha valentia ou da sua boa idéia, vai saber que idéias agiam naquela cabeça, talvez me fazer de spalla e de bobo, e saiu andando, me balançando no ar. Entramos os três, o maestro, a garrafa e eu, no quarto onde havia uma cama de casal e, amarrada nela, peladinha da silva, a mulher, um frágil X vendado. Só deu tempo de eu ouvir a voz dele, grossa, rouca, perguntar afirmando "você me ama", levar o susto e escutar o "sim" fraquinho dela, já caído naquele corpo, tontos, o corpo e eu. E notar que melhor sorte nessa hora teve a garrafa de vinho, que ele abriu com método e implicância, sentado numa cadeira ao lado, demorando a derramar um bocado no copo em cima do criado-mudo, eu disfarçando pela pele dela afora, galgando seus cumes, melando todo nas suas águas, roçando-me nas suas marcas rosadas, tateando seus calafrios, trançando nas suas veias azuis, onde girava um mundo de vontades e medos. Pensando por que não nasci gato, os gatos usam a cauda para se equilibrar, os gatos usam 32 músculos para controlar as orelhas, os gatos conseguem ouvir as suas presas rodando as orelhas independentemente uma da outra, há mais gatos em Londres do que pessoas na Noruega. O maestro, decerto, pouco se importava com meu modo de pensar, pelo seu sorrizinho sarcástico devia estar pensando na piada que pergunta qual é a diferença entre Deus e um maestro e responde que deus sabe que não é um Maestro. De repente ele se levantou, me deixando ver, num relance, seu facho aceso e torto. E partiu pra ignorância, acertando um sustenido de direita no pé da minha orelha, que saiu comigo tropicando pelo quarto, eu disposto a voltar pra dispensa, apesar da bambeza, arriscando uma olhada a tempo apenas de perceber o corpo dele desabando sobre o X, um Y violento que invadia a mulher, os gemidos dela, a bunda do maestro mexendo (staccato spiccato), mexendo, pra dentro, pra fora, pra dentro, pra fora, pro fundo.

Tem três dias que eles estão nessa função.

COPLAND, Aaron. Fanfare for the Common Man, for brass orchestra & percussions.

 

Tudo azul?

Era assim que uma vizinha de infância me perguntava se estava tudo bem. Ela me deixava irritada. Como a outra, gorducha e ofegante, que sempre respondia com bolinhas cor-de-rosa e sorria, piscando um olho só, cúmplice, que antipatia. Como mamãe, que passou a vida tentando me convencer da beleza que há no azul, sobretudo, naqueles vestidos de organdi suíço que ela mandava bordar para me amordaçar, singelas camisas-de-força. Não adiantava nada papai (staccato volante) invocar a santa paciência (dela) e o direito da menina (eu) ter gosto próprio: cresci com pouca cor, quase nenhuma coragem. O que seria dos olhos, se todos gostassem da remela? E do branco, se todos preferissem o negro? Cansei de ouvir ele dizer. Não adiantou nada. Fui domada pelo azul.

Tudo azul?

Agora sim. Ele morreu. O homem que nasceu para ser o senhor do meu destino, cercar-me de luxos e ouro, até um anel de diamante naturalmente azul e adequado a poucas mulheres no mundo, vida boa, sexo regular e sagrado nos dias ímpares, discreta intimidade com o poder, tráfego folgado no jet set e na espetacular residência com meia dúzia de salas, quartos, banheiros, piscina, sauna, ampla área de lazer e vista definitiva para a solidão. Mamãe nunca errava.

(Nada mais azul que a ausência de significado, o desamparo, o aniquilamento, o desespero. Tudo azul da cor do céu que nos desabriga, da cor do mar que nos afoga. Lindo na poesia e nos jeans. Perfeito nas receitas dos remédios suicidas.)

Precisava sair daquele quarto. Sair no rumo do meu desvario.

Mas havia a porta giratória do hotel.

MOZART, Wolfgang Amadeus. Marche Funebre del Signor Maestro Contrapunto.

   

Portas giratórias, daquelas cheias de vidros dividindo as partes, sempre me confundiram. Eu nunca sei se elas me levam ou me trazem. Sou capaz de gastar um tempo sem fim rodando no seu interior, a direção perdida, ou quase. A porta daquele hotel me trouxe de volta ao quarto (ricochet). Fiquei ali zanzando por um tempo, a memória vindo à tona. Ao telefone, primeiro pedi urgência com aquele corpo que eu não queria mais. Morto ele não valia nada, era só mais um traste, a bagagem inútil que se perde com prazer em qualquer aeroporto (deixaria a outra bagagem também, não seria difícil viver sem o seu peso). Depois liguei para um número há anos guardado na ponta da língua. O maestro. O arrepio gelado entre o umbigo e o coração.

Você me ama?

Muito.

Eu vou.

Minha liberdade é vermelha, descobri em seguida. Como o começo de todas as auroras. E saí nua se não fosse o casaco, cega, ao seu encalço. Com a mesma certeza que tem o chicote no ar. Antes de açoitar.  

BEETHOVEN, Ludwig van. Violin Sonata No.5 in F, Op.24 'Spring', Allegro.

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Silvana Guimarães (Belo Horizonte, MG). Inédita. Foi pianista, socióloga, especialista em transporte público. Agora escreve. Pura vingança. Co-editora da Germina — Revista de Literatura e Arte, http://www.germinaliteratura.com.br

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