ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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LÍNGUA DE REIS

 

Verônica Couto

 

Foi preciso subir o morro para contar essa história.

De lá de cima, o que eu posso ver? Muito pouco.

Noto que, para que ele se aproxime do caixão, os policiais abriram uma clareira armada no meio do povo. E que, pelos gestos largos, a avó dele deve estar tentando lhe consolar:

— Meu filho, Elias é nome de profeta de Deus e significa muitas coisas. Tenha fé.

Pois o Elias enterrava agora o último dos três irmãos, sem encontrar a palavra nem o significado certo para odiar nem sofrer. Confusão de sinais que foi a minha vingança.

Durante muito tempo, a gente tinha medo até de olhar para o Elias. Figura impressionante, que foi ficando maior, tão maior, que um dia alcançou de ser invisível — arte para usos extremos. Ouvidor e silenciador. Com os cinco sentidos no vento, nas pipas, no caldo de cana. Mau e inteligente. A pele descartável de uma cobra com asas.

Impossível reconhecer nessa potestade o menino — prodigioso de sabido, mas menino — que vi crescer. A avó carregava o Elias criança todo o dia à igreja para estudar a palavra. Ele aprendeu e se encantou. Uma vez riscou assim na porta de ferro de uma biboca: "Jogarei fora tua posteridade". E o dono do lugar perdeu duma vez filhos, netos e um bisneto. Não era um sujeito bom, mas depois deu dó.

Eu lastimava sinceramente. Suava, mal-dormia, arrependia. Ficava pensando no inferno, com medo das almas, principalmente as conhecidas. Depois, resolvi me concentrar nos métodos e pensar reto. Daí, acostumei, picado e lapidado pelos livros. Aprendi das palavras sem igreja muito mais do que o Elias na Bíblia — tanto que estou aqui, solto, contando, e ele lá, preso.

Na infância curta, ele e os irmãos dividiram a fé da avó, o desmazelo, a mãe chapada, a vidinha descalça. O Elias era quieto e gostava de mim, que estudava muito, falava pouco, morava perto. Parede com parede, foi a fissurinha por onde infiltrei, bem mais tarde, a língua e os sentidos contrários, que agora dão filhotes nos puxadinhos por aí.

Em pouco tempo, o Elias estava formado. Passou dos corres rasantes a chefe de estado-maior daquela terra sem-estado. Da fama, dentro e fora das linhas, nasceu o medo no povo. Às vezes, as forças vinham em chamas no seu rastro. Ele virava ar.

Rasgou as beiradas da terra, inaugurou trilhas secretas, construiu casamatas e desbravou roteiros movediços aonde ninguém ia. Só o bando desassemelhado, que se espalhava feito água na laje.

Falavam dele, por ele, para ele.

E desse jeito impróprio de falar — circular, repetido e colorido —, inventei de erguer uma trincheira. Um que outro modo de dizer, mais as frases escolhidas para servirem noutros propósitos, uma coleção de segredos de dicionários, a melodia quebradiça da rua parangolando os escritos da igreja... Tudo isso, remix e recombo, não devia, mas deu na língua artificial, não nativa e isolante do Elias. As palavras camuflavam e desigualavam os seus na hora de cumprimentar, de mandar fechar a porta do bar. A sintaxe revelava aquela inclinação particular, ardida, dos violentos devotos do Elias. No fundo, quanta repetição... Mas impressionava.

No início, eu andava colado nele, inventando pronúncias, misturando sotaques, num trabalho vaidoso de descosturar o estilo e fermentar o ritmo. O dialeto se movia blindado nos vocabulários de todo dia, encapado numa fala farrapa. A história depois deu carne e ossos ao verbo, aos adjetivos e aos substantivos. Sangrou a gramática. Falar era se batizar ou cair.

Era preciso aprender rápido o repertório dos Reis.

Os irmãos Azael, Jeú e Eliseu, nascidos João, André e Luís, formavam o escudo maior do profeta. Uns gigantes. Eliseu foi o último a passar, e o primeiro por quem Elias teve que pedir favor na detenção — para poder vir a este enterro seco.

A desorientação dos códigos durou muitos anos e atravessou todos os capítulos dos livros dos Reis. Virou do avesso o nome das coisas e da comunidade, rebatizada, por ele, de morro do Tisbita — a alcunha do profeta. Alguém prometeu trazer pra cá uma estação de trem, que autoridades desavisadas pensaram até chamar de Estação do Tisbita. A tempo, foram informadas de que o tisbita do morro não era palavra de índio nem tipo de flor. Desistiram do nome e da estação. Aqui não para trem nem ônibus. Aqui não para nada. Aqui se corre. De manhã, descem embolados miliuns meninos, que de noite sobem na fome da pedra e da bênção.

Imagino o que vai, agora, na alma da vó do Elias, medonha feito ele, ofegando aqui ao meu lado. Nas ruas, ainda lhe dão passagem, respeitosos, mesmo os garotos menorzinhos. Mas a velha já ouve rarear a língua do neto. Corrige uns, cospe noutros, pragueja. À toa. Muito bem encoberta, a traição vai secando a linhagem dos juramentados e esfarelando as palavras sagradas. Da cadeia, Elias, o tisbita, já não manda, nem vê, nem sabe. Há quem duvide se ele reza.

— De onde veio esse mal, filho? — A vó pergunta com a dentadura trincada, queixo indo e queixo vindo, alisando o meu braço, na mágoa de ver partir o Elias algemado, pelos portões de cemitério.

Eu sou a arca dos segredos da língua. Agregado de muito tempo; e muito tempo, em geral, é um bem e um mal nos lances das fidelidades. Por isso, abaixo a cabeça, num cochicho sonâmbulo:

— Está chegando o dia do grande redemoinho, vó, se firme.

Ela não entende nada, mas também não admite. E eu deixo correr por dentro a raiva antiga do Elias e desse falso idioma maldito, que eu construí para ele, crente que era meu. Língua ordinária, que não valeu de nada, nem para salvar do fogo a única mulher que eu quis. Primeiro, reservada à chefia, e depois aos cachorros, feito Jezebel.

A moça falava direito, com uns ecos sertanejos e diminutivos de Minas Gerais. Coisa linda. E eu ficava de longe para não estragar. Até que o Elias quis. Ela não quis. Eu mesmo só soube depois, porque andava viajando, e nem tive de tempo de ensinar a ela a palavra certa para dizer não.

A notícia da execução chegou assim distraída, de raspão.

Que dor.

Estalei em montões de pedrinhas, tremas, travessões, lembranças de cedilhas enroscando cachos do cabelo dela, rancores e fisgadas terríveis. Fiquei decomposto. Rachado e mudo.

Esperei entre parênteses. Até fundar outro jeito de falar — de mim para mim, sem tradução.

 

*

 

Beijo a vó do Elias com cinismo e saio do cemitério na intenção da estrada para o Paraná. Antes de deixar o estado, na madrugada ainda, tomo a saideira com um capitão. São tempos do Novo Testamento. Antes da manhã, um redemoinho, nos dois cantos da cidade, vai carregar a avó e o neto para o inferno. As ruas serão salgadas, vão mudar de nome e de direção. No morro do tisbita, não sei a língua de quem o povo agora vai falar. Elias é nome de profeta de Deus e significa muitas coisas. Fico pensando: hum, é, e daí?

 

 



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Verônica Couto (Rio de Janeiro/RJ, 1963). Jornalista, vive em São Paulo desde 1992. [veronica.couto@gmail.com]

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