ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

TRÊS HISTÓRIAS 

 

Vinícius Canhoto 

 

 

 

I - NO JULIETA, NO CRY

 

Julieta pode ter sete namorados, um para cada dia da semana, e todos eles falarem inglês, para esquecer a língua de Romeu. Julieta pode ter cinco maridos militares, um para cada casamento autoritário, e todos eles serem ditadores, para torturar a subversão de Romeu. Julieta pode ter quatro amantes, um para cada estação de equinócios e solstícios, e todos eles terem religião, para chamar de comunista e ateu a Romeu.

 

Julieta pode possuir trezentos e sessenta e cinco vestidos, um para cada dia do ano, e cada um deles serem de cada cor, para discriminar a cor de Romeu. Julieta pode possuir oito milhões, quinhentos e onze mil, novecentos e sessenta e cinco sapatos, um para voltar cada quilômetro da rua Oiapóque à rua Chuí, e todos eles de salto alto, para andar de cabeça erguida e ar arrogante sobre a terra que já foi de Romeu. Julieta pode possuir uma tonelada de maquiagem, um quilo para cada aparição pública, e toda ela dar-lhe aspecto real, para maquiar a verdadeira face de Romeu.

 

Julieta pode viver em duas famílias, uma para cada esfera social, e todas elas representarem personagens politicamente corretas, boa filha, filha de Deus, para ignorar a existência de Romeu. Julieta pode viver em três casas, uma para cada seção burocrática, e todas elas a legitimarem, mas uma delas ela fechou, para, nos porões, condenar Romeu. Julieta pode viver sete vidas burguesas, uma para cada cemitério clandestino, e todos eles ocultarem, nos subterrâneos, os companheiros mortos e desaparecidos de Romeu.

 

Julieta pode usar noventa milhões de bandeiras numa copa do mundo, uma para cada habitante, e em todas elas estarem escritas duas opções, amar ou deixar, à escolha de Romeu. Julieta pode usar seis sonetos ou quatro receitas de bolo, uma para cada página do jornal, e todas censurarem notícias de Romeu. Julieta pode usar treze órgãos para sobreviver, um para cada organismo, e todos eles atuarem como anticorpos a repelirem os vírus de Romeu.

 

Julieta pode falar vinte e uma mentiras, uma para cada festa de aniversário, e todas elas formarem uma versão oficial, para calar a voz de Romeu. Julieta pode falar cinco atos institucionais, um para cada movimento de oposição, e todos eles, legalizarem a repressão de Romeu. Julieta pode falar depois de milhares de perseguidos, desaparecidos, assassinados e exilados numa volta lenta, gradual e segura, num processo de anistia de Romeu.

 

Julieta pode acordar algumas vezes de seu velado sono, uma para cada sístole e diástole e todas elas para abrir e fechar as entranhas daquele que, sob o efeito de um veneno, delira deitado em berço esplêndido, e, num ato de vingança, puxar um punhal e enterrá-lo no peito de Romeu.

 

 

 

 

 

II - A PAIXÃO DE PACO

 

 

Paco não teve chance.

 

Filho bastardo de José-Ninguém e de Maria-vai-com-as-outras. Paco não teve ensejo.

 

Os reis magos que vieram visitá-lo na manjedoura eram os quatros cavaleiros do Apocalipse e trouxeram consigo a fome, a guerra, a peste e a morte. Paco não teve esperança.

 

O rei do Tráfico não queria choro no morro e mandou matar todos os recém-nascidos, mas quando os capangas chegaram na maloca e viram o menino naquele estado pensaram que os anjos já haviam se encarregado do serviço. Paco não teve condição.

 

Ainda menor, foi batizado por João Batista que deu na mão um revólver, o apelido de Paco Maluco, e descabaçado por Madalena que deixou no corpo doenças venéreas e um brilho no olho. Paco não teve sorte.

 

Jogou o destino nos pés como centroavante durante quarenta dias nos campos de terra da várzea. Era um craque apesar do crack, mas na última peneira os zagueiros quebraram suas pernas. Paco não teve paz.

 

A lepra apodreceu seu pai, o fluxo de sangue matou sua mãe, a catarata cegou sua irmã, os fariseus enlouqueceram seu irmão e a febre tifóide enterrou sua sogra. Paco não teve trégua.

 

A cabeça de seu padrinho foi entregue à alta sociedade beira-mar e o corpo de sua mulher apedrejado pela comunidade da favela. Paco não teve piedade.

 

Seu primeiro crime hediondo foi o seqüestro e assassinato de Lázaro, dono da boca e do bar. Paco não teve redenção.

 

A multiplicação do pó, das penas, prisões e tributos à polícia o fez andar sobre as águas do ódio e ensinar aos presidiários a parábola do desertor. Paco não teve fé.  

 

Fez o sermão do morro e ensinou a lei do silêncio. Paco não teve escolha.

 

Juntou-se a mais doze perdidos na noite suja e formou uma quadrilha que causou medo em toda cidade. Paco não teve volta.

 

Dentre os doze, um era tira e armou uma tocaia. Paco não teve perdão.

 

Os soldados cravaram-lhe os cravos de pistolas automáticas e cuspiram-no como se fosse o rei dos judeus.

 

Paco nunca teve a mão distraída de Deus ou o braço desafinado do violão.

 

 

 

 

 

 

III - SEMENTES DO MAL EM SOLO SEM VIDA

 

 

Tu! hypocrite lecteur! ¾ mon semblable, ¾ mon frère! Não viste que abril é o mais cruel dos meses?

 

 

Eu, Tirésias, embora cego, vi aquilo que não viste na hora violenta, a hora em que a noite nos arrastava para casa, uma garota branca como a neve do esquecimento ingressava da cidade irreal para ciudad de pobres corazones num trem de subúrbio desaparecida da casa de sua madrasta e do caçador. Bela a vi com seu corpo esquálido, anca esquelética, braços laços e cabelos molhados a ler o inferno de Dante enquanto a locomotiva se movia e saía da estação liberdade.

 

No vagão havia setenta e oito pessoas divididas entre arcanos maiores e menores. Não consegui distinguir todos, apenas discerni o mago do louco, o enamorado do enforcado, a papisa da imperatriz. No entanto, vi que branca de neve estava entre a roda e o mundo. Com vagas visões, eu, Tirésias, já pré-sofri aquilo que ainda não havia visto quando embarcou na estação igualdade sete gigantes marinheiros fenícios. Esses malditos marujos, como uma impudica matilha, tentaram captá-la com carícias, mas foram repelidos e, decididos e excitados, ataram e capturam-na, arrastando-a para o pavimento do trem e despiram-na, debruçaram-se sobre ela. Esses miseráveis filhos da necessidade! Cães no cio! Fechei os olhos para não ver, mas já era cego, tapei os ouvidos para não ouvir, mas já era surdo, calei minha boca para não gritar, mas já era mudo como os demais expectadores. As mãos dela não encontraram defesas e a indiferença foi tomada por acolhimento e complacência. Ela era jovem demais! Sua alma exasperada e desesperada, seus entediados e inebriados sentidos. Eu não podia falar e os meus olhos cúmplices velaram-se. Eu não estava vivo nem morto, ainda respirava. Os silêncios eram piores que os estupros.

 

Na chegada à estação fraternidade, no chão úmido, o tronco nu ostentava sem pudor o mais completo abandono. O aspecto singular daquela solitude, a meia fina rasgada no joelho escoriado, nos dava uma sensação de melancolia culposa, a de uma orgia lancinante. Um olhar vago e branco, assim como um crepúsculo, escapava de seus olhos cruentos e vagava pelo vagão de olhares indiferentes e cruéis. Um suspiro vindo de sua boca sangrada e mordida parecia dizer: "Ainda bem que acabou".

 

Abriram-se as portas. Nós, compassivos, que vivíamos e morremos naquele momento com um pouco de paciência, saímos calados enquanto os sete marinheiros saíam a cantar velhas cantigas do mar. A garota branca como a neve do esquecimento ergueu-se só às apalpadelas e saiu ajeitando a roupa. Ao passar pela faixa amarela da estação, uma sibila ofereceu-lhe uma maçã. A garota aceitou e comeu sem fome, sono ou pecado.

 

Longe da turba impura, negligente e silente, num banheiro sujo, a bela se limpou das sementes do mal. De repente, voltou-se e olhou-se um momento ao espelho a perguntar: "Espelho, espelho meu. Existe terra mais devastada do que eu?" O espelho nada respondeu, ela sentou-se às margens das águas do vaso sanitário e chorou.

 

 

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Vinícius Canhoto, nasceu em São Bernardo do Campo, em 1979. É estudante de Filosofia. Colaborou na revista Coyote e tem dois volumes de contos inéditos.

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