NATUREZA
MORTA 17/21 - DA SÉRIE MAÇÃS DE CERA
Wagner Gil
Fui dar uma volta pra
conhecer o lugar e experimentei fazer sexo com recém-nascidos
só para ver como é que era e não gostei.
Num outro país pulei sem pára-quedas da estátua
mais alta e lá embaixo um gigante me esperava com braços
plácidos, soergui-me e fui embora imediatamente. Num
outro continente carregaram-me no colo de um lado para o outro
durante toda a temporada. Já no arquipélago
de nuvens estáticas, eu fui acordado durante os 40
dias da minha estadia com 4 mãos que me despertavam
dos sonhos com movimentos circulares e ritmados em adágio,
ma non troppo; andante moderato e presto fortíssimo.
Em seguida mergulhavam meu corpo em ofurôs hereditários
com leite de cabra, gordura de baleia com amêndoas,
e por fim no de sangue de moça. É importante
dizer que a sessão descrita proporcionava em mim a
capacidade de enxergar claramente durante as 24 horas subseqüentes,
sem que necessário fosse o levantamento das pálpebras.
Vê-se com mais atenção o infinitamente
pequeno e o infinitamente descomunal, o que está ao
alcance de nossas vistas nuas não nos alcança.
Poder-se-ia dizer também, que o essencial é
translúcido aos olhos. Numa outra viagem aportei num
país esmaecido e ali me propus uma cegueira temporária
– previa três, mas foram dezoito dias. Nessa época
conheci o mundo pelo contato dos corpos e suas temperaturas;
pela fluidez dos líquidos e seu grau de adstringência;
pelos zumbidos, arrastar de chinelos, espirros estridentes
e soluços graves. Fui transportado por nuvens em filetes
como nos desenhos animados que penetrando pelas narinas me
faziam de sr. Leôncio levitando até chegar de
olhos fechados e sorriso maroto ao manjar aromático.
Viaja-se acreditando em tudo que
é exótico. Está escrito nos impressos
de viagens um pouco daquilo que não acreditamos. Naquele
dizia: “...onde vendem desde carne de cobras, vacas,
porcos e meninos virgens”.
Fiquei no hotel bebericando e vi
pela janela milhares de pessoas se afogando no mangue. Da
outra janela um outro hóspede repetia em disparada
o sinal da cruz. Outro dia conheci uma feira de antiguidades
onde não se vendia nada, só a troca era possível.
E para selar o acordo um dava no outro uma chupada no pescoço.
Perder é aceitável mas perder-me não
posso, pois não me encontraria jamais. Só no
meu mundo eu me uno – mas ele não existe. Então
voltei ao lago pra me refazer, mas ele estava seco. Pedi ajuda
como quem pede comida por necessidade mas não me atendiam
na minha língua. Entrei nas salas de ambientes de um
cyber café e masturbei mortos até que lhes voltassem
o ânimo e eles me imploraram para deixá-los em
paz. Asqueroso! gritaram em uníssono.
Habitam de palácios a quitinetes.
Poleiros e buracos também servem. Estacionei o carro
urgente próximo a sarjeta e da boca de lobo serpenteou
um homem de meia-idade agarrando minhas pernas com suas patas
lodosas como se fosse um cachorro no cio e gozamos um depois
do outro. Ele ejaculava um carmim fétido que impregnou
bem aqui ó nas minhas unhas, pregas e entranhas.
Encontrei Lúcifer chorando
e se definhando em tristezas mundanas. Fiz o que devia ser
feito: afaguei seus cabelos para que dormisse e depois liguei
para a polícia.
Não fazia sol, nem chovia.
Na Autovida, os carros de 0 a 100km/h em apenas 4,3 segundos
ficaram pendurados nos prédios como bolas multicoloridas
em árvore de natal. Da outra janela um outro hóspede
não tão espantado confraternizou: Feliz Natal!
E eu só consegui dizer: Feliz Natal, Feliz Natal! E
depois a cidade toda em coro.
Todos sabem o que fazer perante
a estátua do Cristo Redentor, só que eu nem
tanto, então ainda criança – com toda
vergonha e acanhamento que carrego até hoje - fazia
o sinal da cruz como quem coça o corpo. A primeira
coçadinha na testa, depois no peito e assim se seguia,
e me ruborizava se alguém no ônibus percebia.
Viaja-se acreditando em tudo que
é exótico. Está escrito nos impressos
de viagens um pouco daquilo que não acreditamos. Naquele
dizia: “...gérberas translúcidas, golfinhos
verdes, jacarés hermafroditas...” O agente me
confidenciou: “cuidado: o bicho homem não é
previsível, ele é surpreendente”.
Na fachada de um misto de ateliê
e antiquário, havia uma pequena lousa verde escura
com os dizeres: “aceitamos maçãs de cera
como modelo para uma pintura.” Automaticamente lembrei-me
das frutas no hall do hotel. À noitinha duas maçãs
se acasalaram por debaixo do meu sobretudo. No dia seguinte
eu estava onde deveria estar. Dois homens – um fraco
e outro forte - violentaram a loja, arregaçaram o caixa,
esfaquearam quadros, imolaram o proprietário e me açoitaram.
Acho que por causa da minha incapacidade de chorar, o homem
mais fraco veio de estilete em punho em minha direção
e numa estocada seca dilacerou minha orelha esquerda. Nada
adiantou.
Em determinado lugar, não
falo qual pois pode ter mudado, encontrei minha alma gêmea
aristofaniana, não falo qual pois pode ter mudado.
Eu mentia, ela mentia, depois ela mentia mais um pouco e eu
não aceitava perder o posto. Hoje só trocamos
e-mails e continuamos sendo os mesmos impostores. Nada mudou.
Só nos conhecemos melhor. E afirmamos convictos que
mentimos e nos enganamos bem - sem nenhum mal no coração,
sem nenhum rancor no fígado, sem nada a temer.
Fiz, mas não me lembro onde:
cooper sob nevasca com guardas-costa e ciclismo com capacete
e colete a prova de balas. De um certo lugar à outro
tive que viajar em comboio carregando imagens santas como
passaporte. Numa prova de tiro abati 3 mamutes e duas velhas
senhoras conseguindo com isto apenas um mísero certificado
de participação. Participei de um rally armado
até os dentes e venci, levando para casa um blindado
que está estacionado aqui na sala de estar.
Hoje quando saio, volto sem
saber onde estive. Hoje quando volto, me deposito com todo meu
peso sobre a poltrona sem querer saber o que aconteceu - esqueço-me
- atestando-me mais uma vez imune e impune. Às vezes
saio e sinto medo das caras que me reconhecem depois de tantos
crimes inconfessáveis e outros secretos. Mas me confortam
a massa aterradora de cúmplices que se submetem à
mim. Então me sinto em casa e vou pra cozinha preparar
perdiz com romanée-conti. Minha casa é
minha máscara , minha cara, minha casca. Minha câmara
mortuária. Minha casa é minha cova larga onde
eu morro cada dia mais um pouco. Pouco a pouco. E mais um pouco.
Até o fim.
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Wagner Gil,
escritor, nasceu em 1969, em São Paulo.
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