ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

O HOMEM QUE SAIU


Whisner Fraga


eu disse, esgarçando o ar com meu grito esguio, emplumado de afetos desditos, e assustados, recorreram ao catálogo de suas compreensões, alguns me imitando e nestes berros afugentaram próprios pensamentos, os fizesse borrar o bocado que fosse de suas inocências, envoltas em lacres & sistemas de segurança, avançadíssimos para o nosso orçamento
surdos, deixava meu quarto pronta para a escola, mamãe foi a primeira e algo sobre louvores, padres-nossos e como eu me arriscaria com esses moleques, laçar um monstrinho em meu intestino, era assim que se referia àquele que hoje tolero no ventre, sanguessuga que não consigo domar
e da mesma grossura fizeram vistas ao meu tio, um nobre fulano pedófilo, hoje estaria tão na moda, mas naqueles tempos, que nem assim distantes, de como enfurnava seus dedos no sutiã, guardando daqueles que apreciava dois arreliados e róseos peitos e de como borrifava seu gozo em minha pele branca, confundisse matérias, se não é a inocência dessa mesma alvura e usando desse argumento justificou perante à santíssima igreja e também ao que de mais sacro em mais ínfima transgressão
que beijei minha irmã e juntas e abençoadas por essa doutrina que enlaça nossa cor à castidade, permitindo com a união o beijo que outrora sujo e proibido, nos dizemos confidências e afagando a cruz nos benzemos com o óleo revigorado, lançando dessa seiva em nossas pernas e se tínhamos corpos semelhantes na aparência, descobri disparidades em nossos raciocínios, porque enquanto eu justificava meu amor com a filosofia de meu tio, ela desculpava a carne com o tino do prazer
não disse que enjaulada um dia, minha mãe vociferava contra meu pai, eu clandestina refugiei-me debaixo da pia, se os dois eram meu programa predileto para uma casa sem televisão, mão em concha, juntei um tanto de merda que ali deixara no dia anterior e untei o rosto com o creme, meu sorriso alheio demais para a infâmia dos dois e dali a pouco era o mesmo cenário, ele entraria em sua cela e chamaria os cães esfaimados e ai daquele que ousasse saciar a bulimia cravasse um canino na carne rija de sua perna, latejando com o sangue das chicotadas e a gilete disposta a traçar outro filete
primeiro meu dedo em minha masturbação, veio ao quarto e a porta não podendo ser fechada, viu-me num canto, nua de costas para a janela, não queria me descobrissem, estatelada no umbral, falou-me é hoje que você entra na porrada e meu irmão tendo ouvido propôs esta outra brincadeira, a que me custou o indicador e treze noites insones
a goiabeira floriu para após esses botões se metamorfosearem em frutas e da janela, desejosos de avaliarmos seu formato e se seria o mesmo daquele das goiabas que mamãe nos trazia quando à feira, aproveitamos seu vacilo e conseguimos, graças ao aparato que meu irmão fabricou e que leva o nome de chave, chegar ao quintal e enquanto pulávamos, tentássemos derrubar um daqueles caroços verdes que explodiam nos galhos, ela nos flagrou e aterrorizados mais pela incapacidade de prever o castigo, seguimos intuindo que chegasse sem demora e dois dias depois, sem nada que avançar à boca e por isso mesmo sedentos e esfaimados, veio plena de couros e supúnhamos o bote, desenhasse vergões em nossas costas, mas não esperávamos que chegasse entre a frivolidade e a histeria, e nessa novidade renovada, o trunfo da tortura, nossos pés amarrados em uma das vigas do teto, sofríamos com o sangue a verter inicialmente em golfadas generosas direção ao cérebro, nossas orelhas esbraseadas, não podíamos afirmar nossos pés ainda valessem para as antigas jornadas, mamãe sacou de sua toalha e enxambrando o medo dos rostos já sem vontade de brincar, colocou dois pratos bastante próximos de nossas bocas, mas distantes o suficiente não pudéssemos alcançá-los, despejando após algumas goiabas podres e exigiu comêssemos, percebendo talvez dispuséssemos de forças para buscar um nada com nossas línguas, entanto não conseguiríamos engolir e se deus generoso o bastante para resgatarmos de onde a bagatela de energia para sulcarmos aquela polpa vencida e ainda lançarmos ao ventre suas vitaminas e fibras, poderíamos confiar em nossa mãe?, vez que ela nada disse e sem a sua permissão era claro que tudo se tornava proibido?, olhei para meu irmão que não conseguia mais cerrar a boca e deixava gotejar sua baba nodosa e amarelada, contemplei o chão úmido e depois a veneziana lacrada com novos aços e clamei por meu indulto
e atulhada novos preconceitos olhando-nos carente forcejando uma expressão de ternura pensei correria dali e recolher-me quando ele e depois ele e ainda ele se postaram braços cruzados e o julgamento que ameaçaram se formava subitamente e não havia, caíra e desmaiado meu irmão silenciara, sentados vociferou um: negra, outro emendou: epiléptica, seguiu-se: , mas não era um tampouco outro disso e pouco compreendia daquela cegueira que me aproveitei afrouxar as correntes e manobras escondida adestrei-me corri para o quintal e acuada enquanto cordas, faca, sigilos, prometi-me acontecer o fosse, sair ilesa
se antes ao cair o guarda-roupa enlouquecido meu pai, um rasgo por onde escorriam sangues e sofrimentos, mirei-me na poça vermelha, horrorizada, descobrir-me como eles, em inumeráveis semelhanças, copiada dos genes de deus, e daí que também injusta?, enquanto desfazia com os dedos, fosse um ciclone, a imagem que jamais reconstruí
e todas demais atrocidades
embora não dispusesse de argumentos supô-las como tais.
até disparar, tropeçando e enfrentá-los porque sem saída?, a porta indicando rumos ignorados, viera a saber que tanta rigidez serviria para me proteger e ambicionando o perigo das coisas emergi intacta em um novo território e não obstante avaliar a amplidão da chuva ou a potência do sol, implorei a fuga, mas arredia me traí e sei que pretendo voltar para dentro, mas ainda ficarei bastante aqui na calçada, é uma maneira de me punirem.

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Whisner Fraga é mineiro de Ituiutaba, autor do livro de contos Coreografia dos Danados (2002).

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