ZUNÁI - Revista de poesia & debates

FLORÍVIA

 

Wilson Bueno

 

Quando você pensar em conhecer Florívia, ilha de paz e remansos em meio ao turbulento Oceano, pense, antes de partir e examinar, ainda outra vez, velames e cordas, âncoras, víveres e instrumentos de bordo, pense em tudo o que sua generosidade ofereceu ao mundo. Não se decepcione nunca contigo mesmo antes de embarcar a Florívia.

Rememore, minucioso, antes de partir, o que houve de coragem ou desassombro a cada vez que a vida lhe exigiu , não o silêncio dos carneiros a pastar as pradarias ou a sombra quieta das árvores aonde você deitou o seu sono paciente.

Pense, antes de partir, se você já não fracassou, de modo humilhante como podem ser algumas espécies de fracasso. Sobretudo ali, pense, onde seu braço foi curto, e desprezível a mão que se encolheu ao bolso a negar o que o vigor do corpo poderia oferecer de auxílio ou socorro. Pense, antes de partir, na  covardia envergonhada que o impediu de salvar alguém ao lado prestes a ser engolido pela garganta do abismo.

Em Florívia não crescem cactos e as praias douram-se ao sol de maio feito um poema todo construído de cochicho, quando, vizinho da noite, o entardecer é só uma extravagância das tintas do céu. Em Florívia dorme-se muito cedo, ainda antes dos passarinhos.

Conversar com as ondas ou com a mudez das conchas e dos caramujos é prática comum em Florívia.  Ainda mais comum do que os longos interrogatórios com que os peixes saciam a curiosidade não-pequena, a medir o tamanho da fé dos recém-chegados.

São bem suaves as noites de Florívia. Ausente de nuvens, o céu é só um drapeado de estrelas que cintilam e reperguntam às ondas, à  faixa de areia das longas praias brancas, de onde vem o forasteiro. E principalmente isso, não se assuste:  se indagarem o que você traz no coração.

Se você uivou na noite  porque era tarde e a solidão o pôs assim num vácuo sem remédio, não, não pense, não vá pensar, a sua arrogância triste, de que, só por isso, você é merecedor de Florívia e de suas escarpas por onde sobem, imensas, monstruosas rosas vermelhas. Se foi, por sua vez, um ser dedicado a si mesmo, a iludir-se de que esse era o melhor modo de doar uma singularidade ao mundo, também não parta já a Florívia.

Embora a vilania e a derrota, o suor da noite grande e o medo andando as paredes da casa, aranha peluda; embora o suplício da espera, melhor não embarcar a Florívia. Lá, no ancoradouro da ilha, em seu porto onde rinocerantes dançam cantigas de boas-vindas e colibris voejam ao redor dos desembarcados feito um enxame fosforescente, só te pedirão uma senha.

Mas aí é que mora o maior mistério de Florívia: ninguém até hoje soube a senha, ao certo. Os que lograram acertar, por pura sorte acertaram a senha a esmo. Mas tinham, dizem, nas mãos – na concha das mãos –, a luz em prata de uma única lágrima. Vertida, contam por aí, face o espanto de sentir a coragem, gume afiado, atravessar de repente toda uma floresta de medos.

Florívia é longe, muito longe, e reverbera em meio ao grande Oceano, nas noites de lua cheia, a sua existência estrelada.

 

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Wilson Bueno nasceu em Jaguapitã (PR), em 1949, e faleceu em Curitiba, em 2010. Escritor e jornalista, criou e dirigiu, por oito anos, o jornal literário Nicolau. Publicou vários volumes de contos, novelas e poemas em prosa: Bolero's Bar (1986), Manual de Zoofilia (1991), Ojos de Agua (Argentina, 1991), Mar Paraguayo (1992), Cristal (1995), Jardim Zoológico (1999), Meu Tio Roseno, a Cavalo (2000) e o romance Amar-te a ti nem sei se com carícias (2004), além de um volume de poemas breves, o Pequeno Tratado de Brinquedos (1996).

 

Leia também outros textos do autor publicados na Zunái: Poemas, Três Contos, um fragmento do romance Amar-te a ti nem sei se com carícias e Aquidauana Afternoon.

 

Leia também um ensaio de Claudio Daniel sobre o autor e confira a homenagem conjunta prestada a Wilson Bueno pelas revistas Zunái, Germina e pelo site Cronópios.

 

 

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