ZUNÁI - Revista de poesia & debates

LÁDIVA

 

Wilson Bueno

 

“Feliz daquele/ que ao ver o relâmpago/ não diz – a vida é breve”.

No micro-poema japonês foi onde encontramos, tarde dessas noites frias, nós, os navegantes de Hérida, a mais perfeita metáfora em favor da vida eterna – senha e sumo de quem se habilita à inenarrável ilha de Ládiva, ao norte do País Eslavo.

De gelo e praias cinzas, Ládiva nunca amanhece. É sempre bruma, e a imaginação da noite, em Ládiva.  A noite imaginada nessa permanência com que a névoa insiste, mesmo quando, ao fim da manhã, você supõe, no céu da ilha um sol de meio-dia.

Contam que, muito antes de nós e de nossos bisavós, ou ainda bem antes destes, os moradores de Ládiva, cuja maior característica, registram, era o engenho para escavar terras e construir túneis, chegaram a abrir, a marretas e pontapés, no céu cinzento, um grande buraco. Por alguns dias, o sol brilhou profuso e obstinado, sem intervalos, sobre Ládiva. E iluminou as praias lavadas pelo azul do mar e pela franja das ondas que sobre a areia se atiram ainda hoje, insistentes, suicidas.

Assim que o buraco aberto por nossos esforçados ancestrais tornou a fechar, voltou a névoa contínua e tudo misturou-se, em Ládiva, ao cinza-escuro quando é a noite imaginada, ou ao cinza-claro, forte indício de que é manhã ou tarde na ilha onde cultuamos os mortos com altas velas e mantras que são quase uma secreta carícia. Isto se não fincamos, ao telhado da casa, os crânios lavados a sal dos mortos antigos. Em Ládiva tudo é assim, surpreendente e novo, como se a morte não houvesse, como se a morte não houvesse mais.

Contudo o que nos incomoda é a imaginação da noite em nossa ilha onde sequer a noite existe, o céu fechado de modo nunca interrompido, sem estrelas, nem mesmo o vazio da ausência delas, ali onde nos postamos, quando é madrugada, e nada descortinamos além do permanente breu e a fuligem eterna das esgarças fumaças. Deambula sobre nossas cabeças um céu sempre móvel, e carregado, que foge, incessante foge para o largo Oceano – como se açulado por forças incoercíveis.

Não por obra do vento, diga-se, posto que em Ládiva o vento gane apenas nas frestas das casas e nunca ascende além que a altura da mais alta edificação da ilha – o templo devotado a um deus que ninguém até hoje soube o nome ou, o que é pior, adivinhou-lhe os preceitos e nem sequer a espécie de oferenda que exige lhe seja colocada aos pés. E sem saber o que um deus quer, nós, os nascidos em Ládiva, vivemos sempre temerosos ante a crua iminência de ser duramente castigados.

Por isso amanhã partiremos outra vez ao continente, em meio à névoa e à neblina. Deixaremos o cais de Ládiva, até que ela seja apenas um ponto perdido, fraco a luzir no horizonte, mas que nossos olhos súplices ainda hão de buscar, com saudade, com muita saudade, feito ela tivesse existido um dia.

 

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Wilson Bueno nasceu em Jaguapitã (PR), em 1949, e faleceu em Curitiba, em 2010. Escritor e jornalista, criou e dirigiu, por oito anos, o jornal literário Nicolau. Publicou vários volumes de contos, novelas e poemas em prosa: Bolero's Bar (1986), Manual de Zoofilia (1991), Ojos de Agua (Argentina, 1991), Mar Paraguayo (1992), Cristal (1995), Jardim Zoológico (1999), Meu Tio Roseno, a Cavalo (2000) e o romance Amar-te a ti nem sei se com carícias (2004), além de um volume de poemas breves, o Pequeno Tratado de Brinquedos (1996).

 

Leia também outros textos do autor publicados na Zunái: Poemas, Três Contos, um fragmento do romance Amar-te a ti nem sei se com carícias e Aquidauana Afternoon.

 

Leia também um ensaio de Claudio Daniel sobre o autor e confira a homenagem conjunta prestada a Wilson Bueno pelas revistas Zunái, Germina e pelo site Cronópios.

 

 

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