ZUNÁI
EM DEBATE
Você
sofre a angústia da influência, à moda
de Harold Bloom?
Reynaldo Damazio: Todo escritor, seja poeta, prosador,
filósofo, crítico literário, sem exceção,
sofre a angústia da influência. Mas não
necessariamente no sentido castrador freudiano, ou no sentido
teleológico, canônico, que lhe quer atribuir
Harold Bloom. Se a literatura fosse uma corrida de obstáculos,
ou uma maratona rumo ao nirvana, talvez a história
pudesse ter parado em Shakespeare. Assim como a música
poderia muito bem ter acabado em Bach. E a arte, chegaria
só até Da Vinci? O problema é que, desgraçadamente,
continuamos orbitando a Via Láctea, inventado mundos
virtuais, matando nosso semelhante de miséria e indiferença,
produzindo novelas de televisão, clonando células
e publicando livros. A História não findou com
Fukuyama e, se não fizermos nenhuma grande bobagem,
tudo indica que o Sol deve levar 10 bilhões de anos
para se apagar.
É óbvio,
mas não simples, que Homero e seus ghost writers enfrentaram
uma vasta mitologia decantada ao longo do tempo na tradição
oral da comunidade; assim como Joyce, tão próximo
de nós, lutou com as sombras do próprio Homero,
da Bíblia e do romance naturalista do século
XIX. Mas a obra de Joyce, verdadeiro pai do hipertexto e do
surrealismo, também se deve ao contexto de gestação
da psicanálise e da teoria da relatividade, bem como
de sua formação religiosa. Ambos escritores
não teriam existido fora de seu tempo, dos embates
e das utopias que o alimentaram, ainda que seus textos transcendam
tudo isso, o que faz deles um paradigma, na feliz acepção
do cientista Thomas Kuhn. Assim como na ciência, o valor
da obra literária também se mede pelo reconhecimento
entre os pares, ou leitores.
Bloom tem alguma razão
ao afirmar que arte é competição,
mas seu argumento está por demais atado à influência
angustiante da ideologia capitalista, que projeta nos gênios
a tarefa histórica e socialmente redutora de realização
dos grandes feitos, como heróis mitológicos
anacrônicos, ou, dito de forma bem mundana, como empresas
multinacionais devorando tudo ao redor. Há algo de
messiânico aí também. Essa competitividade,
na arte, não é predatória, excludente
ou seletiva. Porque o artista não cria a partir do
nada e situado em lugar nenhum. Além disso, a arte
se alimenta do diálogo entre criadores e não
de seu extermínio. Que sentido tem a afirmação
de que nossa sensibilidade foi inteiramente forjada por Shakespeare?
Nenhum, nem como truísmo. Seguindo esse raciocínio
canhestro, poderíamos opinar que a sensibilidade do
homem contemporâneo está mais para uma mistura
de Baudelaire com Kafka. Ou de Dostoievski com Beckett. As
combinações são infinitas, como nos jogos
matemáticos, e conforme o entendimento que se queira
ter da complexidade do real. O argumento de que a explicação
do mundo está na grande obra é fundamentalista,
mistificador e simplório.
Não sou filósofo,
mas tenho cá minhas suspeitas de que foi Heidegger
quem destroçou de modo irrecuperável nosso logos
aristotélico-cartesiano, ou judaico-cristão
(para aqueles de orientação mística),
de uma forma tal que Nietzsche e Marx não lograram,
apesar dos louváveis e hercúleos esforços.
Ainda resta nestes dois pensadores um telos ordenador, seja
a marcha das contradições históricas,
ou uma vontade de potência derivada de nossas paixões.
Em Heidegger, tais ilusões se desfazem por completo.
Daí que provavelmente Joyce tenha alguma coisa a ver
com Heidegger também. Sein und Zeit foi publicado em
1927; Finnegans Wake, em 1939. Isso para dizer que há
igualmente um toque heideggariano em nossa sensibilidade perdida.
Somente um tolo multiculturalista
desprezaria Dante ou Cervantes, e nesse sentido a militância
de Bloom se justifica, mas reduzir a literatura universal
a alguns pilares resulta numa arbitrariedade totalitária
sem precedentes. Que espécie de aberração
sociológica pode supor que entre Camões, Pessoa
e Saramago nos bastaria o primeiro? Estou caricaturizando
propositadamente. Afinal, não parece garatuja dizer
que a erupção do gênio explicaria
Machado de Assis, uma vez que sua obra seria improvável
no ambiente social, político e econômico em que
foi gerada? Ora, são justamente as contradições
daquele momento e o diálogo conflituoso do escritor
com elas que nos ajudam a compreender sua grandeza e sua originalidade.
Independente da genialidade, Machado não teria escrito
Memórias póstumas de Brás Cubas se tivesse
nascido na Finlândia. Devemos então acreditar
que a seleção natural nos teria
legado um clone machadiano? Ou seria a chance
de revelação do gênio de Lima
Barreto, massacrado pelo preconceito e pela exclusão
social? Será que faz sentido imaginar um Machado de
Assis finlandês? Creio que não.
Prefiro acreditar num
tipo de influência borgeana, labiríntica, movente,
dialógica, complexa, que se tece nos meandros da consciência,
no cruzamento de leitura e existência, de história
e idiossincrasias da sensibilidade. O pensamento não
é propriedade individual. Suas raízes, seus
desdobramentos e sua razão de ser se dão no
contexto da sociedade, em tramas que estão no interior
e além do objetivamente estabelecido, como materialidade
da linguagem e como processo de comunicação
aberto. O que menos interessa num autor como Proust é
o aspecto da consciência pessoal, privada, da confissão.
A figura do escritor atormentado, doentio, enclausurado, como
um ente iluminado que nos revele a verdade absoluta serve
apenas para deleite da mídia, ou para a fofoca de botequim.
Agora, aquilo que seu texto revela da luta insana para dar
conta de seu tempo, para encaixá-lo num pensamento
deambulante, incerto; do enfrentamento a uma realidade que
se desfaz, de uma tradição que implode; da busca
de uma literatura que está para além da representação
do real como fato, ou como explicação etc.;
tudo isso talvez justifique sua permanência como marco
literário. Mas é bom frisar: a obra é
importante enquanto realização estética
e não como um protocolo de intenções.
É conhecido o gracejo
de Borges ao dizer que lia os críticos para saber quais
as motivações ocultas de seus escritos. Pode-se
afirmar o mesmo sobre as influências de um escritor.
Que ligações imprevisíveis, filiações
improváveis ou diálogos absurdos estão
nos bastidores da criação? As pistas nem sempre
são evidentes. Não tenho dúvida de que
o maior escritor brasileiro vivo neste momento seja Raduan
Nassar, um gigante canônico surgido depois
de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos (talvez Bloom
só tenha ouvido falar do autor de Grande serão:
veredas). Na leitura e releitura de seus parcos títulos,
aprendi e fui influenciado em maior medida do
que no confronto com muitos poetas, de todos os portes. E
sua influência deve se espraiar em muitas direções,
ao longo de gerações, sem a necessidade de que
se torne uma camisa-de-força, um modelo ou o fim
de um caminho. O fundamental é a originalidade
da escritura, suas qualidades estruturais e sua pertinência
para leitores de todos os repertórios, e não
apenas os especializados. Parafraseando o verso citadíssimo
do espanhol Antonio Machado, a literatura se faz no percurso.
Ela mesma é o percurso. E tal caminho depende da percepção
revelada em múltiplas e renovadas leituras. Importante
é a travessia e não o ponto de chegada.
O fenômeno da recepção inclui, para desgosto
de muitos críticos, as ditas grandes obras,
como a de Nassar, cuja apreciação pode oscilar
segundo os ânimos de seus leitores no decorrer do tempo.
Poderia mencionar outras
leituras imprescindíveis, que injustamente não
gozam da devida atenção, como exemplo de relatividade
do espectro da angústia: Otto Lara Resende, Zulmira
Ribeiro Tavares, Orides Fontela, Max Martins, Samuel Rawet,
Campos de Carvalho, Valêncio Xavier, Hilda Hilst, só
para nomear autores bem recentes, alguns ainda vivos. Provavelmente
os manuais e compêndios não terão espaço
para o livro Resumo de Ana, de Modesto Carone, que está
entre os mais importantes publicados nos últimos anos
em língua portuguesa. Em duas breves novelas que se
entrecruzam, Carone nos oferece uma panorâmica surpreendente
da história da São Paulo no século XX,
a partir do drama comezinho entre mãe e filho. Com
pouco mais de cem páginas, o autor realiza uma obra-prima.
Diante de um livro como este, que tantas indagações
e inquietações nos provoca, soa inútil
reclamar a ausência de um épico shakespeareano.
Nossa época é antiépica por excelência
e isso nada tem a ver com o gênio individual.
Em minha parcial e astigmática
visão das coisas, imagino que fazer literatura implique
ao menos uma rápida olhada em autores desse tipo, para
um atrito saudável, um aprendizado zen, um exercício
qualquer de cognição, ou até um choque
de nervos. A literatura e o conhecimento caminham por essas
sendas tortuosas, por esses contatos imprevistos, por atalhos
que se abrem nas grandes vias. Nenhum caminho é melhor
que outro a priori. Muito ao contrário, todos os caminhos
podem interessar, até mesmo aqueles que aparentemente
não levam a lugar algum. Sei que a obra de Ezra Pound
é importantíssima para a literatura contemporânea
e a tenho lido e estudado com extremo carinho há muitos
anos, mas devo confessar que a leitura de William Carlos Williams
causou maior impacto em minha mente e no modo como encaro
a literatura. Esse processo interno não exclui Pound,
nem pretende reivindicar a superioridade de Williams, o que
seria uma tolice desmedida. Aliás, se alguém
se der ao trabalho de reparar, o que escrevo não apresenta
traços da influência do autor de Paterson. O
mesmo ocorre com o poeta italiano Eugenio Montale, que tenho
lido quase em estado de hipnose, e que nem remotamente se
aproxima dos meus textos. A admiração não
se traduz necessariamente em influência, embora seja
imprescindível.
A angústia, da
maneira pessoal como a entendo, muitas vezes se converte em
trauma da influência, como ocorre com autores que sucumbem
de tal modo à sombra de seus antecessores e só
conseguem produzir pálidos arremedos. É o caso,
me parece, de muitos escritores brasileiros de hoje que estão
realizando uma sub-literatura beat, cópias imperfeitas
de Fante, Bukowski, Burroughs, com ares de um surrealismo
blasé, de boutique. Ou de poetas que diluem sofrivelmente
a poesia de Leminski, em descarado epigonismo. Nessas situações,
recomenda-se ir direto ao original. O problema, suponho, não
está na angústia da influência, mas na
preguiça e na pressa em aparecer.
O oposto disso, lamentavelmente,
é a ânsia da influência, que resulta num
classicismo brega, démodé, aliado a um helenismo
de almanaque. Os autores dessa tendência defendem com
unhas e dentes o cânone e a tradição,
reivindicando para si o direito adquirido da ascendência.
Agem como leões-de-chácara dos patriarcas
da literatura. A tradição se torna muleta para
uma literatura pernóstica, sem o menor interesse, antiquada,
cheirando a mofo. Aqui, é melhor nem perder tempo recorrendo
ao original.
Retomando Borges, penso
que a questão da influência só pode ser
entendida como ficção: de cada escritor com
relação à própria obra, do crítico
em relação à literatura ou até
do filósofo com relação ao pensamento,
próprio e alheio. Ficções que se multiplicam
quando comentamos os autores que lemos ou que julgamos necessário
ler. Como a bela ficção de Harold Bloom ao apresentar
seus clássicos. Defendo o cânone
livre, como o software.
Reynaldo Damazio,
poeta, editor e ensaísta, publicou o livro de poemas
Nu entre nuvens (2000), entre outros títulos.
*
Claudio Willer: Não. Nem um pouco. Nada, nada,
nada, mesmo. Em outro lugar, na revista Babel, coisa de dois
ou três anos atrás, já respondi a essa
enquete sobre Bloom, observando que me parece uma tentativa
de psicologizar rupturas e rebeliões. Enfim, coisa
de beletrista, tradicionalista, por aí. Talvez minha
opinião seja esta por eu não ter passado por
uma formação mais clássica, não
ter tido uma produção de corte mais tradicional,
antes de me pôr a escrever impelido por uma literatura
e uma poética que começa em Lautréamont
e Rimbaud, autores decisivos em minha formação.
Também incluiu, essa formação, entre
outros, Pessoa, Lorca, Saint-John Perse, Jorge de Lima, Octavio
Paz, Allen Ginsberg, André Breton. Influenciaram-me.
E isso nunca me angustiou. Minha relação com
obras que me influenciaram, impressionaram ou com as quais
tenho relação intertextual sempre foi tranqüila,
sem nenhum sintoma de angústia. É de entusiasmo,
antes que de angústia. Gostaria de escrever prosa com
a finura de estilo de Borges e poesia com a riqueza de imagens
de Herberto Helder, e não vejo isso como antagônico
com relação a ter um estilo meu, uma dicção
pessoal.
Claudio Willer,
poeta, tradutor e ensaísta, publicou a coletânea
poética Estranhas Experiências (2004), entre
outros títulos.
*
Linaldo Guedes: Não. Embora,
particularmente, concorde com a tese
do crítico americano, não
consigo perceber essa angústia
dentro do meu fazer literário. No
início dos anos 90, por exemplo, cheguei a reunir amigos
e criamos um grupo poético
à nível de província, aqui na Paraíba.
Na época, procuramos atacar mais as instituições
em si como as academias de Letras
e de Poesia , que no nosso entendimento não faziam
nada de prático para disseminar a literatura
entre os jovens e o público em geral.
Apesar da nossa pouca idade, víamos
os poetas consolidados como nossos pais literários.
Graças a eles, tomamos gosto pela
poesia a ponto de procurarmos cavar nosso espaço no
cenário cultural local. Na verdade, mesmo inconscientemente,
agíamos de acordo com outra tese de Haroldo
Bloom, a de que a leitura dos clássicos é fundamental
para a compreensão do humano
e da literatura de forma geral. Não se constrói
algo de novo e interessante simplesmente desprezando
o que já existia de bom naquela
área. Claro que o questionamento
pode e deve vir, principalmente
entre as novas gerações. São elas, as
novas gerações, que
acrescentam luzes novas
ao que já está
estabelecido. Mas não destruindo-as,
e sim complementando-as. Esse é o papel histórico,
por exemplo, das vanguardas. Elas existem e se impõem
a partir do momento em que conseguem ampliar
o repertório, gerar uma informação
nova em relação àquilo
que, em tese, já seria consensual entre
leitores e críticos literários. Por isso
que, no mais das vezes, as vanguardas
chocam. Assim aconteceu com o Modernismo,
encontro de tendências díspares
que gerou o movimento mais marcante da literatura brasileira.
Os jovens escritores da Semana de 22 surgiram
atacando tudo e todos, é verdade. Mas isso
num primeiro momento. Depois se acomodaram e foram, inclusive,
em busca de resgatar autores que tinham sido questionados e
atacados por eles mesmos. Não se
pode esquecer, inclusive, que um movimento como
o antropofágico não era mais que uma releitura
da carta de Pero Vaz de Caminha. Oswald não renegou
Pero Vaz. Apenas o devorou e, bem ao estilo
antropofágico, o adaptou à sua poesia irônica,
debochada, utópica.
Olhando bem,
o pessoal modernista não atacava
autores, em particular, mas movimentos
e tendências literárias que, para
eles, na década de 20, estavam
ultrapassados e defasados. Não se pode esquecer
que os modernistas agiram sob influência
dos movimentos que pipocavam na Europa,
como o Dadaísmo e o Futurismo.
Na época, o Brasil realmente estava
marcando passo na literatura mundial.
E os jovens modernistas, ao perceberem isso, resolveram
dar o grito de independência artística.
Conseguiram isso e depois foram cuidar de sua carreira,
cada um com seu estilo e sua forma de fazer literatura. É
para isso que servem as gerações.
É para isso que servem
as vanguardas. E aqui falo de gerações
fortes e de vanguardas importantes e que marcam época.
Literatura é
confronto, sim, como diz Harold Bloom. Mas confronto de
idéias, de estilos, de estéticas. Não
confronto de personalidades, de escritores, de
poetas, de críticos literários.
É assim que entendo. Quando o confronto
parte para o campo pessoal, difícil fazer com aquela
geração responsável por isso se imponha.
Neste sentido, a tese do crítico
americano é mais do que válida. Pena
que no cenário atual esteja
sendo difícil estabelecer este confronto.
Contra quem? A quê? A geração
que vem atuando com força em nosso cenário literário
a partir da década de 90 estaria meio que perdida dentro
desse conceito de Harold Bloom.
É uma geração que
surgiu fortemente influenciada pelas
vanguardas concretistas, práxis,
do poema-processo, poesia marginal e
até da arte postal. Justamente as gerações
anteriores. A grande novidade hoje
talvez fosse voltar ao soneto, como Glauco Mattoso
vem fazendo muito bem. Mas desde quando isso é
novidade, como foi, por exemplo, o concretismo?
E é esse esgotamento das vanguardas, essa
falta de um referencial para se contestar, que põe
por terra a tese de Harold Bloom no cenário literário
brasileiro atual. Se temos que confrontar
para impor nossa poesia ao longo da
história, vamos confrontar o
quê? Quem tem coragem de dizer
que o concretismo, o modernismo e o simbolismo não
são importantes? Mais do que isso: quem
tem capacidade para criar algo novo, sem qualquer influência
dos ícones que tornaram
esses movimentos imprescindíveis
para a compreensão do fenômeno
literário no Brasil? No máximo,
vamos, por enquanto, fazendo como Oswald de Andrade. Incorporando
o que já foi feito para a realidade
atual. Antropofagia de nossas próprias
angústias literárias. Não mais que isso.
Linaldo Guedes
é jornalista e poeta. Editor do suplemento literário
Correio das Artes, da Paraíba, lançou
em 1998 Os zumbis também escutam blues e outros
poemas (Textoarte Editora). Tem pronto
o inédito Intervalo Lírico, a ser lançado
neste ano.
*
João Filho: Às vezes algo nesse sentido
tenta tomar corpo e impor uma certa "angústia".
Aí procuro escutar meu demônio interior e começo
a impor meu próprio ritmo, buscar minha tronxidão
necessária. Se isso não acontecer, não
escrevo.
João Filho,
poeta e ficcionista, publicou o romance Encarniçado
(2004).
*
Paulo de Toledo: Estava eu conversando com meu camarada
Ademir Demarchi sobre o lance da angústia da influência
e sobre minha poesia e como ela é devedora da Poesia
Concreta etc. etc. E, então, falei pro Ademir que eu
não sofria de angústia da influência,
mas sim de "augústia da influência".
Falando sério...
Acho que essa coisa de
angústia da influência fazia sentido até
uns 40/50 anos atrás, quando a literatura ainda era
unicamente uma forma de traduzir outra literatura. Ou seja,
fazer literatura era um braço de ferro com outros poetas
e escritores. Hoje, fazer literatura é dialogar com
todos os outros produtos culturais, inclusive com aqueles
anteriormente considerados menores, como a TV, a letra de
música, o videoclip etc.
Eu, que me alfabetizei
lendo Capitão América, vendo Sessão da
Tarde e ouvindo MPB, teria angústia de quê? De
quem? Do Chico? Do Zico? Do Stan Lee? Do Bruce Lee?
Como já disse numa
entrevista pro Rodrigo, quando eu crescer gostaria de ser
o cummings. Contudo, pra que eu seja EU e pra que meu poema
SEJA, são necessários o gafanhoto do cummings,
o gafanhoto do Kung-Fu (aquele da série de TV, pra
quem só lê livros e não sabe do que estou
falando) e o gafanhoto que pulava no gramado da casa onde
meu pai me ensinou os primeiros dribles.
Paulo de Toledo
é poeta e tem publicado seus trabalhos em sites e blogs
literários, incluindo a Zunái.
*
Sebastião Nunes: Abril de 2596, meia-noite.
Grimpado no alto de sua coluna em ruínas, de frente
para o mar, São Senião Estilista descansava
de mais um dia de curas milagrosas, profecias espantosas,
conferências, conselhos e autógrafos. Lia, sonolento,
alguns fragmentos do poeta T. S. Eliot, descobertos havia
pouco. Disseram-lhe, desse tal Eliot, que fora considerado
o mais brilhante poeta do século XX, mas quase toda
a sua obra se perdera. O que lia era medíocre, duas
ou três estrofes sentimentais de um poema intitulado
The Waste Qualquer Coisa, pois o título estava incompleto
e o santo não se lembrava de nenhuma poesia, depois
de tantos séculos de contínua meditação.
Devia ser obra da primeira mocidade, se é que o poeta
tivera, de fato, alguma importância. Recordava-se vagamente
de alguém com esse nome, parece que inglês, ou
irlandês. E pensava, enquanto mastigava com desânimo
os versos pobres, no inglorioso destino de poetas e prosadores.
Em apenas um ou dois séculos, a imensa maioria virava
pó. Tanta vaidade e tanta empáfia reduzidas
a nada! Examinara, só nos últimos meses, três
ou quatro fragmentos de poetas e ficcionistas considerados
geniais em seu tempo: um tal de Will Saquespire, ou Shoquespierre,
francês; um certo Joaaõ Guimaraens Pink, português;
e um poeta de nome engraçado, talvez canadense, Jean
Root. Já quase não existia papel, nem para limpar
a bunda! Aliás, ninguém mais usava papel higiênico.
Todos se limpavam com folhas especiais, colhidas de árvores
destinadas exclusivamente a isso: produzir folhas higiênicas,
infinitamente mais saudáveis e macias que os antigos
papéis em rolo. Sem dúvida, o grande sucesso
dos últimos séculos fora a ecologia. E que sucesso!
O plástico era execrado, os metais desprezados
tudo era vegetal: roupas, edifícios, comida, automóveis,
televisores e foguetes espaciais. Mesmo as luas artificiais
eram de vegetalite, substância mais dura que o aço
e mais leve que o algodão, extraída da Cannabis
sativa indica, planta por isso mesmo valiosíssima.
Seus cultivadores, conhecidos como maconheiros,
eram tão ricos atualmente como os bolivianos produtores
de petróleo o foram no século XXII. Mas, voltando
à quase extinta cultura livresca, ele também,
antes de tornar-se santo e imortal, publicara alguns livros
esforçados. Bem que tentara! Depois de ler a grande
maioria dos autores importantes nas quatro ou cinco línguas
que então dominava, escreveu seus primeiros poemas,
ficções e ensaios. Riu silenciosamente. Na época,
a grande preocupação dos escritores era com
o estilo individual. Todos tinham verdadeiro pavor de que
seus textos lembrassem algum outro escritor. Soltou uma gargalhada
íntima (um tipo de descarga hílare muda, desenvolvida
pelos psicólogos budistas, e destinada a satisfazer
plenamente a quem ria sem irritar quem ouvia). Houve mesmo
alguns críticos, quando da publicação
de sua História do Brasil, sobre antigo país
da América do Sul (agora o habitat natural dos grandes
macacos), que descobriram em sua obra influências claras
e pastiches grosseiros de inúmeros autores de épocas
diversas, e por isso a desprezaram. Nova gargalhada (desta
vez a chamada descarga hílare irritante, ondas sonoras
de volume desagradável, objeto das pesquisas mais recentes
na área da psicologia social) misturou-se aos ruídos
do mar. Com um gesto suavíssimo, resultado de séculos
de prática da Yoga-darsana, o santo jogou o fragmento
no fogo sagrado e fechou os olhos. Podia ainda meditar tranqüilamente
quase seis horas, antes que os arautos dos embaixadores estrangeiros,
postados debaixo da coluna, e tocando seus instrumentos foliáceos,
o alertassem para as primeiras audiências do dia.
Sebastião Nunes,
ex-poeta, ensaísta e ficcionista mineiro, é
o representante oficial da Al-Qaeda no Brasil. Publicou, entre
outros títulos, o Elogio da Punheta (Lamparina Editora,
2003).
(O texto de Sebastião Nunes foi publicado originalmente
no livro História do Brasil Novos Estudos
sobre Guerrilha Cultural e Estética de Provocaçam,
Editora Altana, São Paulo, 2000)
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