Qual é o sentido
do conceito de poesia de invenção, hoje?
Marcelo dos Santos:
"Não canto os velhos cantos / porque meus novos
cantos são melhores: / um jovem Zeus impera, / e
há longo tempo Cronos já não reina:
/ que parta a musa antiga!" (Timóteo de Mileto,
447-357 a. C.). Falar sobre a idéia de invenção
é trazer à tona a própria história
da poesia, já que a tradição nada mais
é que uma longa sucessão de rupturas. Quando
Homero (ou algum de seus discípulos) recolheu os
cantos dedicados à saga dos heróis helênicos
na Odisséia e na Ilíada, ele criou um gênero
poético, o poema épico (que sobreviveu, em
inevitáveis metamorfoses, na Eneida de Virgílio
e nos Lusíadas de Camões). Dante, ao escrever
a Divina Comédia, renunciou ao latim, a língua
literária da época, para escrever num dialeto
regional que se tornaria o idioma italiano (entre outras
inovações presentes no "poema sacro").
Shakespeare, no Hamlet, antecipa a idéia de metalinguagem,
fazendo os atores representarem atores, e encenarem uma
peça dentro da peça (para não falarmos
do rico acervo de suas comédias). Goethe, no Fausto,
rompeu as fronteiras entre os gêneros, mesclando,
numa mesma obra, passagens de prosa narrativa, poesia lírica,
diálogos dramáticos e excertos filosóficos.
Se fossemos continuar, a lista seria quase infinita. Não
existe arte séria sem invenção de linguagem.
Cada autor, em cada período histórico, tem
a tarefa de conhecer, assimilar a tradição
(aquela com maiúscula, dos autores canônicos,
e também a tradição pessoal, que cada
artista inventa para si), para reinventá-la. A novidade
de informação de certas formas e recursos,
como o soneto, com sua métrica, o romance realista,
o drama em versos, nunca é absoluta; ela é
relativa, é histórica, e logo envelhece, sendo
naturalmente substituída por outra informação
estética, que acrescente alguma coisa à tradição.
Isto não significa, porém, que haja uma evolução
darwiniana, em linha reta; menos ainda que o presente seja
sempre superior ao passado. A evolução se
dá por meio de um movimento em espiral, e aquilo
que se torna velho hoje, pode ser re-atualizado e recriado
amanhã. Como escreveu Augusto de Campos: "Tudo
está dito / Tudo está visto / Nada é
perdido / Nada é perfeito / Eis o imprevisto / Tudo
é infinito". Um caso exemplar é o do
soneto, supostamente considerado obsoleto, até ser
redescoberto por Glauco Mattoso, que deu nova vida ao gênero,
introduzindo a linguagem coloquial, urbana, a gíria
e o palavrão, a temática fescenina e formas
métricas e rítmicas variáveis (algo
bem diferente do passadismo de Bruno Tolentino e Alexei
Bueno, que intentam trazer para o presente a "aura"
de poesia elevada, os valores, formas e a dicção
de um tempo histórico único e irrepetível).
A invenção não significa desprezar
ou ignorar o passado, mas beber nas fontes da história
literária para atirar o dardo mais à frente,
em sintonia com o presente em que se vive. Por outro lado,
a invenção poética dialoga, sempre,
com outras formas artísticas: no século XII,
a era dos trovadores provençais, esse diálogo
aconteceu, sobretudo, com a música (e a dança,
subentendida); é possível afirmar que, pelo
trabalho dos copistas, ocorreu também com as artes
visuais (basta lermos as belas páginas medievais
que estampam esses poemas). No Japão de Bashô,
a mescla de poesia e imagem foi quase natural, pelo próprio
caráter plástico-conceitual do ideograma;
no século XX, as vanguardas potencializaram a simbiose
intersemiótica, desde o Manifesto Futurista e Dadá
até a Poesia Concreta. Hoje, temos diferentes tentativas
experimentais, que dialogam com o vídeo, o computador,
a holografia, a canção. E temos autores que
escrevem poemas puramente verbais, buscando a invenção
no campo exclusivo das palavras. Claro que nem todos os
poetas, hoje, buscam a informação nova; poucos
têm algo de novo a dizer, e poucos, muito poucos,
conseguem dizer algo de relevante ou consistente. A crítica
à idéia de invenção, nesse quadro,
pode ser considerada como a manifestação da
impotência criativa, o reconhecer as próprias
limitações frente à história
(essa esfinge terrível), ou ainda a mera ambição
de "fazer sucesso", "estar na moda"
(e, claro, ganhar dinheiro), imitando um estilo publicitário,
meio beatnik, ou meio qualquer coisa (conforme a cotação
do mercado literário no período). Talvez sempre
tenha sido desse modo (recordemos a campanha da crítica
musical alemã contra Wagner, ou a resistência
da imprensa paulista a Oswald de Andrade). A batalha contra
o novo não é novidade; não há
nada mais velho, aliás, que declarar a morte do novo.
Mas essa é, como dizia Leminski, uma batalha sempre
perdida.
Marcelo
dos Santos, poeta e publicitário, nasceu e reside
em São Paulo.
*
Beatriz Amaral: "La forma que te da forma /
huevo de fuego / huevo de agua / una lluvia de signos /
entre las asonancias y consonancias / de los truenos / celebran
la diseminación del todo en la nada......."
(Manuel Ulacia, Semilla, in El río y la piedra).
Poesia de invenção: sempre. Invenção:
ínsita na poesia. Já o disse Oswald: "a
poesia é a descoberta das coisas que eu nunca vi".
Se fazer poesia é descobrir as coisas e o mundo tal
como jamais antes visto, invenção é
atributo de sua essência. Mas invenção
como trabalho consciente e consistente, envolvendo a materialidade
sígnica da linguagem, navegando no mar de idéias,
em atos lúcidos e lúdicos (sem paradoxos)
e sem estéreis superficialidades retóricas.
O poeta filtra e reverbera a essência das palavras,
produzindo estranhamentos na linguagem/miragem. Em deslimites,
o infinito: a família dos poetas inventores a se
expandir no tempo.
Consoante
muito bem observado por Carlos Ávila, ao resenhar
Despoesia, de Augusto de Campos, "o fato de não
vivermos mais sob o signo da vanguarda na poesia brasileira
(o último movimento reconhecidamente sólido
e de nível foi a poesia concreta, lançada
no final dos anos 50) não anula a sempre presente
necessidade da investigação poética,
da pesquisa na busca do novo e da invenção
no plano da linguagem, ao contrário do que pensam
e alardeiam os neoconservadores, defensores de uma estética
estática." (1)
Também
me parece relevante registrar aqui, a propósito do
tema, a oportuna fala de Carlito Azevedo, que, entrevistado
pela revista Cacto, em sua terceira edição,
ao menciona os objetivos editoriais de sua própria
revista, a Inimigo Rumor, afirma: "Na Inimigo Rumor
só consideramos realmente dispensáveis aquelas
poéticas que partem de uma negação
do modernismo e de toda a extraordinária variedade
e vitalidade das experiências decorrentes do modernismo,
querendo ressuscitar a grandiloqüência e atribuindo
ao poeta uma importância francamente exagerada e anacrônica,
tudo sob o disfarce da 'profundidade' (no fundo: uma sucessão
de banalidades de antiquário)" (2)
Contra
a banalidade, faz-se necessário um pensamento e um
projeto poético rigoroso, que não desconheça
o passado histórico, mas que ouse acrescentar, seguir,
somar, como o fez o transmutante poeta Edgard Braga, sobre
cuja obra discorremos nesta edição. Como o
fazem, hoje, tantos poetas novos e maduros, apontando caminhos
de excelência e rigor. Como Júlio Castañon
Guimarães, de quem se transcreve o trecho final do
poema Compêndio de História:
Sim, articulação, pensamento e linguagem.
Construção, criação, re/construção,
re/criação; na busca da pureza de cada palavra,
de sons e silêncios, luzes e sombras, poesia de invenção
é a eterna "viagem via linguagem" vislumbrada
pela genialidade de Augusto de Campos. Viagem pela qual
hão de passar tantos quantos pretendam produzir poesia
verdadeira, hoje.
Beatriz
Helena Ramos Amaral é poeta, escritora e mestranda
em Literatura e Crítica Literária (PUC-SP),
autora dos livros Alquimia dos círculos (2004)
e Planagem (1998), entre outros títulos.
Referências:
(1) ÁVILA,
Carlos. Poesia pensada. São Paulo, 7 Letras, 2004.
(2) Revista Cacto - poesia e crítica - n.3 - Santo
André (SP), 2003
(3) COSTA, Horácio (organizador). A palavra poética
na América Latina - vários autores. São
Paulo, Ed. Fundação Memorial da América
Latina / Cadernos Cultura, 1992
*
Claudio Daniel: "Arre! Já celebrei mulheres
em três cidades, / Mas é tudo a mesma coisa;
/ E cantarei o sol", escreveu Pound no poema Cino,
na tradução de Augusto de Campos. "Cino
ousado, Cino zombeteiro, / Frágil Cino, o mais forte
de seu clã bandoleiro." Este poema faz parte
do livro Personae, onde o poeta norte-americano (apaixonado
pela Europa do Medievo) compôs poemas no estilo dos
trovadores, com o espírito de make it new, ou crítica
via criação no estilo de uma época,
vendo a tradição com olhos novos, em busca
do novo. Em seu ensaio ABC da Literatura, Pound define os
poetas inventores como aqueles que "descobriram um
novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo
conhecido de um processo". Raríssimos autores
da literatura ocidental caberiam neste conceito: Homero,
Arnaut Daniel, Guido Cavalcante, Laforgue e poucos mais,
que ele reuniu em seu paideuma, ou "ordenação
do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração)
possa achar, o mais rapidamente possível, a parte
viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos".
Como bem sabe Maria Esther Maciel, todas as listas do gênero
são matéria controversa; na relação
de Pound, por exemplo, estão ausentes autores como
Góngora e Mallarmé (que não são
citados como poetas inventores). Por outro lado, a investigação
de Pound vai até o simbolismo, e em especial Rimbaud,
Laforgue e Corbière; ele não se detém,
por exemplo, em Apollinaire e nos vários ismos de
sua época, como o futurismo, o dadaísmo ou
o surrealismo. Sua revisão da história da
literatura abarca o Oriente (Li T'ai Po, as Odes de Confúcio,
o teatro nô, em estudos e traduções),
a lírica grega, os provençais, os elisabetanos,
os simbolistas, mas não chega ao século XX.
A poesia
concreta, partindo das teses de Pound, de seus métodos
críticos e processos criativos, irá se afastar
dele ao valorizar o Lance de Dados de Mallarmé, além
de investigar autores como Maiakovski, Cummings, o Finnegans
Wake, de Joyce (pelo qual E.P. não sentiu entusiasmo),
ampliando o leque de leituras. Além de fazer uma
revisão da poesia brasileira, alçando à
posição de inventores poetas como Sousândrade,
Oswald de Andrade, Pedro Kilkerry. Vale a pena recordar
que Haroldo idealizou, em A Arte no Horizonte do Provável,
o projeto de uma antologia da poesia de invenção,
que incluiria ainda muitos outros autores de nossa história
literária, com ênfase naqueles mais "barroquizantes",
como Gregório de Matos, Tomás Antônio
Gonzaga (das Cartas Chilenas), Bernardo Guimarães
(dos poemas erótico-satíricos), Sousândrade,
Odorico Mendes e Pedro Kilkerry. Seriam todos eles "inventores",
no sentido dado por Pound?
Pelo critério
do velho E.P., os inventores criaram novos processos (ou
métodos), novas estruturas, novas formas de articulação
semântica. Mas Kilkerry, por exemplo, parte do radicalismo
de Mallarmé, como Gregório surge da leitura
de Quevedo e Góngora. Cabe talvez ressaltar, nesses
autores, seus aspectos metalingüísticos, a fúria
da expressão metafórica, quase expressionista,
beirando a geometria e abalando a sintaxe, em Kilkerry,
ou a inclusão de termos indígenas, africanos
e temas nacionais, em Gregório (brasilidade não
vista por Antonio Candido), em timbre erótico e satírico,
inusitado até então, em nossa poesia. Neste
sentido, podemos ver sim novidade de informação,
função poética (Jakobson) e alto grau
de elaboração estética. Temos aqui,
portanto, um outro sentido para o conceito de invenção,
que parte da tese de Pound mas a amplia, atualizando-a,
no contexto de nossa história literária. Bem
antes da poesia concreta, os autores reunidos em torno da
Semana de 1922 incluíram em seu discurso a palavra
invenção (ver o Manifesto Pau-Brasil, de Oswald,
e as cartas de Mário a Bandeira), mas tampouco seguiram
de maneira ortodoxa o conceito poundiano, inclusive pelo
desconhecimento, por parte de nossos modernistas, da obra
do norte-americano (Mário o cita em sua história
da música, como o compositor de uma ópera
sobre Villon). A invenção, para nossos antropófagos,
estava calcada nos modelos do futurismo italiano e demais
vanguardas européias, que em boa parte não
tiveram relações com o velho Ezra. A conclusão
desta longa introdução é óbvia:
o conceito de invenção vem sendo usado por
diferentes artistas, ao longo do tempo, e sobretudo no século
XX, sem um alinhamento automático com a definição
de E.P.
Apesar
da atuação modernista na defesa da idéia
de invenção, sobretudo em seu período
mais radical, na década de 20, esta idéia
só firmou raízes em nossa vida literária
a partir dos anos 50, com o grupo Noigandres, que editou
a revista Invenção, onde aliás publicaram
autores como Paulo Leminski e Sebastião Uchoa Leite.
A tese principal dos concretistas era o fim do "ciclo
histórico do verso" e a busca de uma sintaxe
analógica e ideogrâmica, com o recurso de outras
artes, em busca de uma unidade entre a visualidade, a sonoridade
e o conceito. Essa experiência atingiu o seu ponto
máximo, talvez, nos anos 60, com os Popcretos, de
Augusto de Campos. A partir daí, o próprio
grupo concretista buscou outras modalidades de criação.
Haroldo inicia a composição de sua prosa poética
Galáxias, já flertando com a possibilidade
de um novo barroco; Décio e Augusto, por sua vez,
investiram em outros veículos, como a holografia,
o vídeo, o computador, enfim, na arte eletrônica
(participando, ainda, da evolução de nossa
música popular mais avançada, primeiro a Tropicália,
depois a "Vanguarda Paulista" de Arrigo Barnabé,
entre as décadas de 60 e 80).
Pois bem:
a crise do pensamento utópico, com a queda do "socialismo
real" no Leste Europeu, no final dos anos 80, e o aparente
esgotamento de algumas tentativas experimentais abriram
um debate, ainda em curso, sobre o fim dos projetos coletivos
alternativos de renovação artística
e de reinvenção da polis; nesse contexto,
surgem conceitos como o "fim da história"
e do "pós-moderno", que trazem em seu bojo
uma veleidade de eternização do presente,
banindo as idéias de revolução ou inovação,
os dois lados do projeto utópico que animou as primeiras
vanguardas. Dentro desse contexto, Haroldo de Campos criou
o conceito do poema "pós-utópico":
"Ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite,
só a utopia redentora pode sustentar", sucede
"a pluralização das poéticas possíveis".
Em sua última entrevista, concedida a mim poucos
meses antes de seu falecimento (e publicada no site Popbox,
do poeta Elson Fróes, no endereço http://planeta.terra.com.br/arte/PopBox/haroldo2.htm),
Haroldo diz ainda que "A idéia de invenção
continua sempre vigente, mas em dialética permanente
com a tradição. O poema pós-utópico
nasce pontualmente nessa conjuntura dialetizada, onde são
muitas as possibilidades combinatórias do passado
de cultura com a agoridade, a presentidade, a imaginação
criativa, a invenção".
Dentro
desse espírito, eu e Frederico Barbosa fizemos uma
revisão da poesia brasileira mais recente, com ênfase
nos anos 1980-1990, cujo resultado é a antologia
Na Virada do Século, Poesia de Invenção
no Brasil. O título desta obra, desde o seu lançamento
até hoje, tem sido objeto de polêmica, justamente
pelo uso da palavra invenção (o próprio
autor da "orelha" do livro, Sebastião Uchoa
Leite, levanta dúvidas quanto ao fato de todos os
46 poetas reunidos no livro serem, de fato, "inventores").
A confusão, de certo modo justa, nasce da referência
a um termo que, entre nós, é conhecido, sobretudo,
pela definição de Pound, que não foi
a empregada por nós. A questão, logo, é:
O QUE SIGNIFICA UMA POESIA DE INVENÇÃO, HOJE?
Seria preciso
escrever um amplo ensaio para responder a uma questão
que não é simples, e exigiria um olhar em
profundidade sobre a nossa produção poética,
com ampla citação de exemplos, análise
de poetas e poemas, o que com certeza não cabe no
espaço de um site, ou mesmo em um artigo de jornal
ou revista; seria o tema de um ensaio de amplo fôlego,
que talvez venha um dia a escrever, quem sabe em parceria
com Frederico Barbosa, se ele aceitar a empreitada. Acredito
que, no prefácio a Na Virada do Século, já
tenha introduzido o tema, de modo programático, em
linhas gerais:
"A
poesia é um corpo de delito. Propor novas relações
entre as palavras, recusando a rotina no uso do idioma,
é um ato de dissidência (para alguns, de demência).
Escrever na zona de sombra, no espaço à margem,
desvio ou desvão, é a demanda dos poetas brasileiros
na entrada do terceiro milênio, em busca de uma escritura
renovada. Nessa aventura que se desconhece, jogo de pólo
entre centauros, a poesia se afirma como um exercício
entre a razão e o duende e abre caminhos ao pensar,
sempre enamorado de outras formas estruturais e semânticas.
Ao longo dos anos 80 e 90, a descida de Orfeu aos infernos,
que é a reflexão sobre os processos da linguagem,
estimulou a releitura de autores "obscuros" ou
"herméticos" de uma antitradição,
como Lezama Lima, Paul Celan, Francis Ponge e Robert Creeley,
numa saga de ampliação do repertório.
Do mergulho vertical até o ignorado surgiu uma poemática
concisa, elíptica, fragmentária e metafórica
que por vezes sobrepõe o som ao sentido, ou antes
cria novos sentidos para as palavras da tribo. Essa ars
poetica, que já foi chamada de pós-concreta,
parte da crise do verso de Mallarmé, mas procura
soluções construtivas diversas de Noigandres.
No lugar da visualidade, da aplicação de recursos
tipográficos e de leiaute que nortearam as técnicas
de composição do grupo concreto, o olho-da-forma
dessa geração privilegiou a desarticulação
sintática e a renovação léxica.
Foi retomado, assim, o diálogo com o modernismo brasileiro
em seus momentos de maior tensão e radicalidade,
e em especial com Murilo Mendes e João Cabral de
Melo Neto, sem recusar algumas contribuições
da Poesia Concreta, da Tropicália e do legado das
poéticas de vanguarda dos anos 70, entre outros ecos
e reverberações. (...)
A desarticulação
sintática e a mestiçagem semântica que
verificamos nesses autores sugerem uma relação
especular ou icônica com o tempo ruidoso, inquieto
e fragmentário em que vivemos. O império do
pós-moderno, que vaticinou o fim da história
e o eclipse das utopias, sob a hegemonia do capitalismo
predatório neoliberal, só poderia mesmo conduzir
a dois caminhos opostos: o da negação da idéia
de vanguarda e o da (re)afirmação dos conceitos
de invenção e pesquisa estética. Enquanto
o primeiro faz a apologia da adoção de formas
canonizadas por certa crítica universitária,
como a poesia coloquial e discursiva centrada no cotidiano,
reverberando o Modernismo dos anos 30, o segundo retoma
a exploração de novos processos e procedimentos
de escritura, como resposta, no plano formal, ao discurso
banalizante da mídia. A demanda de informação
nova para o fazer poético, no caldo de beleza e brutalidade
da aldeia globalizada, não se confunde, porém,
com a tese de evolução estética linear,
nem com a proposição de um futuro planejado,
a partir de um programa teórico e de um grupo organizado,
elementos típicos das vanguardas da primeira metade
do século passado. Temos aqui uma pluralidade de
linhas experimentais, firmadas no solo da agoridade, sem
proclamar dogmas e heresias, sem convocar inquisições
e cruzadas para a reconquista do Santo Sepulcro. Os poetas
atuais não comungam de um mesmo credo, mas têm
como princípio básico a noção
do poema como um elaborado artefato de linguagem - e não
apenas isso. O meticuloso artesanato das palavras soma-se
à investigação de novos repertórios
simbólicos e culturais do Ocidente e do Oriente,
da escritura e de outros códigos de expressão,
de um passado remoto ou da atualidade - como resistência.
(...) Sem
exorcizar o passado, com furor iconoclasta, ou praticar
a necrofilia dos gênios tutelares/tumulares consagrados
pela tradição, esses poetas mantêm um
diálogo vivo com o cânone, harmonizando passado,
presente, futuro. Não almejam, como as viúvas
de Olavo Bilac e Gonçalves Dias, retomar os metros
clássicos, o soneto reciclado ou a retórica
de juristas de província, mas recuperar o que houve
de instigante, inquieto e desafiador nas vozes mais densas
de nossa poesia. (...) Esta conversa inteligente entre poéticas
de diferentes tempos históricos, sem vocação
conformista, não intenta o retorno da múmia,
mas do ideal de inovação e rebeldia, pois
tem saudade do futuro, da utopia que ainda não houve,
a construir. A relação entre arte e vida,
que estimulou o debate sobre o fazer poético como
conquista da forma ou confissão, parece já
não ser um tema da agenda literária das novas
gerações. Embora em alguns autores predomine
o artifício, a maquiagem de um vocabulário
rebuscado, as vozes mais consistentes da poesia atual evitam
separar a experiência vital da operação
de linguagem: as palavras fazem sentido não apenas
como grafias, partituras e mosaicos, mas também como
símbolos viscerais da jornada humana.
(...) A
superação das dicotomias entre Eros e Logos,
conteúdo e forma, inspiração e arquitetura,
natureza e engenho parece ser a América desejada
por todos estes navegantes, condenados, segundo a profecia
de Octavio Paz, a conduzir revoluções solitárias.
Só nos resta aguardar o que o tempo dirá de
suas pequenas epopéias. Ao abalar as normas constituídas
do discurso, e portanto as noções subjetivas
do eu e do outro, do mundo e das coisas, o fato poético
transtorna o olhar, e coloca em cena visões ou modelos
da realidade que deslocam tudo o que sonha com a permanência.
Nada é estático, parece nos dizer a poiésis,
tudo está em mutação, como o rio arquetípico
de Heráclito. Articulando novas formas de dizer,
sem recusar o diálogo com os momentos transgressivos
do passado, a aventura da modernidade tem sido, desde suas
origens, definir a matéria verbal, o homem e o mundo
como sinais de um contínuo vir-a-ser. O amadurecimento
da nova poesia brasileira, em particular nos últimos
vinte anos, reafirma o caráter dissidente, ou demente,
dessa capacidade (necessária) de responder à
esfinge com novos mistérios."
Poderia
avançar mais, citando exemplos de autores e textos
que considero inventivos, mas isso tomaria um tempo de que
hoje não dispomos. Mas o debate continua, nas páginas
virtuais desta revista.
Claudio
Daniel, poeta e jornalista, publico, entre outros títulos,
A Sombra do Leopardo (poesia, 2001) e Romanceiro
de Dona Virgo (contos, 2004). É um dos editores
da revista Zunái.
*
Valdemar Carneiro: Existe poesia de invenção
no Brasil, hoje? Como o espaço aqui precisa ser breve,
falarei poucas palavras sobre alguns poetas que, a meu ver,
fazem poesia de invenção no Brasil. Após
o período mais radical da poesia concreta, quem realmente
trouxe alguma coisa de novo, acrescentando formas e linguagens,
foram sobretudo três poetas, a meu ver: Arnaldo Antunes,
Ricardo Aleixo e Sebastião Nunes (esse, pertencente
a uma outra geração literária). Dialogando
com a música popular e erudita, com recursos eletrônicos
e de multimídia, o Arnaldo tem colocado a poesia
para fora dos livros: está na canção,
no vídeo, no palco, no computador, pulsando em cores,
em ritmos, em formas que evoluem de maneira sincronizada.
A trilogia Nome (livro, fita de vídeo e CD) é
talvez o seu trabalho mais experimental, que vai mais fundo
na pesquisa de linguagem; mas não podemos esquecer
de outras coisas fundamentais que Arnaldo vem desenvolvendo,
seja no campo específico da poesia cantada / oralizada
(como os CDs Corpo e Ninguém, sobretudo), seja no
campo do livro impresso (Psia, Tudos, Dois ou Mais Corpos,
As Coisas, entre outros títulos). Ele inova na diagramação,
no uso de tipologias caligráficas, no uso de registros
como a fala infantil, misturada com a gíria, o palavrão,
o vocabulário erudito, sem falar no modo como "dissolve"
o sentido literal, chegando por vezes ao absurdo intencional
(algo semelhante aos "botões tenros" de
Gertrude Stein). Seria preciso escrever um tratado apenas
para falar do poeta-titã, que nos surpreende a cada
nova investida no campo poético (descontando, talvez,
algumas composições voltadas ao mercado fonográfico,
o que representa outra faceta de seu talento múltiplo,
plural). Ricardo Aleixo (juntamente com Antonio Risério)
redescobriu para nós o "oriki", o poema
africano de sentido mágico-religioso, usado nos rituais
de candomblé para louvar os orixás. Longe
de fazer uma pálida recriação "conteudística",
com enfoque sociológico, ou mesmo místico-esotérico,
Aleixo desenvolveu peças (reunidas no livro A Roda
do Mundo) em que as palavras funcionam como acordes de canção;
cada verso, cada estrofe pode ser cantada, dançada,
dramatizada, dando nova vida a um gênero poético
perdido (ou antes, conservado apenas nas limitações
idiomáticas do nagô-iorubá, sendo entoado
ainda hoje nos terreiros afro-brasileiros). A novidade do
ioruba não está apenas na melopéia,
na invenção metafórica, nos epítetos
dados às divindades; é uma outra concepção
de poesia, que faz parte de uma visão xamânica
do mundo. Distante da sacralidade e da visão holística
do oriki, o ex-poeta (e prosador genial) Sebastião
Nunes tem provocado pequenas grandes reviravoltas em nossa
literatura, com livros como as duas Antologias Mamalucas,
o Decálogo da Classe Média, Sacanagem Pura
e muitas outras obras (incluindo o recente Elogio da
Punheta). O debochado autor mineiro avança na
direção da ruptura entre os gêneros:
ele joga no mesmo saco (digo, no mesmo livro) o poema, a
fotografia, o cartum, a ilustração "roubada"
de livros antigos, criando provocativos antianúncios,
satirizando a linguagem publicitária. Seus textos
(com elementos verbais e visuais) não são
"contos", nem "novelas", nem "romances",
e muito menos "poesia". O que são? Obras
de Sebastião Nunes, único autor brasileiro,
talvez, digno de fazer xixi no urinol de Marcel Duchamp!
Valdemar
Carneiro, poeta e músico popular, reside em São
João Del Rey (MG).
*
Linaldo Guedes: Dia desses eu estava discutindo com
um amigo sobre a poesia de invenção, a partir
de um texto que ele havia publicado ironizando os "manuais
de poesia inventiva". Sonetista de primeira, embora
venha a algum tempo fazendo incursões na seara inventiva,
meu amigo dizia que os tais manuais aboliram o soneto do
cenário literário brasileiro. Disse-lhe que
não era bem assim. E citei Glauco Mattoso, como exemplo
de sonetista acolhido pelos poetas inventivos, inclusive
sendo publicado com destaque no livro Na virada do século,
organizado pelos poetas Claudio Daniel e Frederico Barbosa.
Tentei explicar ao meu amigo que a proposta não abole
o soneto e nem qualquer outra forma literária, apenas
cobra um caráter inventivo do poeta. Que novidade
teríamos se os sonetistas atuais fossem apenas epígonos
de Camões e Olavo Billac? Nenhuma! Glauco Mattoso
é, neste sentido, um grande exemplo da importância
da poesia inventiva, na medida em que utiliza-se de um estilo
tradicional para subvertê-lo, senão na métrica,
mas no estilo.
No mais
das vezes, é esse tipo de reação que
temos ouvido constantemente, quando se fala em Poesia de
Invenção. Muitos falam sem conhecer os poetas
que estão inseridos nesta classificação,
digamos assim. Outros, por puro preconceito. Ou porque não
gostam dos nomes que lideram esse segmento poético.
São amigos de "A", que detestam "B",
esse último seguidor da poesia inventiva. A partir
daí, misturam as coisas e passam também a
questionar "B", por mais ele que venha fazendo
um trabalho sério, de pesquisa de novas formas de
linguagem.
Sim, porque
é basicamente isso, penso eu, que propõe a
poesia inventiva. Pesquisar novas linguagens poéticas.
Ninguém, até onde eu sei, está no índex
dos "manuais de poesia inventiva". Basta conferir
o próprio livro Na virada do século. Poetas
inseridos na coletânea assumem, em sua poética,
as mais diversas influências, sejam elas clássicas
ou contemporâneas. Acima de tudo, um diálogo
aberto, franco e poético com poetas como Cruz e Sousa,
Manuel Bandeira, Augusto de Campos, João Cabral de
Melo Neto, poetas marginais, concretistas, enfim... É
uma poesia que não comporta uma influência
única. Está aberta a toda e qualquer referência,
desde que propicie novas descobertas para a linguagem literária.
É desta forma que vejo a poesia inventiva. Por isso
a sua magia. Algo assim como um Oswald de Andrade. Antropofagicamente,
deglutindo o que já foi feito e recriá-lo
(não estou falando em copiá-lo), encontrando
novas possibilidades semânticas e visuais que possam
tirar a poesia do lugar-comum que permeia em muitos poetas
que já se julgam clássicos.
Talvez,
a grande falha da poesia inventiva seja a ausência
de um manifesto assinado pelos líderes do movimento
(sim, existe um movimento), explicando as propostas que
norteiam essa poética tão rica. Mas novamente
vejo isso como algo positivo. É como se os principais
aglutinadores da poesia inventiva dissessem: "nada
de amarras, todo mundo livre para compor sua poesia da forma
que quiser e com a influência que achar importante,
desde que busque novas formas de linguagem nesta poesia".
Esta é, para mim, a grande magia da poesia inventiva.
E cito Frederico Barbosa: tudo é invenção
na poesia. Claro está que ninguém argumenta
que descobriu a pólvora com esta forma de fazer poesia.
Até porque a pólvora virou apenas referência,
num mundo nuclear onde até as bombas devem ter precisão
cirúrgica.
Resumindo:
é como se a poesia inventiva estivesse funcionando
neste momento atual da poesia brasileira como um suco. Isso
mesmo, um suco do que de melhor existe em nossa poesia.
Jogue num mesmo liquidificador os modernistas e os concretistas,
os clássicos e os simbolistas, os beats e os marginais.
Ligue o aparelho. Pronto. Temos uma nova poesia no Brasil.
Uma poesia jovem, vigorosa e, para além dos maniqueísmos
que enfeixam qualquer rótulo, acima de tudo importante
para se discutir na prática, e com critérios
que não serão nunca gratuitos, a literatura
brasileira do futuro. Como diz Claudio Daniel, uma poesia
mutável, sem qualquer concepção hegemônica.
Fora daí, é o direito de espernear de quem
quer ser eterno, mas não consegue nem ser moderno.
Linaldo
Guedes é editor do Correio das Artes e poeta,
autor de Os zumbis também escutam blues.
*
Sabião
Bestunes: Para haver poesia-de-invenção
é preciso que exista seu oposto, isto é, poesia-sem-invenção.
Assim, o conceito invenção é mais ou
menos como o conceito rabo. Não é possível
conceber a idéia de rabo puro, quer no sentido platônico,
de rabos existindo em-si e para-si, isolados numa caverna
ideal, esperando serem possuídos por algum ser desrabado,
quer no sentido kantiano, de rabo como ser-puro-sem-o-outro,
em que o rabo só assumirá função
específica no corpo de quem o possuirá, se
o possuir, em futuro incerto e não sabido, já
que para Kant rabos podem existir a priori. Me parece bem
mais adequada a formulação de Hegel, para
quem "tudo o que possuis também te possui".
Rabo será então, filosófica, material
ou esteticamente, rabo de alguma coisa, ou de alguém.
Quando digo "Fulana tem um belo rabo", é
lógico que me refiro à bunda de Fulana. Se
digo "Beltrano é um cara rabudo", com certeza
significo que Beltrano tem muita sorte". Mas se declaro
apenas "O rabo da lagartixa caiu", estou apontando
o ex-apêndice caudal do infeliz réptil (já
que lagartixa é réptil), que se desprendeu,
por si ou por artes malévolas de algum peralta de
estilingue em punho, do corpo de seu ex-possuidor. E digo
mais: embora réptil signifique, biologicamente, indivíduo
que se arrasta, por ausência de pés ou por
os possuir muito curtos, vale dizer que todos os répteis
possuem rabos, daí o conceito ampliado de réptil
como "vertebrado rabudo que se arrasta", enquanto
poetas são "bípedes implumes peludos",
cf. Aristóteles. Aliás, reza a tradição
que a fórmula inicial de Aristóteles era apenas
"bípede implume", até que Diógenes,
o Cínico, lhe apresentou um galo depenado, dizendo:
"Eis o teu poeta!", no que não estava destituído
de razão. Também vale dizer que répteis
são animais de sangue frio, significando que lhes
basta se alimentarem uma vez a cada doze dias, mais ou menos,
enquanto os poetas, possuindo sangue quente (embora pesquisas
recentes demonstrem que a maioria dos poetas é exangue),
exigem três ou quatro substanciosas refeições
diárias, sendo por isso mesmo incluídos entre
os mais ferozes predadores. Isso no que se refere ao conceito
de invenção-em-si. Vejamos como esse apêndice
poético se comporta enquanto invenção-para-o-outro.
Posto em
circulação - e canonizado - pelos concretistas,
o conceito de invenção ligado à poesia
estabelecia limites rígidos entre dois tipos de produção
poética, a deles mesmos, concretistas, e a dos não-concretistas.
Nesse caso, e continuando a usar a imagem de rabo, que me
parece bastante sugestiva, os poetas inventivos seriam os
que possuem rabo. Já os poetas não inventivos
seriam os despossuídores de rabo. Teríamos
então poetas-uros e poetas-anuros. Ora, visto isso,
e voltando à biologia, sabemos que - em sua quase
totalidade, e em termos de evolucionismo - rabos cumprem
funções específicas, ou como formularam
oportunamente Darwin e Wallace, aquilo que perde a função
biológica tende a se atrofiar e desaparecer, como
exemplifica muito bem o rabo no ser humano, hoje denominado
cóccix ou, em linguagem mais arejada e descontraída,
osso-do-pai-joão e ainda mucumbu. Notem ainda que
me refiro aos concretistas em seus primórdios, enquanto
cavaleiros-andantes-poetas, ou seja, enquanto paladinos
de seus poemas e teoremas que, na época, lá
pelas décadas de 50-60, equivaliam aos pobres órfãos,
viúvas e donzelas desamparadas de Dom Quixote, o
da Triste Figura, no que aliás faziam muito bem,
diante de tantos ogros, gigantes e valdevinos apoéticos,
quando não apopléticos, que estorvavam suas
poéticas especulações. Hoje, não
se fala mais em concretismo enquanto ser-ao-vivo-em-si-contra-todos,
mas apenas como belo e corajoso movimento de nossa história
literária, ou seja, como ser-ido-e-vivido-e-muito-bem-vivido.
Vamos pois
às conclusões dessa inconclusa lengalenga.
Se o conceito invenção continua tendo sentido
hoje em dia (já agora fora de qualquer conotação
concretista, ou mesmo para ou meta concretista), poesia
de invenção seria poesia-ura. Se, ao contrário,
o conceito invenção perdeu todo e qualquer
sentido, poesia seria poesia-anura, ou poesia pura e simplesmente,
sem rabo de espécie alguma. Pessoalmente - e até
de acordo com as correntes mais vigorosas do esteticismo
poético contemporâneo -, creio preferir a poesia-anura,
ou seja, a poesia desprovida de qualquer apêndice.
Em resumo, e grosso modo, ou é poesia-em-si-para-si-e-para-o-outro,
ou não vale a pena ser publicada, quem dirá
escrita. Mas como não sou nem pretendo ser dono da
verdade, deixo a questão em suspenso, como fazia
Kierkegaard quando queria desesperar filósofos rivais,
para que seja discutida por poetas uros ou anuros mais atuantes
que eu mesmo, convictamente um ex-poeta-uro. Ou serei ex-poeta-anuro?
Não estou certo, infelizmente, de minha rabicidade
estética.
Não
importa. Creio porém, e firmemente, que só
pelo fato de propor nova e mais rigorosa terminologia para
a questão (desdobrando o conceito "poesia de
invenção" em "poesia-ura" e
"poesia-anura") terei contribuído para
aclarar as vias pelas quais penetrem os valorosos defensores
de uma e outra tendência terçando armas, executando
filigranas, tecendo sutis arrazoados ou mesmo tratando-se
aos bofetões e aos sopapos, como faziam há
décadas concretistas e não-concretistas. Chego
mesmo a suspeitar que, houvessem eles, concretistas, neoconcretistas,
praxistas, processualistas, derramados, engajados, alienados,
violonistas-de-rua, marginais e diarréicos adotado
a divisão que ora proponho jamais teriam se engalfinhado
em porfias tão renhidas, pelo que lhes sobraria mais
tempo para o lazer e o ócio, isto é, para
se dedicarem plenamente à inclamidade, tão
mais necessária à humana espécie que
poesia. Ura ou anura, tanto faz.
Sabião
Bestunes, pseudônimo do mineiro Sebastião
Nunes, é ex-poeta, filósofo, antropólogo
cultural, ensaísta, ficcionista, escafandrista e
ginecologista experimental, entre outros ofícios
nobres. Publicou, pela Lamparina Editora, o Elogio da
Punheta (2004).
*
Ronaldo Bressane: Putz, sinceramente, amigos, a desgastada
expressão pra mim não significa nada. Virou
mais um chavão crítico. O que seria oposição
à "de invenção"? Poesia "de
conservação"? Toda poesia que interessa
é invenção e conservação
ao mesmo tempo. Dante é tão inovador quanto
Leminski. Glauco Mattoso é tão reacionário
quanto os parnasianos. Mas reduzi-los a um termo ou outro
é burrice.
Penso que estamos em uma época que, felizmente, nos
libertamos desse jogo cretino de engavetar poetas em grupos
[eu quero viver essa época, pelo menos - é
bem mais divertido pensar assim]. A busca incessante pela
"invenção" pode ser estéril
- o que é novo, em 2002? [pergunta que já
deve ter sido feita em 1902, em 1802...], ao mesmo tempo
em que o tesão pelo cânone só dinamita
a cultura que o fabrica, em vez de revelá-lo.
A meu [pequeno] ver, o grande lance da poesia de hoje não
é requerer invenção ou canonização.
O problema é que às vezes sobra ego, sobra
Poesia em caixa alta, sobra O Poeta - e falta sangue. E
sangue, ao que se sabe, não se inventa. Nasce-se
com. Ou se morre sem.
Existe
uma poesia de invenção hoje, no Brasil? Há
poetas que se satisfazem em imitar o poema-crônica-de-jornal,
o poema-piada, o sonetinho rimado, a elegia metafísica;
mas há outros poetas que preferem pesquisar coisas
novas. Não são talvez inventores, no sentido
que Ezra Pound deu à palavra, mas trouxeram alguma
coisa diferente do chove-e-não-molha que predomina
nos cadernos literários dos grandes jornais. Ricardo
Aleixo é um desses caras, que trouxe para nós
o oriki, espécie de mantra dos povos africanos, que
ele recriou, revitalizou, de maneira genial. Josely Vianna
Baptista é outra, essa em outra praia, que mistura
poesia concreta, neobarroco e coisas dos índios.
Tem ainda o Joca Reiners Terron, esse maluco de pedra. E
muitos outros, da geração mais nova, que foram
publicados por pequenas editoras, nos últimos quinze
anos. Algum deles vai ficar? Quem será o nosso Cummings,
o nosso Maiakovski, o nosso Ezra Pound? Vamos esperar para
ver...
Ronaldo
Bressane, escritor e jornalista, nasceu em São
Paulo (SP), em 1970. Publicou a trilogia de contos A
Outra Comédia, formada por Os Infernos Possíveis
(1999), 10 Presídios de Bolso (2001) e Céu
de Lúcifer (2003), além do volume de poemas
O Impostor [(2002).