ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ZUNÁI EM DEBATE

 

Qual é o sentido do conceito de poesia de invenção, hoje?


Marcelo dos Santos: "Não canto os velhos cantos / porque meus novos cantos são melhores: / um jovem Zeus impera, / e há longo tempo Cronos já não reina: / que parta a musa antiga!" (Timóteo de Mileto, 447-357 a. C.). Falar sobre a idéia de invenção é trazer à tona a própria história da poesia, já que a tradição nada mais é que uma longa sucessão de rupturas. Quando Homero (ou algum de seus discípulos) recolheu os cantos dedicados à saga dos heróis helênicos na Odisséia e na Ilíada, ele criou um gênero poético, o poema épico (que sobreviveu, em inevitáveis metamorfoses, na Eneida de Virgílio e nos Lusíadas de Camões). Dante, ao escrever a Divina Comédia, renunciou ao latim, a língua literária da época, para escrever num dialeto regional que se tornaria o idioma italiano (entre outras inovações presentes no "poema sacro"). Shakespeare, no Hamlet, antecipa a idéia de metalinguagem, fazendo os atores representarem atores, e encenarem uma peça dentro da peça (para não falarmos do rico acervo de suas comédias). Goethe, no Fausto, rompeu as fronteiras entre os gêneros, mesclando, numa mesma obra, passagens de prosa narrativa, poesia lírica, diálogos dramáticos e excertos filosóficos. Se fossemos continuar, a lista seria quase infinita. Não existe arte séria sem invenção de linguagem. Cada autor, em cada período histórico, tem a tarefa de conhecer, assimilar a tradição (aquela com maiúscula, dos autores canônicos, e também a tradição pessoal, que cada artista inventa para si), para reinventá-la. A novidade de informação de certas formas e recursos, como o soneto, com sua métrica, o romance realista, o drama em versos, nunca é absoluta; ela é relativa, é histórica, e logo envelhece, sendo naturalmente substituída por outra informação estética, que acrescente alguma coisa à tradição. Isto não significa, porém, que haja uma evolução darwiniana, em linha reta; menos ainda que o presente seja sempre superior ao passado. A evolução se dá por meio de um movimento em espiral, e aquilo que se torna velho hoje, pode ser re-atualizado e recriado amanhã. Como escreveu Augusto de Campos: "Tudo está dito / Tudo está visto / Nada é perdido / Nada é perfeito / Eis o imprevisto / Tudo é infinito". Um caso exemplar é o do soneto, supostamente considerado obsoleto, até ser redescoberto por Glauco Mattoso, que deu nova vida ao gênero, introduzindo a linguagem coloquial, urbana, a gíria e o palavrão, a temática fescenina e formas métricas e rítmicas variáveis (algo bem diferente do passadismo de Bruno Tolentino e Alexei Bueno, que intentam trazer para o presente a "aura" de poesia elevada, os valores, formas e a dicção de um tempo histórico único e irrepetível). A invenção não significa desprezar ou ignorar o passado, mas beber nas fontes da história literária para atirar o dardo mais à frente, em sintonia com o presente em que se vive. Por outro lado, a invenção poética dialoga, sempre, com outras formas artísticas: no século XII, a era dos trovadores provençais, esse diálogo aconteceu, sobretudo, com a música (e a dança, subentendida); é possível afirmar que, pelo trabalho dos copistas, ocorreu também com as artes visuais (basta lermos as belas páginas medievais que estampam esses poemas). No Japão de Bashô, a mescla de poesia e imagem foi quase natural, pelo próprio caráter plástico-conceitual do ideograma; no século XX, as vanguardas potencializaram a simbiose intersemiótica, desde o Manifesto Futurista e Dadá até a Poesia Concreta. Hoje, temos diferentes tentativas experimentais, que dialogam com o vídeo, o computador, a holografia, a canção. E temos autores que escrevem poemas puramente verbais, buscando a invenção no campo exclusivo das palavras. Claro que nem todos os poetas, hoje, buscam a informação nova; poucos têm algo de novo a dizer, e poucos, muito poucos, conseguem dizer algo de relevante ou consistente. A crítica à idéia de invenção, nesse quadro, pode ser considerada como a manifestação da impotência criativa, o reconhecer as próprias limitações frente à história (essa esfinge terrível), ou ainda a mera ambição de "fazer sucesso", "estar na moda" (e, claro, ganhar dinheiro), imitando um estilo publicitário, meio beatnik, ou meio qualquer coisa (conforme a cotação do mercado literário no período). Talvez sempre tenha sido desse modo (recordemos a campanha da crítica musical alemã contra Wagner, ou a resistência da imprensa paulista a Oswald de Andrade). A batalha contra o novo não é novidade; não há nada mais velho, aliás, que declarar a morte do novo. Mas essa é, como dizia Leminski, uma batalha sempre perdida.

Marcelo dos Santos, poeta e publicitário, nasceu e reside em São Paulo.

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Beatriz Amaral: "La forma que te da forma / huevo de fuego / huevo de agua / una lluvia de signos / entre las asonancias y consonancias / de los truenos / celebran la diseminación del todo en la nada......." (Manuel Ulacia, Semilla, in El río y la piedra). Poesia de invenção: sempre. Invenção: ínsita na poesia. Já o disse Oswald: "a poesia é a descoberta das coisas que eu nunca vi". Se fazer poesia é descobrir as coisas e o mundo tal como jamais antes visto, invenção é atributo de sua essência. Mas invenção como trabalho consciente e consistente, envolvendo a materialidade sígnica da linguagem, navegando no mar de idéias, em atos lúcidos e lúdicos (sem paradoxos) e sem estéreis superficialidades retóricas. O poeta filtra e reverbera a essência das palavras, produzindo estranhamentos na linguagem/miragem. Em deslimites, o infinito: a família dos poetas inventores a se expandir no tempo.

Consoante muito bem observado por Carlos Ávila, ao resenhar Despoesia, de Augusto de Campos, "o fato de não vivermos mais sob o signo da vanguarda na poesia brasileira (o último movimento reconhecidamente sólido e de nível foi a poesia concreta, lançada no final dos anos 50) não anula a sempre presente necessidade da investigação poética, da pesquisa na busca do novo e da invenção no plano da linguagem, ao contrário do que pensam e alardeiam os neoconservadores, defensores de uma estética estática." (1)

Também me parece relevante registrar aqui, a propósito do tema, a oportuna fala de Carlito Azevedo, que, entrevistado pela revista Cacto, em sua terceira edição, ao menciona os objetivos editoriais de sua própria revista, a Inimigo Rumor, afirma: "Na Inimigo Rumor só consideramos realmente dispensáveis aquelas poéticas que partem de uma negação do modernismo e de toda a extraordinária variedade e vitalidade das experiências decorrentes do modernismo, querendo ressuscitar a grandiloqüência e atribuindo ao poeta uma importância francamente exagerada e anacrônica, tudo sob o disfarce da 'profundidade' (no fundo: uma sucessão de banalidades de antiquário)" (2)

Contra a banalidade, faz-se necessário um pensamento e um projeto poético rigoroso, que não desconheça o passado histórico, mas que ouse acrescentar, seguir, somar, como o fez o transmutante poeta Edgard Braga, sobre cuja obra discorremos nesta edição. Como o fazem, hoje, tantos poetas novos e maduros, apontando caminhos de excelência e rigor. Como Júlio Castañon Guimarães, de quem se transcreve o trecho final do poema Compêndio de História:

poeta (en tant que)
o que me ensino
senão o futuro da memória
?
(Vertentes)


Sim, articulação, pensamento e linguagem. Construção, criação, re/construção, re/criação; na busca da pureza de cada palavra, de sons e silêncios, luzes e sombras, poesia de invenção é a eterna "viagem via linguagem" vislumbrada pela genialidade de Augusto de Campos. Viagem pela qual hão de passar tantos quantos pretendam produzir poesia verdadeira, hoje.

Beatriz Helena Ramos Amaral é poeta, escritora e mestranda em Literatura e Crítica Literária (PUC-SP), autora dos livros Alquimia dos círculos (2004) e Planagem (1998), entre outros títulos.

Referências:

(1) ÁVILA, Carlos. Poesia pensada. São Paulo, 7 Letras, 2004.
(2) Revista Cacto - poesia e crítica - n.3 - Santo André (SP), 2003
(3) COSTA, Horácio (organizador). A palavra poética na América Latina - vários autores. São Paulo, Ed. Fundação Memorial da América Latina / Cadernos Cultura, 1992

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Claudio Daniel: "Arre! Já celebrei mulheres em três cidades, / Mas é tudo a mesma coisa; / E cantarei o sol", escreveu Pound no poema Cino, na tradução de Augusto de Campos. "Cino ousado, Cino zombeteiro, / Frágil Cino, o mais forte de seu clã bandoleiro." Este poema faz parte do livro Personae, onde o poeta norte-americano (apaixonado pela Europa do Medievo) compôs poemas no estilo dos trovadores, com o espírito de make it new, ou crítica via criação no estilo de uma época, vendo a tradição com olhos novos, em busca do novo. Em seu ensaio ABC da Literatura, Pound define os poetas inventores como aqueles que "descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo". Raríssimos autores da literatura ocidental caberiam neste conceito: Homero, Arnaut Daniel, Guido Cavalcante, Laforgue e poucos mais, que ele reuniu em seu paideuma, ou "ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos". Como bem sabe Maria Esther Maciel, todas as listas do gênero são matéria controversa; na relação de Pound, por exemplo, estão ausentes autores como Góngora e Mallarmé (que não são citados como poetas inventores). Por outro lado, a investigação de Pound vai até o simbolismo, e em especial Rimbaud, Laforgue e Corbière; ele não se detém, por exemplo, em Apollinaire e nos vários ismos de sua época, como o futurismo, o dadaísmo ou o surrealismo. Sua revisão da história da literatura abarca o Oriente (Li T'ai Po, as Odes de Confúcio, o teatro nô, em estudos e traduções), a lírica grega, os provençais, os elisabetanos, os simbolistas, mas não chega ao século XX.

A poesia concreta, partindo das teses de Pound, de seus métodos críticos e processos criativos, irá se afastar dele ao valorizar o Lance de Dados de Mallarmé, além de investigar autores como Maiakovski, Cummings, o Finnegans Wake, de Joyce (pelo qual E.P. não sentiu entusiasmo), ampliando o leque de leituras. Além de fazer uma revisão da poesia brasileira, alçando à posição de inventores poetas como Sousândrade, Oswald de Andrade, Pedro Kilkerry. Vale a pena recordar que Haroldo idealizou, em A Arte no Horizonte do Provável, o projeto de uma antologia da poesia de invenção, que incluiria ainda muitos outros autores de nossa história literária, com ênfase naqueles mais "barroquizantes", como Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga (das Cartas Chilenas), Bernardo Guimarães (dos poemas erótico-satíricos), Sousândrade, Odorico Mendes e Pedro Kilkerry. Seriam todos eles "inventores", no sentido dado por Pound?

Pelo critério do velho E.P., os inventores criaram novos processos (ou métodos), novas estruturas, novas formas de articulação semântica. Mas Kilkerry, por exemplo, parte do radicalismo de Mallarmé, como Gregório surge da leitura de Quevedo e Góngora. Cabe talvez ressaltar, nesses autores, seus aspectos metalingüísticos, a fúria da expressão metafórica, quase expressionista, beirando a geometria e abalando a sintaxe, em Kilkerry, ou a inclusão de termos indígenas, africanos e temas nacionais, em Gregório (brasilidade não vista por Antonio Candido), em timbre erótico e satírico, inusitado até então, em nossa poesia. Neste sentido, podemos ver sim novidade de informação, função poética (Jakobson) e alto grau de elaboração estética. Temos aqui, portanto, um outro sentido para o conceito de invenção, que parte da tese de Pound mas a amplia, atualizando-a, no contexto de nossa história literária. Bem antes da poesia concreta, os autores reunidos em torno da Semana de 1922 incluíram em seu discurso a palavra invenção (ver o Manifesto Pau-Brasil, de Oswald, e as cartas de Mário a Bandeira), mas tampouco seguiram de maneira ortodoxa o conceito poundiano, inclusive pelo desconhecimento, por parte de nossos modernistas, da obra do norte-americano (Mário o cita em sua história da música, como o compositor de uma ópera sobre Villon). A invenção, para nossos antropófagos, estava calcada nos modelos do futurismo italiano e demais vanguardas européias, que em boa parte não tiveram relações com o velho Ezra. A conclusão desta longa introdução é óbvia: o conceito de invenção vem sendo usado por diferentes artistas, ao longo do tempo, e sobretudo no século XX, sem um alinhamento automático com a definição de E.P.

Apesar da atuação modernista na defesa da idéia de invenção, sobretudo em seu período mais radical, na década de 20, esta idéia só firmou raízes em nossa vida literária a partir dos anos 50, com o grupo Noigandres, que editou a revista Invenção, onde aliás publicaram autores como Paulo Leminski e Sebastião Uchoa Leite. A tese principal dos concretistas era o fim do "ciclo histórico do verso" e a busca de uma sintaxe analógica e ideogrâmica, com o recurso de outras artes, em busca de uma unidade entre a visualidade, a sonoridade e o conceito. Essa experiência atingiu o seu ponto máximo, talvez, nos anos 60, com os Popcretos, de Augusto de Campos. A partir daí, o próprio grupo concretista buscou outras modalidades de criação. Haroldo inicia a composição de sua prosa poética Galáxias, já flertando com a possibilidade de um novo barroco; Décio e Augusto, por sua vez, investiram em outros veículos, como a holografia, o vídeo, o computador, enfim, na arte eletrônica (participando, ainda, da evolução de nossa música popular mais avançada, primeiro a Tropicália, depois a "Vanguarda Paulista" de Arrigo Barnabé, entre as décadas de 60 e 80).

Pois bem: a crise do pensamento utópico, com a queda do "socialismo real" no Leste Europeu, no final dos anos 80, e o aparente esgotamento de algumas tentativas experimentais abriram um debate, ainda em curso, sobre o fim dos projetos coletivos alternativos de renovação artística e de reinvenção da polis; nesse contexto, surgem conceitos como o "fim da história" e do "pós-moderno", que trazem em seu bojo uma veleidade de eternização do presente, banindo as idéias de revolução ou inovação, os dois lados do projeto utópico que animou as primeiras vanguardas. Dentro desse contexto, Haroldo de Campos criou o conceito do poema "pós-utópico": "Ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar", sucede "a pluralização das poéticas possíveis". Em sua última entrevista, concedida a mim poucos meses antes de seu falecimento (e publicada no site Popbox, do poeta Elson Fróes, no endereço http://planeta.terra.com.br/arte/PopBox/haroldo2.htm), Haroldo diz ainda que "A idéia de invenção continua sempre vigente, mas em dialética permanente com a tradição. O poema pós-utópico nasce pontualmente nessa conjuntura dialetizada, onde são muitas as possibilidades combinatórias do passado de cultura com a agoridade, a presentidade, a imaginação criativa, a invenção".

Dentro desse espírito, eu e Frederico Barbosa fizemos uma revisão da poesia brasileira mais recente, com ênfase nos anos 1980-1990, cujo resultado é a antologia Na Virada do Século, Poesia de Invenção no Brasil. O título desta obra, desde o seu lançamento até hoje, tem sido objeto de polêmica, justamente pelo uso da palavra invenção (o próprio autor da "orelha" do livro, Sebastião Uchoa Leite, levanta dúvidas quanto ao fato de todos os 46 poetas reunidos no livro serem, de fato, "inventores"). A confusão, de certo modo justa, nasce da referência a um termo que, entre nós, é conhecido, sobretudo, pela definição de Pound, que não foi a empregada por nós. A questão, logo, é: O QUE SIGNIFICA UMA POESIA DE INVENÇÃO, HOJE?

Seria preciso escrever um amplo ensaio para responder a uma questão que não é simples, e exigiria um olhar em profundidade sobre a nossa produção poética, com ampla citação de exemplos, análise de poetas e poemas, o que com certeza não cabe no espaço de um site, ou mesmo em um artigo de jornal ou revista; seria o tema de um ensaio de amplo fôlego, que talvez venha um dia a escrever, quem sabe em parceria com Frederico Barbosa, se ele aceitar a empreitada. Acredito que, no prefácio a Na Virada do Século, já tenha introduzido o tema, de modo programático, em linhas gerais:

"A poesia é um corpo de delito. Propor novas relações entre as palavras, recusando a rotina no uso do idioma, é um ato de dissidência (para alguns, de demência). Escrever na zona de sombra, no espaço à margem, desvio ou desvão, é a demanda dos poetas brasileiros na entrada do terceiro milênio, em busca de uma escritura renovada. Nessa aventura que se desconhece, jogo de pólo entre centauros, a poesia se afirma como um exercício entre a razão e o duende e abre caminhos ao pensar, sempre enamorado de outras formas estruturais e semânticas. Ao longo dos anos 80 e 90, a descida de Orfeu aos infernos, que é a reflexão sobre os processos da linguagem, estimulou a releitura de autores "obscuros" ou "herméticos" de uma antitradição, como Lezama Lima, Paul Celan, Francis Ponge e Robert Creeley, numa saga de ampliação do repertório. Do mergulho vertical até o ignorado surgiu uma poemática concisa, elíptica, fragmentária e metafórica que por vezes sobrepõe o som ao sentido, ou antes cria novos sentidos para as palavras da tribo. Essa ars poetica, que já foi chamada de pós-concreta, parte da crise do verso de Mallarmé, mas procura soluções construtivas diversas de Noigandres. No lugar da visualidade, da aplicação de recursos tipográficos e de leiaute que nortearam as técnicas de composição do grupo concreto, o olho-da-forma dessa geração privilegiou a desarticulação sintática e a renovação léxica. Foi retomado, assim, o diálogo com o modernismo brasileiro em seus momentos de maior tensão e radicalidade, e em especial com Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto, sem recusar algumas contribuições da Poesia Concreta, da Tropicália e do legado das poéticas de vanguarda dos anos 70, entre outros ecos e reverberações. (...)

A desarticulação sintática e a mestiçagem semântica que verificamos nesses autores sugerem uma relação especular ou icônica com o tempo ruidoso, inquieto e fragmentário em que vivemos. O império do pós-moderno, que vaticinou o fim da história e o eclipse das utopias, sob a hegemonia do capitalismo predatório neoliberal, só poderia mesmo conduzir a dois caminhos opostos: o da negação da idéia de vanguarda e o da (re)afirmação dos conceitos de invenção e pesquisa estética. Enquanto o primeiro faz a apologia da adoção de formas canonizadas por certa crítica universitária, como a poesia coloquial e discursiva centrada no cotidiano, reverberando o Modernismo dos anos 30, o segundo retoma a exploração de novos processos e procedimentos de escritura, como resposta, no plano formal, ao discurso banalizante da mídia. A demanda de informação nova para o fazer poético, no caldo de beleza e brutalidade da aldeia globalizada, não se confunde, porém, com a tese de evolução estética linear, nem com a proposição de um futuro planejado, a partir de um programa teórico e de um grupo organizado, elementos típicos das vanguardas da primeira metade do século passado. Temos aqui uma pluralidade de linhas experimentais, firmadas no solo da agoridade, sem proclamar dogmas e heresias, sem convocar inquisições e cruzadas para a reconquista do Santo Sepulcro. Os poetas atuais não comungam de um mesmo credo, mas têm como princípio básico a noção do poema como um elaborado artefato de linguagem - e não apenas isso. O meticuloso artesanato das palavras soma-se à investigação de novos repertórios simbólicos e culturais do Ocidente e do Oriente, da escritura e de outros códigos de expressão, de um passado remoto ou da atualidade - como resistência.

(...) Sem exorcizar o passado, com furor iconoclasta, ou praticar a necrofilia dos gênios tutelares/tumulares consagrados pela tradição, esses poetas mantêm um diálogo vivo com o cânone, harmonizando passado, presente, futuro. Não almejam, como as viúvas de Olavo Bilac e Gonçalves Dias, retomar os metros clássicos, o soneto reciclado ou a retórica de juristas de província, mas recuperar o que houve de instigante, inquieto e desafiador nas vozes mais densas de nossa poesia. (...) Esta conversa inteligente entre poéticas de diferentes tempos históricos, sem vocação conformista, não intenta o retorno da múmia, mas do ideal de inovação e rebeldia, pois tem saudade do futuro, da utopia que ainda não houve, a construir. A relação entre arte e vida, que estimulou o debate sobre o fazer poético como conquista da forma ou confissão, parece já não ser um tema da agenda literária das novas gerações. Embora em alguns autores predomine o artifício, a maquiagem de um vocabulário rebuscado, as vozes mais consistentes da poesia atual evitam separar a experiência vital da operação de linguagem: as palavras fazem sentido não apenas como grafias, partituras e mosaicos, mas também como símbolos viscerais da jornada humana.

(...) A superação das dicotomias entre Eros e Logos, conteúdo e forma, inspiração e arquitetura, natureza e engenho parece ser a América desejada por todos estes navegantes, condenados, segundo a profecia de Octavio Paz, a conduzir revoluções solitárias. Só nos resta aguardar o que o tempo dirá de suas pequenas epopéias. Ao abalar as normas constituídas do discurso, e portanto as noções subjetivas do eu e do outro, do mundo e das coisas, o fato poético transtorna o olhar, e coloca em cena visões ou modelos da realidade que deslocam tudo o que sonha com a permanência. Nada é estático, parece nos dizer a poiésis, tudo está em mutação, como o rio arquetípico de Heráclito. Articulando novas formas de dizer, sem recusar o diálogo com os momentos transgressivos do passado, a aventura da modernidade tem sido, desde suas origens, definir a matéria verbal, o homem e o mundo como sinais de um contínuo vir-a-ser. O amadurecimento da nova poesia brasileira, em particular nos últimos vinte anos, reafirma o caráter dissidente, ou demente, dessa capacidade (necessária) de responder à esfinge com novos mistérios."

Poderia avançar mais, citando exemplos de autores e textos que considero inventivos, mas isso tomaria um tempo de que hoje não dispomos. Mas o debate continua, nas páginas virtuais desta revista.

Claudio Daniel, poeta e jornalista, publico, entre outros títulos, A Sombra do Leopardo (poesia, 2001) e Romanceiro de Dona Virgo (contos, 2004). É um dos editores da revista Zunái.

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Valdemar Carneiro: Existe poesia de invenção no Brasil, hoje? Como o espaço aqui precisa ser breve, falarei poucas palavras sobre alguns poetas que, a meu ver, fazem poesia de invenção no Brasil. Após o período mais radical da poesia concreta, quem realmente trouxe alguma coisa de novo, acrescentando formas e linguagens, foram sobretudo três poetas, a meu ver: Arnaldo Antunes, Ricardo Aleixo e Sebastião Nunes (esse, pertencente a uma outra geração literária). Dialogando com a música popular e erudita, com recursos eletrônicos e de multimídia, o Arnaldo tem colocado a poesia para fora dos livros: está na canção, no vídeo, no palco, no computador, pulsando em cores, em ritmos, em formas que evoluem de maneira sincronizada. A trilogia Nome (livro, fita de vídeo e CD) é talvez o seu trabalho mais experimental, que vai mais fundo na pesquisa de linguagem; mas não podemos esquecer de outras coisas fundamentais que Arnaldo vem desenvolvendo, seja no campo específico da poesia cantada / oralizada (como os CDs Corpo e Ninguém, sobretudo), seja no campo do livro impresso (Psia, Tudos, Dois ou Mais Corpos, As Coisas, entre outros títulos). Ele inova na diagramação, no uso de tipologias caligráficas, no uso de registros como a fala infantil, misturada com a gíria, o palavrão, o vocabulário erudito, sem falar no modo como "dissolve" o sentido literal, chegando por vezes ao absurdo intencional (algo semelhante aos "botões tenros" de Gertrude Stein). Seria preciso escrever um tratado apenas para falar do poeta-titã, que nos surpreende a cada nova investida no campo poético (descontando, talvez, algumas composições voltadas ao mercado fonográfico, o que representa outra faceta de seu talento múltiplo, plural). Ricardo Aleixo (juntamente com Antonio Risério) redescobriu para nós o "oriki", o poema africano de sentido mágico-religioso, usado nos rituais de candomblé para louvar os orixás. Longe de fazer uma pálida recriação "conteudística", com enfoque sociológico, ou mesmo místico-esotérico, Aleixo desenvolveu peças (reunidas no livro A Roda do Mundo) em que as palavras funcionam como acordes de canção; cada verso, cada estrofe pode ser cantada, dançada, dramatizada, dando nova vida a um gênero poético perdido (ou antes, conservado apenas nas limitações idiomáticas do nagô-iorubá, sendo entoado ainda hoje nos terreiros afro-brasileiros). A novidade do ioruba não está apenas na melopéia, na invenção metafórica, nos epítetos dados às divindades; é uma outra concepção de poesia, que faz parte de uma visão xamânica do mundo. Distante da sacralidade e da visão holística do oriki, o ex-poeta (e prosador genial) Sebastião Nunes tem provocado pequenas grandes reviravoltas em nossa literatura, com livros como as duas Antologias Mamalucas, o Decálogo da Classe Média, Sacanagem Pura e muitas outras obras (incluindo o recente Elogio da Punheta). O debochado autor mineiro avança na direção da ruptura entre os gêneros: ele joga no mesmo saco (digo, no mesmo livro) o poema, a fotografia, o cartum, a ilustração "roubada" de livros antigos, criando provocativos antianúncios, satirizando a linguagem publicitária. Seus textos (com elementos verbais e visuais) não são "contos", nem "novelas", nem "romances", e muito menos "poesia". O que são? Obras de Sebastião Nunes, único autor brasileiro, talvez, digno de fazer xixi no urinol de Marcel Duchamp!

Valdemar Carneiro, poeta e músico popular, reside em São João Del Rey (MG).

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Linaldo Guedes: Dia desses eu estava discutindo com um amigo sobre a poesia de invenção, a partir de um texto que ele havia publicado ironizando os "manuais de poesia inventiva". Sonetista de primeira, embora venha a algum tempo fazendo incursões na seara inventiva, meu amigo dizia que os tais manuais aboliram o soneto do cenário literário brasileiro. Disse-lhe que não era bem assim. E citei Glauco Mattoso, como exemplo de sonetista acolhido pelos poetas inventivos, inclusive sendo publicado com destaque no livro Na virada do século, organizado pelos poetas Claudio Daniel e Frederico Barbosa. Tentei explicar ao meu amigo que a proposta não abole o soneto e nem qualquer outra forma literária, apenas cobra um caráter inventivo do poeta. Que novidade teríamos se os sonetistas atuais fossem apenas epígonos de Camões e Olavo Billac? Nenhuma! Glauco Mattoso é, neste sentido, um grande exemplo da importância da poesia inventiva, na medida em que utiliza-se de um estilo tradicional para subvertê-lo, senão na métrica, mas no estilo.

No mais das vezes, é esse tipo de reação que temos ouvido constantemente, quando se fala em Poesia de Invenção. Muitos falam sem conhecer os poetas que estão inseridos nesta classificação, digamos assim. Outros, por puro preconceito. Ou porque não gostam dos nomes que lideram esse segmento poético. São amigos de "A", que detestam "B", esse último seguidor da poesia inventiva. A partir daí, misturam as coisas e passam também a questionar "B", por mais ele que venha fazendo um trabalho sério, de pesquisa de novas formas de linguagem.

Sim, porque é basicamente isso, penso eu, que propõe a poesia inventiva. Pesquisar novas linguagens poéticas. Ninguém, até onde eu sei, está no índex dos "manuais de poesia inventiva". Basta conferir o próprio livro Na virada do século. Poetas inseridos na coletânea assumem, em sua poética, as mais diversas influências, sejam elas clássicas ou contemporâneas. Acima de tudo, um diálogo aberto, franco e poético com poetas como Cruz e Sousa, Manuel Bandeira, Augusto de Campos, João Cabral de Melo Neto, poetas marginais, concretistas, enfim... É uma poesia que não comporta uma influência única. Está aberta a toda e qualquer referência, desde que propicie novas descobertas para a linguagem literária. É desta forma que vejo a poesia inventiva. Por isso a sua magia. Algo assim como um Oswald de Andrade. Antropofagicamente, deglutindo o que já foi feito e recriá-lo (não estou falando em copiá-lo), encontrando novas possibilidades semânticas e visuais que possam tirar a poesia do lugar-comum que permeia em muitos poetas que já se julgam clássicos.

Talvez, a grande falha da poesia inventiva seja a ausência de um manifesto assinado pelos líderes do movimento (sim, existe um movimento), explicando as propostas que norteiam essa poética tão rica. Mas novamente vejo isso como algo positivo. É como se os principais aglutinadores da poesia inventiva dissessem: "nada de amarras, todo mundo livre para compor sua poesia da forma que quiser e com a influência que achar importante, desde que busque novas formas de linguagem nesta poesia". Esta é, para mim, a grande magia da poesia inventiva. E cito Frederico Barbosa: tudo é invenção na poesia. Claro está que ninguém argumenta que descobriu a pólvora com esta forma de fazer poesia. Até porque a pólvora virou apenas referência, num mundo nuclear onde até as bombas devem ter precisão cirúrgica.

Resumindo: é como se a poesia inventiva estivesse funcionando neste momento atual da poesia brasileira como um suco. Isso mesmo, um suco do que de melhor existe em nossa poesia. Jogue num mesmo liquidificador os modernistas e os concretistas, os clássicos e os simbolistas, os beats e os marginais. Ligue o aparelho. Pronto. Temos uma nova poesia no Brasil. Uma poesia jovem, vigorosa e, para além dos maniqueísmos que enfeixam qualquer rótulo, acima de tudo importante para se discutir na prática, e com critérios que não serão nunca gratuitos, a literatura brasileira do futuro. Como diz Claudio Daniel, uma poesia mutável, sem qualquer concepção hegemônica. Fora daí, é o direito de espernear de quem quer ser eterno, mas não consegue nem ser moderno.

Linaldo Guedes é editor do Correio das Artes e poeta, autor de Os zumbis também escutam blues.

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Sabião Bestunes: Para haver poesia-de-invenção é preciso que exista seu oposto, isto é, poesia-sem-invenção. Assim, o conceito invenção é mais ou menos como o conceito rabo. Não é possível conceber a idéia de rabo puro, quer no sentido platônico, de rabos existindo em-si e para-si, isolados numa caverna ideal, esperando serem possuídos por algum ser desrabado, quer no sentido kantiano, de rabo como ser-puro-sem-o-outro, em que o rabo só assumirá função específica no corpo de quem o possuirá, se o possuir, em futuro incerto e não sabido, já que para Kant rabos podem existir a priori. Me parece bem mais adequada a formulação de Hegel, para quem "tudo o que possuis também te possui". Rabo será então, filosófica, material ou esteticamente, rabo de alguma coisa, ou de alguém. Quando digo "Fulana tem um belo rabo", é lógico que me refiro à bunda de Fulana. Se digo "Beltrano é um cara rabudo", com certeza significo que Beltrano tem muita sorte". Mas se declaro apenas "O rabo da lagartixa caiu", estou apontando o ex-apêndice caudal do infeliz réptil (já que lagartixa é réptil), que se desprendeu, por si ou por artes malévolas de algum peralta de estilingue em punho, do corpo de seu ex-possuidor. E digo mais: embora réptil signifique, biologicamente, indivíduo que se arrasta, por ausência de pés ou por os possuir muito curtos, vale dizer que todos os répteis possuem rabos, daí o conceito ampliado de réptil como "vertebrado rabudo que se arrasta", enquanto poetas são "bípedes implumes peludos", cf. Aristóteles. Aliás, reza a tradição que a fórmula inicial de Aristóteles era apenas "bípede implume", até que Diógenes, o Cínico, lhe apresentou um galo depenado, dizendo: "Eis o teu poeta!", no que não estava destituído de razão. Também vale dizer que répteis são animais de sangue frio, significando que lhes basta se alimentarem uma vez a cada doze dias, mais ou menos, enquanto os poetas, possuindo sangue quente (embora pesquisas recentes demonstrem que a maioria dos poetas é exangue), exigem três ou quatro substanciosas refeições diárias, sendo por isso mesmo incluídos entre os mais ferozes predadores. Isso no que se refere ao conceito de invenção-em-si. Vejamos como esse apêndice poético se comporta enquanto invenção-para-o-outro.

Posto em circulação - e canonizado - pelos concretistas, o conceito de invenção ligado à poesia estabelecia limites rígidos entre dois tipos de produção poética, a deles mesmos, concretistas, e a dos não-concretistas. Nesse caso, e continuando a usar a imagem de rabo, que me parece bastante sugestiva, os poetas inventivos seriam os que possuem rabo. Já os poetas não inventivos seriam os despossuídores de rabo. Teríamos então poetas-uros e poetas-anuros. Ora, visto isso, e voltando à biologia, sabemos que - em sua quase totalidade, e em termos de evolucionismo - rabos cumprem funções específicas, ou como formularam oportunamente Darwin e Wallace, aquilo que perde a função biológica tende a se atrofiar e desaparecer, como exemplifica muito bem o rabo no ser humano, hoje denominado cóccix ou, em linguagem mais arejada e descontraída, osso-do-pai-joão e ainda mucumbu. Notem ainda que me refiro aos concretistas em seus primórdios, enquanto cavaleiros-andantes-poetas, ou seja, enquanto paladinos de seus poemas e teoremas que, na época, lá pelas décadas de 50-60, equivaliam aos pobres órfãos, viúvas e donzelas desamparadas de Dom Quixote, o da Triste Figura, no que aliás faziam muito bem, diante de tantos ogros, gigantes e valdevinos apoéticos, quando não apopléticos, que estorvavam suas poéticas especulações. Hoje, não se fala mais em concretismo enquanto ser-ao-vivo-em-si-contra-todos, mas apenas como belo e corajoso movimento de nossa história literária, ou seja, como ser-ido-e-vivido-e-muito-bem-vivido.

Vamos pois às conclusões dessa inconclusa lengalenga. Se o conceito invenção continua tendo sentido hoje em dia (já agora fora de qualquer conotação concretista, ou mesmo para ou meta concretista), poesia de invenção seria poesia-ura. Se, ao contrário, o conceito invenção perdeu todo e qualquer sentido, poesia seria poesia-anura, ou poesia pura e simplesmente, sem rabo de espécie alguma. Pessoalmente - e até de acordo com as correntes mais vigorosas do esteticismo poético contemporâneo -, creio preferir a poesia-anura, ou seja, a poesia desprovida de qualquer apêndice. Em resumo, e grosso modo, ou é poesia-em-si-para-si-e-para-o-outro, ou não vale a pena ser publicada, quem dirá escrita. Mas como não sou nem pretendo ser dono da verdade, deixo a questão em suspenso, como fazia Kierkegaard quando queria desesperar filósofos rivais, para que seja discutida por poetas uros ou anuros mais atuantes que eu mesmo, convictamente um ex-poeta-uro. Ou serei ex-poeta-anuro? Não estou certo, infelizmente, de minha rabicidade estética.

Não importa. Creio porém, e firmemente, que só pelo fato de propor nova e mais rigorosa terminologia para a questão (desdobrando o conceito "poesia de invenção" em "poesia-ura" e "poesia-anura") terei contribuído para aclarar as vias pelas quais penetrem os valorosos defensores de uma e outra tendência terçando armas, executando filigranas, tecendo sutis arrazoados ou mesmo tratando-se aos bofetões e aos sopapos, como faziam há décadas concretistas e não-concretistas. Chego mesmo a suspeitar que, houvessem eles, concretistas, neoconcretistas, praxistas, processualistas, derramados, engajados, alienados, violonistas-de-rua, marginais e diarréicos adotado a divisão que ora proponho jamais teriam se engalfinhado em porfias tão renhidas, pelo que lhes sobraria mais tempo para o lazer e o ócio, isto é, para se dedicarem plenamente à inclamidade, tão mais necessária à humana espécie que poesia. Ura ou anura, tanto faz.

Sabião Bestunes, pseudônimo do mineiro Sebastião Nunes, é ex-poeta, filósofo, antropólogo cultural, ensaísta, ficcionista, escafandrista e ginecologista experimental, entre outros ofícios nobres. Publicou, pela Lamparina Editora, o Elogio da Punheta (2004).

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Ronaldo Bressane: Putz, sinceramente, amigos, a desgastada expressão pra mim não significa nada. Virou mais um chavão crítico. O que seria oposição à "de invenção"? Poesia "de conservação"? Toda poesia que interessa é invenção e conservação ao mesmo tempo. Dante é tão inovador quanto Leminski. Glauco Mattoso é tão reacionário quanto os parnasianos. Mas reduzi-los a um termo ou outro é burrice.

Penso que estamos em uma época que, felizmente, nos libertamos desse jogo cretino de engavetar poetas em grupos [eu quero viver essa época, pelo menos - é bem mais divertido pensar assim]. A busca incessante pela "invenção" pode ser estéril - o que é novo, em 2002? [pergunta que já deve ter sido feita em 1902, em 1802...], ao mesmo tempo em que o tesão pelo cânone só dinamita a cultura que o fabrica, em vez de revelá-lo.

A meu [pequeno] ver, o grande lance da poesia de hoje não é requerer invenção ou canonização. O problema é que às vezes sobra ego, sobra Poesia em caixa alta, sobra O Poeta - e falta sangue. E sangue, ao que se sabe, não se inventa. Nasce-se com. Ou se morre sem.

Existe uma poesia de invenção hoje, no Brasil? Há poetas que se satisfazem em imitar o poema-crônica-de-jornal, o poema-piada, o sonetinho rimado, a elegia metafísica; mas há outros poetas que preferem pesquisar coisas novas. Não são talvez inventores, no sentido que Ezra Pound deu à palavra, mas trouxeram alguma coisa diferente do chove-e-não-molha que predomina nos cadernos literários dos grandes jornais. Ricardo Aleixo é um desses caras, que trouxe para nós o oriki, espécie de mantra dos povos africanos, que ele recriou, revitalizou, de maneira genial. Josely Vianna Baptista é outra, essa em outra praia, que mistura poesia concreta, neobarroco e coisas dos índios. Tem ainda o Joca Reiners Terron, esse maluco de pedra. E muitos outros, da geração mais nova, que foram publicados por pequenas editoras, nos últimos quinze anos. Algum deles vai ficar? Quem será o nosso Cummings, o nosso Maiakovski, o nosso Ezra Pound? Vamos esperar para ver...

Ronaldo Bressane, escritor e jornalista, nasceu em São Paulo (SP), em 1970. Publicou a trilogia de contos A Outra Comédia, formada por Os Infernos Possíveis (1999), 10 Presídios de Bolso (2001) e Céu de Lúcifer (2003), além do volume de poemas O Impostor [(2002).

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[ ZUNÁI- 2003 - 2005 ]