ZUNÁI
EM DEBATE
As
conquistas da Semana de Arte Moderna já estão superadas?
Horácio Costa: as conquistas do
secularismo no Oriente Médio, simbolizadas pela figura
modernizadora de Atatürk, morto em 1938, estão esgotadas?
Horácio Costa, poeta, tradutor e ensaísta,
publicou, entre outros títulos, O menino e o travesseiro,
Quadragésimo e a antologia Fracta. É professor
de Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP).
*
Sérgio Medeiros: Quando penso em Mário
de Andrade, quando penso no seu romance Macunaíma
(1928) e no diálogo desse romance com os mitos indígenas
amazônicos, sou levado a acreditar que a resposta é um sonoro
não. Mário se baseou, em parte, nos mitos recolhidos pelo
etnógrafo
alemãoTheodor Koch-Grünberg, que visitou a floresta amazônica
no início do século passado. Quando eu era estudante de
Letras, lembro que tinha muito interesse em ler esses mitos,
mas não encontrava edições dos mesmos. Descobri que ninguém
das minhas relações, nem aluno nem professor, conhecia esses
mitos. Isso prova, para mim, que as conquistas da Semana de
Arte Moderna, e do Modernismo brasileiro em geral, não estão
esgotadas. Ainda não conhecemos Makunaíma, o original
de Macunaíma, o herói do romance de Mário. O que então
já se esgotou? Nada! Nossa ignorância é imensa e contra isso
lutou a Semana de Arte Moderna.
Em 2002, depois de anos de pesquisa, organizei uma edição
contemporânea desses mitos amazônicos, traduzidos diretamente
do alemão (Mário os leu em alemão). O livro saiu pela editora
Perspectiva de São Paulo, sob o título Makunaíma e Jurupari.
Devo a idéia de fazer esse
livro à Semana de Arte Moderna.
Sérgio Medeiros
é poeta, tradutor e professor de literatura na UFSC
*
Ricardo Silvestrin:
Uma vez fui convidado pela TVE aqui em Porto Alegre para entrevistar o Décio Pignatari. Relatei a ele uma das cartas
do poeta Paulo Leminski a Régis Bonvincino. Nessa carta,
Leminski fala de um episódio que denominou como uma
transmissão da lâmpada. A expressão remete a quando um mestre
diz algo para os discípulos que funciona como um insight,
cai a ficha, ao mesmo tempo em que se cria um novo desafio.
Aconteceu quando Paulo e outros jovens poetas estavam reunidos
com Pignatari, que lhes disse algo como "o concretismo tem que
acabar; e só quem poderia fazer isso eram eles". Leminski
ficou um tempo pensando em como poderia fazer tal empreitada e
concluiu algumas coisas. A primeira é que ele era mais
concretista que os concretos, pois já nasceu concretista,
começou a escrever já sendo, enquanto os "patriarcas" do
movimento tiveram que chegar até essa forma. A segunda é que
ele era várias outras coisas que os concretistas não eram,
sobretudo, no que toca aos trotskismos e à contracultura.
Então, quando Leminski deixou que essa duas linhas políticas e
comportamentais de sua geração entrassem na sua poesia, fez um
poema que superava, que não era mais poesia concreta, embora
nascida nela, como consciência de linguagem e invenção com a
palavra. Perguntei na entrevista ao Décio no que ele pensava
quando disse aquilo para os jovens poetas. Ele queria dizer
que estavam, a academia, as universidades, na época, tentando
catalogar, "matar", encontrar as leis, as características da
poesia concreta e transformá-la num ismo, o concretismo. Na
sua visão, nem ele nem os outros colegas de movimento queriam
isso. Nunca fizeram um concretismo e sim a poesia concreta. E
acrescentou: e o que é a poesia concreta? É uma pergunta: o
que é a poesia? E é essa pergunta que devemos fazer a cada
vez que escrevermos um poema. E a cada vez devemos dar uma
resposta diferente. Há um vício escolar de querer encontrar
nos autores e nas escolas literárias leis. Mas se olharmos os
grandes poetas da primeira fase do modernismo brasileiro,
todos são muito diferentes. A poesia de Oswald não se parece
com a do Mário de Andrade, que por sua vez não se parece com a
de Manuel Bandeira e, seguindo, não se parece com a de
Drummond, que não se parece com a de Vinícius, que é diferente
da de Cecília Meireles, que difere da de Quintana. Creio que
sejam esses os principais disso que se convencionou chamar de
modernismo. O que os une? A liberdade de criar a sua própria
poesia. Não é outro o sentido do verso final da Poética do
Manuel Bandeira: "não que mais saber do lirismo que não é
libertação". João Cabral escreve num dos ensaios do seu livro
Prosa sobre isso. Sobre o momento especial que viveram
esses poetas, principalmente os da década de trinta, pois
puderam fazer dos seus critérios pessoais a sua estética. Mas
isso não é apenas um privilégio de um momento. É a condição
para que uma poesia se estabeleça entre tantas. Camões
escreveu sonetos, uma forma fixa muito praticada também na sua
época. Mas o soneto dele tem marcas próprias, que ultrapassam
a forma e mesmo transformam a forma. A inteligência, a visão
de mundo, o engenho e a arte que eram só dele fazem de algo
aparentemente igual, diferente. Se pensarmos que a maior
conquista da Semana de 22 é a liberdade de criar, não está nem
nunca estará esgotada. Outro ponto: os poetas modernistas
morreram ontem. Até poucos anos estavam entre nós, produzindo,
lançando livros contemporâneos. Não se pode pensar em
modernismo como algo que começa em vinte e termina na década
de cinqüenta. Pouco se tem falado sobre a poesia de Ferreira
Gullar Estou relendo tudo o que ele escreveu. O Poema Sujo
é algo extremamente pessoal e intransferível. Longo,
sensível, político, filosófico, apaixonado, memorialista,
criativo, com vários ritmos, imagens. Não tem muito parentesco
com o que se fez antes na nossa poesia. E depois, nos livros
mais recentes, pérolas desse poema-pensameto, de verso magro
que o Gullar realiza como só ele mesmo. A virada de Chacal,
relançada numa linda edição da CosacNaify, no Belvedere. Ali,
tudo muda. Mas mudou, porque Chacal teve a coragem de ser ele
mesmo. Isso é 22? Não. Isso é a arte. Quem não encarar a si
mesmo, não faz nada que acrescente. E encarar a si mesmo é
botar na balança o que aprendeu com quem veio antes, mas
colocar na roda também o que aprendeu consigo mesmo. Podemos
ver no século vinte e começo desse século dois movimentos que
chamo de desliteralização e de literalização do poema. A
desliteralização é a aproximação com a fala, distanciando da
linguagem tida como literária: termos coloquiais, gírias,
ritmos mais centrados no espaço, na quebra, do que na métrica,
temas cotidianos, brasilidade, urbanidade, ruptura com
cânones, invenção. A literalização é o contrário: uso de
termos mais raros, diálogo com formas fixas, clássicas, temas
elevados, filosóficos, sombrios, reverência à tradição. Esses
dois movimentos existem e existiram simultaneamente em todas
as décadas, inclusive como fases de um mesmo autor. Em
determinados períodos, um se sobrepõe ao outro, aparentemente
ganha a briga, mas se esgota na luta, enquanto o outro se
recupera. Isso porque a arte tem que seguir a estranhar. O que
era novo fica conhecido, vira truque, então um novo novo, que
pode ser até o velho, já se ergue. Na seqüência, os mesmo
elementos reordenados, dispostos de outra forma, renascem. E
tem as gerações que se sucedem. Cada uma tenta encontrar uma
nova linguagem para a sua nova visão de mundo. Não é de grande
utilidade querer dar por encerrado nada
em arte. Querer formar consensos,
grupelhos, leis, só servem para a auto-afirmação temporária,
mas a obra, meus amigos, como disse o Gullar, é que vai
sobreviver ou não a nós todos. Sobreviver à politicagem, aos
amigos dos editores, aos jornalistas e suas turmas, aos
cupinchas, aos equivocados e aos lúcidos.
Ricardo Silvestrin
é autor de O menos vendido, ex-Peri,mental, Palavra mágica,
Quase eu, Bashô um santo em mim e Viagem dos olhos, além dos
infantis O baú do Gogó, Pequenas observações sobre a vida em
outros planetas, É tudo invenção e Mmmmonstro!. Integra o
grupo musical os poETs. Assina uma coluna no Segundo Caderno
do jornal Zero Hora.
www.ricardosilvestrin.com.br
*
Claudio Daniel:
a poesia, para mim, sempre foi sinestesia, teurgia, palavras
recitadas como mantras ou cantos sagrados, cerimoniais. Esse
caráter ritual da poesia, no entanto, nada tem de arcaico; ao
contrário, é estimulante para a pesquisa de combinações
imprevistas, inusuais, de sons e imagens, numa busca
incessante de outras construções, outros caleidoscópios, ecos
especulares da ânsia por uma nova ordem das coisas. Nunca me
interessei por poetas que se limitam a pintar cenários banais,
previsíveis, da vida ordinária, numa representação superficial
da realidade. No ensaio que escrevi sobre o uruguaio Victor
Sosa, chamado Arte
de enlouquecer cristais, digo o seguinte: "Nada é
tão linear, tão lógico e previsível como a crônica de jornal.
A Natureza, que criou o lagarto e a vulva, os cristais e o
caramujo, a lepra e a madrepérola, é uma deusa bizarra e
caprichosa; e o poeta, seu sacerdote, por dever de ofício e
devoção à deidade, não pode fazer por menos. Limitar-se à
contemplação rotineira das coisas, longe de ser uma postura
realista, conduz a um afastamento do 'real', esse ente
metafísico que não se distingue, em seu significado mais
profundo, da mente e do universo". Poesia, para mim, é a busca
incessante de novas formas e sentidos, de novas visões e
modelos de mundo (ou, como diria o chileno Vicente Huidobro,
de uma nova fauna e flora). Quanto ao modernismo, vale a pena
dizer que não foi uma única vertente, mas várias: podemos
citar, por exemplo, a corrente antropofágica de Oswald de
Andrade, Pagu, Raul Bopp e Tarsila (para mim, a mais
interessante, pela radicalidade da invenção formal); a
linhagem órfica de Jorge de Lima e Murilo Mendes (que ainda
merece um estudo em profundidade, inclusive por sua
repercussão em poetas posteriores, como Mário Faustino); a
vereda coloquial-cotidiana de Bandeira e Drummond, hegemônica
na universidade e na imprensa, talvez por ser a de mais fácil
compreensão, e por inspirar hoje vários poetas medíocres, mas
de grande influência na mídia; e a linha construtivista, que
vai de João Cabral de Melo Neto, nos anos 40, até a Poesia
Concreta, nas décadas de 50 e 60. Claro que há outras linhas
nascidas da Semana de Arte Moderna de 1922, citei aqui apenas
aquelas que acho fundamentais. De todos esses nomes, foram
importantes em minha formação literária, sem dúvida, Oswald,
Murilo, Cabral e os concretos, com quem aprendi a arquitetura
do poema, a pensar em cada palavra, linha e conjunto de linhas
de maneira orgânica, onde nenhum elemento está a mais ou a
menos no conjunto. Há muito o que explorar nas produções mais
radicais do modernismo, como Cobra Norato, Macunaíma
ou Serafim Ponte Grande, mas há também muita coisa
ultrapassada, como a poesia-crônica e o poema-piada, já bem
diluídos pela epigonal Geração Mimeógrafo dos anos 70. Creio
que uma atitude crítica é necessária hoje, para a divisão de
águas entre o que ainda é instigante e o que já está morto e
apodrecido na tradição modernista, para que possamos caminhar
em direção ao futuro, não ao passado.
Claudio Daniel,
poeta, tradutor e ensaísta, publicou, entre outros títulos,
Romanceiro de Dona Virgo (2004), Jardim de Camaleões
(2004) e Figuras Metálicas (2005).
*
Paulo de Toledo: dentre todas as contribuições trazidas
pela Semana de 22, eu gostaria de destacar apenas uma: a volta
do humor, brasileiro à literatura nacional. Digo brasileiro,
porque os participantes da Semana se utilizavam de um humor
brasileiramente carnavalizado (no sentido bakhtiniano) e não
apenas um humor à inglesa (como Machado) ou um humor mais pro
irônico (como depois se caracterizou o humor
drummondiano). O humor de Oswald (principalmente) e de seus
companheiros era (é!) um humor avacalhado, que lutava contra o
império do "bom tom", da língua asseada e asséptica, e
desafinava o coro das contentes mocinhas das paróquias
literárias. Esse humor, que era quase que proibido entre os
parnasianos e simbolistas, riu da seriedade da academia e dos
vates com pose de habitantes do Olimpo.
Com esse humor - sempre crítico e consciente do seu potencial
construtivo e destrutivo -, os poetas e escritores puderam
produzir uma "metalinguagem pelo riso" e desopilar o fígado da
nossa caretamente séria literatura dos primórdios do século
passado. Viva Gregório! Viva Oswald! Viva Leminski! Viva
Glauco!
P.S.: Um texto fantástico sobre o assunto se encontra no livro
Cultura Pós-Nacionalista, de Décio Pignatari: "Semana
de Arte Moderna: 22, 32, 42, 52, 62, 72, 82, 92, 2002...".
Paulo de Toledo é poeta e tradutor.
|