ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ZUNÁI EM DEBATE

 

Qual é a relação hoje entre a criação literária,

a mídia e o mercado?

 

 

 

José Aloise Bahia: Em grande parte, as argumentações, pistas e interlocuções aqui apresentadas têm como ponto de partida algumas idéias do ensaísta, escritor e professor universitário Silviano Santiago, que em recente entrevista para o caderno Pensar do jornal Estado de Minas, ao ser perguntado pelo também escritor Carlos Herculano Lopes se via alguma transgressão na literatura brasileira atual, afirmou o seguinte:

"Está acontecendo uma coisa que por um lado é muito positiva e, por outro, discutível. Houve um desbloqueio da noção da literatura, daquela grande literatura do século 19, e isso se deu em função do mercado. Hoje, quase não se fala mais em literatura, mas em produção textual. E essa produção, atualmente, está muito variada, como a que se refere à questão das minorias, por exemplo, onde a transgressão é menos formal e se dá mais no plano do que tradicionalmente se chamava de conteúdo. Exemplo: hoje temos uma literatura negra interessantíssima, uma outra que fala da questão indígena, dos gays, das lésbicas, e assim por diante. Tudo isso é uma literatura com uma vertente popular muito forte, sem que seja necessária aquela outra, com L maiúsculo. Nisso a música popular também se enquadra. Scripts de filmes, que ninguém julgava como literatura, hoje ganha força. Outro dia li o Deus e o Diabo na Terra do Sol, e só então me dei conta que aquilo é um romance maravilhoso. Existem ainda as peças de teatro e, mais recentemente, os blogs, a literatura infanto-juvenil, e assim por diante. Então, esse desbloqueio da noção de literatura é fascinante."

Carlos Herculano Lopes insiste: e o problema?

"É o da qualidade, que infelizmente não tem sido bem resolvido pelos teóricos. O romance e o conto continuam fortes, mas hoje já não são mais imbatíveis, basta ver que as edições estão cada vez menores. Acho que estamos passando por uma fase em que teremos também de dialogar com as formas canônicas do saber, como a filosofia, a história, a sociologia, pois só assim iremos perceber que a literatura é um diálogo extremamente rico."

Num desdobramento das palavras de Santiago, chama a atenção, na contemporaneidade, à intertextualidade, às várias interfaces e uma constatação: um contexto dinâmico, em que pequenas e recentes editoras espalhadas pelo Brasil afora - além dos sites e blogs na internet -, incrementam a publicação de uma vasta gama de textos e autores de qualidade, poucos conhecidos, analisados e divulgados pelas mídias hegemônicas. Por outro lado, observa-se também um aumento do número de revistas impressas especializadas na divulgação da literatura bem como os cadernos semanais culturais e literários nos jornais diários e os antigos suplementos literários já existentes. É este reino, o da pluralidade, que espreita o alcance de um mercado mais amplo, um mercado que realmente torna público a leitura e a literatura em terras brasileiras. Principalmente, a literatura escrita por autores nacionais.

Dentro desta inigualável variedade de publicações, em seus diversos suportes e veículos, entretanto reina sempre em compasso de espera  - desde que me entendo por gente, sempre escuto isso - a velha questão abordada de modo objetivo em artigo de 2004  - "Literatura na Escola", site: www.universia.com.br - pela professora Nelly Carvalho (Departamento de Letras da UFPE - Universidade Federal de Pernambuco):  "A chance de integração cultural para um jovem é estudar a literatura do país. O que acontecerá nas universidades, se não se adquirirem, no secundário, os rudimentos de literatura?"

A pergunta vem a cabo na tentativa de refletir e apontar algumas constatações que são freios no alargamento de um mercado consumidor de livros e da literatura. Um dos fatores que emperram esta expansão, como bem observa a maioria das pessoas, ainda está na questão educacional. Aqui parte da tentativa de uma resposta para aumentar o nível de qualidade e formação de leitores reflexivos e críticos, passa pelo enfrentamento da questão da melhoria da qualidade dos ensinos fundamental e médio como motivação para a criação literária. Uma questão leva a outra, não tem como negar. Como também não tem como negar a pífia parcela do orçamento da República Federativa do Brasil destinado à educação.

Alguns argumentam também que falta uma política cultural objetiva por parte dos governos pós-ditadura, especialmente voltada para a questão do livro didático e da produção literária. O livro no Brasil é caro, e objeto dispensável na hora de incrementar o bolo econômico. Outros argumentam com o velho discurso de que a culpa é da televisão, como fator que enfraquece a leitura. Ou a alegação de que alguns jornais, revistas e sites/blogs nas feituras de suas produções textuais, na sua maioria criam subprodutos substitutos da literatura - resumos de obras, resenhas facilitadoras, críticas descompromissadas, viciadas e marqueteiras, ensaios redutores, etc., ajudando pouco na informação, ou informando mal; formação e estímulo de um público cativo e em potencial.

Ou ainda no uso discrepantes de autores estrangeiros nos ensinos fundamental e médio. Ou nos diálogos, interfaces e estudos de literatura comparada, em que os autores estrangeiros estão presentes em número considerável. Ou na falta de incentivos de determinados autores nacionais "consagrados", pelo farto espaço que usufruem na mídia e a força que têm junto ao público em geral. Boa parte destes autores prefere os canônicos, ou sequer leram algum outro autor contemporâneo.

Até hoje eu não entendo o receio de parcela destes "consagrados" de falar de novos e bons autores, que estão no limbo. Será que eles vêem estes novos escritores como concorrentes em potencial!? Ou seria também um outro tipo de discurso camuflado pelos interesses das grandes editores!? As quais, na sua maioria, ofertam aquilo que dá retorno, aquilo que elas consideram qualificável e vendável. Afirmações e questionamentos que merecem ser abordadas em outro artigo, com mais veemência. Mas, ainda bem que existem exceções entre os autores "consagrados". Receberam a mão quando começaram, e estendem os braços, abrindo espaços para os novos. 

 

Deuses e Mitos.  Inimá de Paula.  1983.   Xilogravura.  Tiragem Especial 13/18.  29x21 cm



Ou, como afirma de modo enfático Santiago na mesma entrevista: "A boa literatura incomoda. Queiramos ou não, ela traz em si isso que hoje eu acho um pouco ridículo, mas que também não podemos jogar na sarjeta, a questão da qualidade. E o brasileiro, de certa forma, nunca soube trabalhar bem esta questão. É como se tivesse um complexo de inferioridade em relação àquilo que lhe é apresentado como bom. Então ele só passa a aceitá-lo quando esse algo de qualidade se torna canônico. Eu acho isso muito estranho no temperamento do intelectual brasileiro. O caso clássico é o de Guimarães Rosa. Quando ele publica Grande Sertão Veredas, em 1956, Ferreira Gullar disse que não tinha conseguido passar das primeiras 40 páginas, pois aquele era um livro para filólogos."

Emerge aqui a questão do tempo. Tempo de aceitação, firmamento e maturação de determinados escritores, de acordo com as predileções e visões acadêmicas e da mídia, que ditam os agendamentos do mercado. Como também emerge os incômodos e miopias que rondam as salas de aulas e determinadas exclusões impostas por uma excessiva publicidade de quem não precisa, não merece. Primeiro pela "qualidade" da escrita capsuladas pelas editoras de grande porte e suas linhas editoriais. Segundo, ainda pelo grande desprezo de grande maioria das bancas acadêmicas pelos autores novos e de qualidade. O reflexo disso tudo estão nas salas de aulas dos ciclos formadores - primeiro e segundos graus -, em que os professores carecem de mais reflexão no diálogo da literatura produzida hoje - os novos - com os autores canônicos - os antigos. Essa ponte pedagógica deve ser feita com cuidado e ousadia. Ela passa pela academia, universidades, pela mídia e o próprio mercado, se é que todos queiram realmente alargar os espaços de consumo em interlocuções mais firmes e arrojadas.

Valorizar os bons escritores contemporâneos da literatura com as suas afinidades de cada região, onde passam/passaram parte de sua vida, ou livros temáticos e segmentados de acordo com os seus públicos-alvos - livros com qualidade - é um dos princípios para integrar, formar uma demanda e fomentar um tipo de inclusão, em que os novos possam existir sem serem ofuscados pelos antigos. Vislumbrando horizontes de comunicação, leitura e reflexão de um tipo de cultura educacional que cria possibilidades e esforço para que algumas rupturas aconteçam e revigore o desejo de mudanças.

Em tempo: vale conferir o portal www.letras.ufmg.br/literafro, cujo intuito é divulgar e estimular a reflexão sobre a produção literária e as histórias dos escritores brasileiros afrodescentes. Vai de Abdias do Nascimento, passando por Cruz e Souza, Edimilson de Almeida Pereira, Lima Barreto... Até chegar em Waldemar Eusébio Pereira. São 100 nomes. Uma bela iniciativa que contempla os novos e os antigos... 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, ensaísta e pesquisador. Estudou economia (UFMG). Graduado em comunicação social e pós-graduado em jornalismo contemporâneo (UNI-BH). Autor de Pavios Curtos (anomelivros, 2004) e Em Linha Direta (no prelo).  josealoise@terra.com.br

*

Claudio Willer: Lembro a perfeita percepção que Baudelaire tinha da incompatibilidade entre poesia e mercado - a poesia dele, é claro. E de uma situação nova, diferente, do poeta na sociedade moderna, descrita, entre outros lugares, naquele poema em prosa sobre o poeta que deixou cair sua aura. Mallarmé também distinguia, de modo categórico, a poesia daquilo que ele chamava de comércio e de metalurgia, ou seja, mercado e indústria, além de salientar sua irredutibilidade ao útil. Basta ver suas considerações na série de artigos intitulada (na edição Pléiade) de Variations sur un sujet. Não por acaso, Baudelaire e Mallarmé contribuíram, de modo decisivo, para a compreensão da modernidade.

A realidade não é uma São Paulo Fashion Week. Também não é uma Bienal do Livro, a cada ano com novos títulos, novas atrações, e sem conexão com a edição anterior da mesma Bienal - a não ser uma coerência muito geral, e muito genérica: essa consiste no baixo comercialismo daqueles editores que acham que vender livros, quaisquer que sejam, é bom, independentemente do conteúdo, do nível, da qualidade - por isso, a cada vez que visito a Bienal do Livro, saio com a certeza de que sempre é possível piorar.

A percepção do mesmo, do que não mudou, pode, por sua vez, contribuir para enxergar o que efetivamente mudou. Ajuda a perceber o novo. Geração beat, que agora comemora os 50 anos de publicação de Howl, de Ginsberg, e a conseqüente aparição pública: aí está algo novo, pelo modo como obras poéticas romperam a barreira do mercado, com os milhões de exemplares vendidos de Howl, e pelo impacto na sociedade, projetando-se em movimentos sociais. Cito um trecho de um dos últimos depoimentos de Ginsberg sobre o que a beat provocou: O espírito de investigação da natureza da consciência, levando à aproximação com o pensamento oriental, à prática da meditação, à arte como extensão ou manifestação da exploração da textura da consciência, daí resultando a liberação espiritual. Isso levou à liberação sexual, particularmente a liberação gay, que historicamente desempenhou um papel como catalisador da liberação da mulher e na liberação do negro. Uma visão tolerante, não-teística, advinda da exploração da textura da consciência, por isso um antifascismo cósmico, uma abordagem pacífica, não violenta, à política; multiculturalismo; a absorção da cultura do negro ao "mainstream" da literatura e música. E muito mais, penso. Além disso, a beat é politicamente atual. É a manifestação de um pensamento anarquista que continua valendo como alternativa ou superação da dualidade entre um neo-conservadorismo e uma esquerda anacrônica e burocrática (além de um tanto corrupta, a julgar pelo noticiário recente sobre alguns de seus representantes no governo brasileiro...).

Vocês se lembram da passagem de A Outra Voz de Octavio Paz, em que ele cita o dito de Pound, de que bastaria que o poema publicado em alguma obscura revista literária fizesse ferver os miolos de 27 de seus leitores para garantir sua permanência? Octavio Paz insiste muito na vocação minoritária da poesia (embora reconheça que isso mudou com a beat); e, ao mesmo tempo, em sua durabilidade; sua influência sobre elites e grupos minoritários, alguns dos quais, por sua vez, promoveram mudanças sociais:

Não sabemos quantos romanos liam Ovídio, quantos italianos a Petrarca, quantos franceses a Ronsard; sabemos, contudo, quem os lia. Poucos ou muitos, esses leitores eram a cabeça e o coração da sociedade, seu núcleo pensante e atuante. Embora pertencessem às classes dirigentes, muitos eram rebeldes e críticos da ordem estabelecida. Outros eram solitários, ermitões intelectuais.

Aceita essa perspectiva, o obstáculo para a difusão da poesia, hoje, não reside tanto no mercado, ou em um mercado da poesia continuar restrito, porém na existência de elites burras. Política educacional, qualidade do ensino, políticas culturais públicas: aí estão temas, a meu ver, mais importantes, mais merecedores de discussão, que o mercado. Equivaleria ao mais raso sociologismo e economicismo deixar de perceber o quanto aquilo que ocorre na formação, no ensino, é determinante do modo como bens culturais circularão em seus mercados.

Claudio Willer, poeta, tradutor e ensaísta, publicou, entre outros títulos, a antologia poética Estranhas Experiências (Lamparina, 2004) e a tradução das Obras Completas de Lautréamont (Iluminuras, 2005).

 

*

Linaldo Guedes: Infelizmente, esta relação é cada vez mais acentuada. A criação literária tem se tornado refém da mídia, que é quem determina o mercado. A mídia é quem forma opinião, neste mundo globalizado. Saiu na lista dos mais vendidos da Veja, foi citado no Domingão do Faustão, mencionado no Fantástico... pronto. Está feito um novo autor. Está criado um novo best-seller. Com prejuízos evidentes para a verdadeira formação literária.

Neste sentido, penso que a mídia tem se tornado irresponsável, e aqui falo de mídia no sentido de imprensa, de divulgar determinada obra (?) ou autor (?) para serem consumidos (mercado) pelo público-leitor, que é cada vez mais público e cada vez menos leitor.

Vejam o caso dessa menina, a tal da Bruna Surfistinha. Pega suas memórias eróticas, sem um pingo de literatura, joga no blogue, alguém vê aqui e resolve transformar em fenômeno da venda de livros. Daí, a mídia faz a sua irresponsável parte de divulgar, dar espaços, entrevistar no Jô, enfim. De repente, a menina vira um fenômeno de exposição na mídia. É como aquela propaganda antiga - "compre batom, compre batom". De tanto insistir, a gente acaba comprando.

No caso dos autores que vêm vendendo livros no país hoje, esta prática funciona perfeitamente. Nem falo mais de Paulo Coelho, porque este já virou vilão-mor dos grandes escritores e críticos brasileiros. Falo destes fenômenos que surgem da noite pro dia, viram campeões de vendas, enchem nosso saco aparecendo na mídia e depois somem como apareceram. Daí, aparece outro fenômeno e outro e outro e outro.

E a verdadeira criação literária, como fica? Esta, como já disse, vira refém da mídia, que é quem faz o mercado. Grandes autores para se impor, acabam fazendo livros encomendados pelas editoras, sejam obras ficcionais, seja ensaios ou até mesmo poesia. Nosso campo literário, verdade seja dita, virou um imenso painel de livros encomendados, todos com sabor de coletâneas. Nada de provocativo, porque nada está partindo da verdadeira criação literária, mas sim dos interesses do mercado.

Fazer o que? Chamar a polícia? Melhor chamar o Guarda Belo, como diria os Secos e Molhados, para evitar que os manda-chuvas da mídia continuem emporcalhando os campos literários.

 

Linaldo Guedes é jornalista, poeta e editor do Correio das Artes.

 

*

Paulo de Toledo: Como sabemos, há uma literatura-produto que possui a principal característica de todos os produtos feitos em escala industrial: é planejada para satisfazer as necessidades e os desejos do público-alvo.

Essa literatura (Paulo Coelho, por exemplo) tem uma relação com a "grande mídia" (ex.: Globo, Veja, Estadão etc.) igual a que qualquer produto industrializado tem, i.e., a literatura-produto se utiliza dessa "grande mídia" para a sua divulgação e para a conquista de novos "consumidores".

Por outro lado, temos uma literatura comprometida com a pesquisa de linguagem e com a busca de uma maior e mais profunda compreensão do mundo. Essa, que podemos chamar literatura-literatura, é praticamente ignorada pelo mercado, apenas sendo aceita quando ela é totalmente legitimada pelos "órgãos reguladores" (as Academias Literárias) e tornada "clássica". Quando isso acontece, essa literatura finalmente vira produto e transforma-se, p.ex., em  livro de vestibular (vide Machado, Rosa, Clarice etc.).

A "grande mídia" também apenas aceita a literatura-literatura quando esta é legitimada e vira produto ou quando serve para dar um "status" ao veículo, conferindo-lhe uma aura de sofisticação e bom gosto.

Porém, a verdadeira função da literatura-literatura é o confrontamento com a "grande mídia" e com o mercado. E para que ela não corra o risco de virar mais um produto, sendo assim consumida pelo mercado e pela "grande mídia", ela deve ser "difícil de engolir". Diferentemente da literatura-produto, que é produzida para ser facilmente deglutível, a literatura-literatura deve ser uma pedra no sapato e na mente do leitor, obrigando-o a descobrir como lidar com ela, a se encontrar nos seus labirintos de linguagem. Enfim, a literatura-literatura se não quiser transformar-se em mais um produto supérfluo deve fugir do óbvio, do lugar-comum e buscar sempre a produção de informação nova.

Finalmente, há um aspecto que me interessa bastante que é a utilização da "pequena mídia" - mais especificamente, as mídias eletrônicas, como sites literários, blogs etc. - não só para a divulgação da literatura-literatura como também para servir de suporte para ela. A Internet, em minha opinião, não deve ser utilizada apenas como se fosse uma folha de papel, mas sim como um suporte com características diferentes das do papel e que possibilita uma infinidade de recursos gráficos, recursos esses que podem ser aproveitados para a criação de uma literatura inventiva e poderosa. Devemos, poetas e escritores, pesquisar todas as possibilidades funcionais das mídias eletrônicas para que sejam inventadas novas e mais instigantes possibilidades de uso da linguagem verbal.

Paulo de Toledo é poeta e tradutor.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2006 ]