ZUNÁI
EM DEBATE
É
possível conciliar experimentação formal e lirismo na criação
poética?
Greta Benitez:
A chamada Poesia Moderna, didaticamente, é composta
pelo grupo que segue a tradição lírica e o que segue a modernidade
radical. No grupo da tradição lírica, estão os considerados
"subjetivos, confessionais, amorosos, emotivos", os que dão
maior importância ao Eu: Manuel Bandeira, Mário Quintana,
entre outros. Já a modernidade radical daria mais importância
ao mundo, refletindo o cenário de caos que se instala com
a dita vida moderna. Aqui se encontram os concretistas de
São Paulo. Neste grupo está o que é teoricamente considerado
como experimentação: neologismos, estrangeirismos, ruptura
de grafia, além dos efeitos visuais, onde o poema usa do espaço
gráfico para complementar o conteúdo escrito, em um casamento
com as artes visuais.
A questão é: entre tantos
efeitos inovadores, existiria lugar para a emotividade? Retratando
um mundo moderno desordenado, haveria espaço para o sentimento
íntimo, para o eu-lírico? Como o poeta processa o que vê,
ou seja, o mundo, não imagino uma poesia onde não exista o
emocional particular do autor em sua interpretação do espaço
em que vive. Assim também a investigação mais minuciosa e
profunda do mundo interior, típica do lirismo, tende a levar
ao caminho revolucionário, tanto do conteúdo como da forma,
devido ao caos interno emotivo do ser humano. Da mesma forma,
a experimentação pode ser considerada o caminho mais curto
para atingir o inconsciente, fazendo aparecer a emoção mais
pura.
O poeta catalão Joan Brossa
(1919-1998) foi um grande audacioso na arte das experiências.
Criou poemas cênicos, que eram formados por textos para teatro
que englobam pequenas cenas, ações musicais e performances,
criou poemas visuais, chegando a projetar um deles para ser
pintado sobre um trem-bala e poemas objeto, estes de alto
caráter lúdico, onde objetos sofriam interferências do artista
e ganhavam um título. Como negar o intensa carga emotiva do
"Pesadelo da Borboleta", no qual uma borboleta está pousada
sobre um molho de chaves? Não seria isso puro lirismo?
Não imagino a criação
poética sem algum tipo de experimentação, seja ou não formal.
O poeta verdadeiro é um peregrino emocional, que nunca sabe
o que achará virando uma esquina ou no próximo quilômetro.
Ele vive uma viagem íntima permanente, na qual processa o
que vê, ou seja, o mundo.
Greta Benitez
nasceu em Curitiba (PR) em 1971. Publicou o livro de poesia
Rosas Embutidas e participou de antologias.
Pós-graduada em Marketing, trabalha como redatora publicitária.
*
Marcelo Montenegro:
Dia desses topei, coincidentemente, com um texto do grande
Murilo Mendes - cujo "Mapa" está entre os maiores poemas que
já li - no qual assino embaixo: "Não creio que a preocupação
com as pesquisas de linguagem se oponha à "iluminação"; não
creio que o "fazer" se oponha ao sentir (...) Sou contra
a idolatria da linguagem; de resto sou contra qualquer idolatria".
Ademais não acredito em discurso pronto tirando chinfra de
rigor, em escrita automática e nem tampouco em poetas que
são incapazes de tirar a poesia do sério.
Marcelo Montenegro
nasceu em São Caetano do Sul (SP), em 1971. É autor do livro
de poemas Orfanato Portátil (Atrito Art Editorial,
2003). Seu blogue na Internet pode ser acessado no endereço
www.marcelomontenegro.blog.uol.com.br.
*
Claudio Willer:
poderia dar seqüência com respostas do tipo 'e daí?' Ou 'e
eu com isso?' Sugerir que se deixasse os líricos grandiloqüentes
em paz, às voltas com seu lirismo grandiloqüente. Perguntar
quem são, pedir para dar nomes aos bois, e questioná-los diretamente.
Ou então, lembrar que vocês já sabem qual é minha resposta.
Em entrevistas a ambos, Claudio Daniel e Rodrigo de Souza
Leão, já fiz declarações como estas: Quanto a meu processo
criativo, é mesmo espontâneo. A frio, do tipo "vou escrever
um poema", não dá, não sai nada. Tem que haver entusiasmo,
no sentido grego da palavra, como embriaguez ou possessão,
ou, no mínimo, inspiração. Um dos poemas que saíram publicados
naquela edição de Azougue em que figuro, Ruínas Romanas, eu
estava lá, e me vi impelido pela emoção a tirar um bloquinho
do bolso e ir escrevendo. Nem reparei, mas estava fazendo
um comentário à quantidade de autores, de grandes poetas,
que já haviam estado lá e escrito sobre essas ruínas - alguns,
eu nem conhecia então. Aliás, tudo o que fiz em poesia saiu
mais ou menos assim, de impulso. Note bem, não se trata de
adesão a "escolas" ou cartilhas, mas do seguinte: aquilo de
que André Breton fala no Primeiro Manifesto, das imagens
poéticas que batiam na janela, comigo é assim, uma frase,
no caso desse poema de que estou falando, a frase "quantos
poetas já não estiveram aqui?", daí para a frente, o texto
vai saindo espontaneamente, quase por si só, por sua conta.
Aliás, essa experiência, poesia como voz do outro, nem é patrimônio
exclusivo do surrealismo, basta ver o que, por exemplo, Derrida
escreve a respeito naquele seu ensaio sobre Edmond Jabés em
A Escritura e a Diferença.
Mas, esclarecendo as razões
da minha dúvida - se existe ou não essa antinomia - vamos
examinar as premissas dessa pergunta sobre 'lirismo' vs. 'experimentação
formal'. Um pouco de teoria literária não faz mal a ninguém.
Lembrando, lírica seria a poesia do 'eu', do sujeito; no romantismo,
a poesia que expressa emoções, sentimentos. Por decorrência,
a poesia cuja criação é movida, impulsionada por emoções,
sentimentos, pelo pathos. A propósito, não só no romantismo
literário. Na Antiguidade também. Platão acreditava em delírio
inspirado e na intervenção do daimon no ato da criação.
E em pós-romantismos. Na poética do êxtase, da iluminação,
da revelação, como em Rimbaud. Em uma boa parcela do simbolismo.
No surrealismo. Na beat, especialmente em Ginsberg, um místico.
Em García Lorca, que acreditava no daimon, e escreveu
seu Poeta em Nova York movido pelo desespero. Etc.
A idéia da poesia impessoal,
suprimindo o 'eu', tem sua origem no classicismo. Vigorou
entre os parnasianos. E foi sustentada por Eliot, Valéry e
outros formalistas. No Brasil, com especial ênfase, por João
'a emoção não cria' Cabral. Pelos concretos. Haroldo de Campos
já me expôs isso de modo didático, ao situar-se na genealogia
de Valéry, em matéria de processo de criação.
Aceitar a disjuntiva,
'experimentação formal' vs. 'lirismo', admitindo como antagônicos
esses termos, seria, portanto, equivalente a querer suprimir
boa parte do que foi escrito como poesia até hoje.
Fernando Pessoa é 'lírico'
e 'grandiloqüente', ou é 'experimental', rigoroso e 'formal'?
Ambos, é evidente. Vocês certamente estão lembrados de como
ele descreveu a gênese de O Guardador de Rebanhos:
"...acerquei-me de uma
cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé,
como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas
a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei
definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei
ter outro assim. Abri com um título - O Guardador de Rebanhos".
Esse episódio de 1914
é capital na história da literatura, pelo seguinte: embora
Pessoa já escrevesse através de heterônimos, é a partir dessa
experiência de êxtase, em que nasce Alberto Caeiro, que vêm
Álvaro de Campos, Ricardo Reis etc. Há nele, nitidamente,
um pólo da expansão - Passagem das Horas, Ode
Marítima etc - e outro da condensação - Natal,
Eros e Psiquê, por exemplo. E, assim como escreveu O
Guardador de Rebanhos de uma enfiada só, e de quebra o
enigmático Chuva Oblíqua, também precisou de duas décadas
para escrever Mensagem, das anotações de 1914 até a
publicação em 1934. Interessante: o Pessoa formalmente inovador
é aquele da inspiração. Mas seria possível separá-los, ver
nele dois poetas, um deles mais lírico e inspirado e outro
mais cerebral, trabalhando metodicamente na criação de poemas?
Claro que um não existe sem o outro.
Como é mesmo aquela frase,
já citada tantas vezes, do Piva, de que só aceita poesia experimental
do poeta que tiver vida experimental? Há outro trecho dele
que vale a pena citar, em Piazzas, quando, diz ele,
consolidava minha idéia da Poesia como instrumento de libertação
Psicológica e Total, como a mais fascinante Orgia ao alcance
do Homem, em uma paráfrase do A poesia se faz na cama como
o amor, de Breton. Ou quando afirma que Minha obra tem que
ser vista como um plano de fuga desta civilização. Declarações
como essas fazem a que a valorização da "experimentação formal"
se pareça a uma defesa do beletrismo.
A propósito, surrealistas
faziam colagens, jogos, cadáver delicado - portanto, 'experimentavam'.
E também faziam a apologia do delírio, e praticavam a escrita
automática. Breton autoriza a aproximação de automatismo surrealista
e inspiração, ao referir-se à criação de um poema como Les
États géneraux, em Signe Ascendant, fazendo
um paralelo com a bouche d'ombre, boca da sombra, de
Victor Hugo, observando que talvez esta não houvesse lhe falado
com a mesma generosidade que com o autor de Les contemplations.
E, principalmente, no Segundo Manifesto do Surrealismo,
ao dizer que a inspiração veio em socorro das supremas necessidades
de expressão em todos os tempos e lugares. A inspiração no
surrealismo é examinada sob vários ângulos por Béhar e Carassou,
em Le surréalisme, transcrevendo depoimentos, de Tzara
e Artaud a Soupault, para concluir que: Por suas obras e por
suas observações, o surrealismo nos traz testemunhos preciosos
sobre o fenômeno da inspiração.
Tenho uma enorme desconfiança
com relação à categoria 'experimentação formal'. Recende a
positivismo, imitação de pesquisa científica, justificativa
de uma espécie de burocracia poética, transposição da ideologia
burguesa do trabalho e do racionalismo mais cartesiano para
a criação poética. E não é minha, apenas, essa opinião. Octavio
Paz, no capítulo sobre inspiração em O Arco e a Lira,
já denunciou o viés ideológico da crítica à inspiração:
A inspiração tornou-se
um problema para nós. Sua existência nega nossas crenças intelectuais
mais arraigadas. (...) Se a inspiração é um fato incompatível
com nossa idéia de mundo, nada mais fácil que negar sua existência.
(...) Durante toda uma época foram denunciados os extravios
a que conduzia a crença na inspiração. Seu verdadeiro nome
era preguiça, descuido, amor pela improvisação, facilidade.
Delírio e inspiração se transformaram em sinônimos de loucura
e enfermidade.
Vários críticos e alguns
poetas incorporaram uma representação do homem e da consciência
que é histórica e ideológica: aquela exposta por Descartes,
que contrapõe o "cogito", a consciência pensante, a um mundo
inanimado e dessacralizado, a "res extensa". Sustentar poéticas,
filosofias ou psicologias da criação, centradas na reflexão
e elaboração, nada mais seria que transposição dessa visão
de mundo. E mais: da ideologia burguesa do trabalho. Ou, apontando
para uma origem mais remota, do bíblico "ganharás o pão com
o suor do teu rosto". Novamente citando Octavio Paz:
"O ato poético era trabalho
e disciplina; escrever: "lutar contra a corrente". Não é exagero
ver nessas idéias uma transferência abusiva de certas noções
da moral burguesa para o campo da estética. Um dos maiores
méritos do surrealismo foi ter denunciado a raiz moral dessa
estética de comerciantes. Na realidade, a inspiração não tem
relação alguma com noções tão mesquinhas como as de facilidade
e dificuldade, preguiça e trabalho, descuido e técnica, que
escondem a noção de prêmio e castigo: o "toma lá dá cá" com
que a burguesia, segundo Marx, substitui as antigas relações
humanas. O valor de uma obra não se mede pelo trabalho que
custou a seu autor."
Repito: O valor de uma
obra não se mede pelo trabalho que custou a seu autor.
Mas - e aqui retomando
o que já afirmei em um artigo que acabou de sair na revista
Aisthesis, e o que sairá em um ensaio sobre escrita
automática pela Perspectiva - nas experiências de inspiração
e automatismo, aquelas do âmbito do surrealismo e o restante,
há uma relação, em primeira instância, com a esfera simbólica,
com a palavra, antes de sê-lo com o inconsciente, o sobrenatural,
o daimon ou o que for. Citando passagens de escrita automática,
de Breton, Péret, Soupault, mostro que nessas passagens há
relações intertextuais - com outros autores - e intratextuais
- com a obra do próprio autor. Nas situações 'líricas' de
inspiração e de automatismo psíquico, é como se poetas estabelecessem
uma conexão direta, menos mediada, com o mundo autônomo da
linguagem, e dialogassem de modo muito íntimo, em uma situação
privilegiada, de especial proximidade, com o corpus da poesia.
No capítulo aqui citado
de O Arco e a Lira sobre inspiração, citando Heidegger,
Octavio Paz vê a emergência do outro, da sua outridade, como
aproximação ao Ser. Termina o capítulo com esta bela frase:
"A inspiração é lançar-se
para ser, mas também e sobretudo é recordar e voltar a ser.
Voltar ao Ser."
Mas, para Heidegger, o
ser reside na palavra. Apontar relações inter e intratextuais
na escrita revelada, inspirada, automática, não conflita com
a visão metafísica, a interpretação de que algo essencial
foi tocado pela inspiração. Antes a reforça.
A discussão que importa
não é sobre o processo de criação mais 'lírico' e inspirado
ou mais 'experimental' e cerebral, porém sobre o valor do
poema. Breton, a julgar pelo tom adotado no primeiro Manifesto
do Surrealismo e outros de seus textos, parecia identificar
inspiração e valor, esperando da escrita automática uma espécie
de democratização da criação, realizando o a poesia será feita
por todos, não por um de Lautréamont. Haveria um manancial,
um reservatório de imagens do inconsciente, onde todos poderiam
beber, a depreender de uma afirmação como esta, do ensaio
Le méssage automatique:
"O próprio do surrealismo
é haver proclamado a igualdade total de todos os seres humanos
normais diante da mensagem subliminar, e haver sustentado
constantemente que essa mensagem constitui um patrimônio comum,
do qual cabe a qualquer um reivindicar sua parte, e que deve,
a qualquer preço, deixar em breve de ser tido como apanágio
de alguns."
No entanto, no Segundo
Manifesto do Surrealismo, Breton já declarava ser lamentável
que os esforços mais sistemáticos e mais constantes, tais
como nunca deixou de exigir o surrealismo, não tenham sido
feitos no que se relaciona com a escrita automática, por exemplo,
e as narrativas dos sonhos. Reconheceu que textos dessa natureza
às vezes apresentavam pouco interesse, assemelhavam-se a "trechos
de bravura", e continham clichês, por negligência de seus
autores. E Aragon havia chegado a afirmar, em seu Traité
du style, que um imbecil, fazendo escrita automática,
escreveria imbecilidades.
A introdução da noção
de intertextualidade na discussão da escrita automática e
da inspiração dá razão à observação de Aragon. Para criar
algo - quer seja, insisto, pela via inspirada, automática,
ou cerebral - é preciso antes ser poeta, ter a capacidade
de dialogar com a poesia e o poético. Alucinações verbais
do automatismo têm isso em comum com aquelas induzidas em
artistas por substâncias alucinógenas: criar algo nesses estados,
ter visões realmente significativas, é necessariamente precedido
pela experiência criativa e pelo diálogo.
Enfim, não há criação
de qualidade no vazio, a partir do zero, quer seja pela via
mística, automática, inspirada, ou alucinógena, ou cerebral-experimental-formal,
ou todas essas ao mesmo tempo.
*
Adalberto Muller:
A oposição posta aqui entre lirismo e experimentação estética
me lembra a oposição famosa que Valéry discutiu, sobre poesia
e pensamento abstrato. Como ele, gostaria de encurtar a distância
que parece estar separando essas noções, lirismo e experimentação
estética. Em primeiro lugar, pergunto-me: o que se entende
aqui por "lirismo"? Um tipo de poesia que exprime emoções,
que lida com temas amorosos, ou, no mínimo, sentimentais,
tudo envolto numa atmosfera antiquada e pesadona? Por outro
lado, a expressão "experimentação estética" parece evocar
procedimentos típicos da modernidade e das vanguardas, que,
por sinal, abandonaram os velhos temas da tradição do "lirismo".
Do modo que está, então, posta essa questão, diria que as
duas noções são excludentes, num primeiro momento. Pois a
experimentação estética da alta modernidade (com Baudelaire,
Mallarmé, Eliot, Drummond, Concretismo), ao negar as formas
clássicas do lirismo, negou também sua vertente temática mais
sentimental, herdada do romantismo. O famoso mini-poema de
Oswald justamente desconstrói esse lirismo: "AMOR // humor".
Por outro lado, como ouvi certa feita de Paulo Henriques Britto,
a demanda lírica da sociedade foi passando paulatinamente
para o território da canção popular, assim como a demanda
narrativa, anteriormente coberta pelo romance, foi passando
para o cinema e a tevê. A canção popular, até bem recentemente,
nada mais era do que um lugar de expansão de velhos temas
do lirimo. Isso ocorre, por exemplo, na chamada canção "romântica",
que, nos anos 50, no Brasil, tratava basicamente da chamada
"dor-de-cotovelo". No que tange a poesia, e particularmente
a poesia brasileira, ficamos bastante marcados pelo anti-lirismo
de João Cabral. O que ele queria dizer com anti-lirismo? Uma
poesia que não trata, justamente, da dor-de-cotovelo. É preciso
lembrar que a poesia de Cabral surge no auge desse tipo de
canção, que, quase exclusivamente, trata de amores e desamores;
na época de Dolores Duran, Linda Baptista, Herivelto Martins,
Elizete Cardoso. Então, o que João Cabral propõe é uma espécie
de "limpeza", uma poesia voltada para as coisas, uma poesia
que nega o sentimento (atenção: não se pense que negue a subjetividade!)
em favor, justamente, da experimentação. Antes de Cabral,
Drummond, com todo o seu sarcasmo, já dava marretadas no lirismo
sentimental (veja-se o excelente "Necrológio dos desiludidos
do amor"). Mas felizmente tivemos também um Manoel Bandeira,
em cuja poesia o lirismo ressurge no que ele tem de primordial,
de grego, mesmo: a associação entre o canto e o mundo dos
afetos. Não nos esqueçamos que a origem do lirismo é grega,
e tem a ver com o fato de Orfeu ter feito uma lira com suas
tripas, para resgatar sua amada Eurídice do inferno. Estamos
marcados por esse gesto, ainda que seja um mito. É verdade,
porém, que, entre os jovens poetas, os temas tipicamente líricos
não estejam muito na ordem do dia. Recentemente, organizando
uma antologia cujo tema é Amor e Morte na poesia brasileira,
pude constatar que grande parte dos poetas contemporâneos
pouco escreve (pelo menos diretamente), sobre esses temas
essenciais do lirismo ocidental. Em muitos casos, por influência
de Cabral e dos Concretos, ou ainda, por infuência dos poetas
americanos (como os imagistas, os objetivistas e os da L=A=N=G=U=A=G=E).
Aos jovens poetas, interessa mais a anotação das sensações,
mais que dos sentimentos. E mesmo os sentimentos, no mundo
pós-modernos, se modificaram, sobretudo com a diversificação
sexual mais explícita, e com a sensível modificação das práticas
erótico-amorosas. De minha parte, acredito que lidar
com temas líricos como o amor (e suas adjacências), não significa
abrir mão da experimentação (ou seja, da modernidade). Meu
mentor, nesse caso, é o poeta que, a meu ver, melhor soube
conciliar os temas clássicos do lirismo com a experimentação
estética mais ousada da poesia moderna: e.e.cummings. Gosto
de escrever sobre temas que deveriam ser expressos em
elegias, odes ou epitalâmios, mas submentendo-os a uma nova
configuração verbal e gráfica. É o que tentei fazer, em boa
parte dos poemas que publiquei em Enquanto velo teu sono.
Num dos poemas desse livro, por exemplo, exploro a possibilidade
de falar do amor sem nomear expressamente o verbo amar, mas
apenas aludir a ele:
ENQUANTO
rabisco um verso
mil trilhões
de estrelas
brilham - estralam?
-
e eu
ponto perdido
no universo
entre mercúrio
e urano
arrisco um verbo
que
nos
constela.
Em suma, acredito que
os grandes temas líricos, na mesmo medida em que ganham novas
formas de expressão, vão também influenciando a formação de
novas experiências e experimentações. Pois o amor, que é a
base e o fundamento do gesto órfico, não é uma experimentação
- e o que é mais - estética?
Adalberto Müller
nasceu em Ponta Porã (MT) em 1966. Publicou Ex Officio
(Paris, 1995) e Enquanto velo teu sono (7 Letras, 2003),
além de traduções de Ponge, Celan e e.e.cummings (a sair,
pela editora UnB, coleção poetas do mundo). É professor de
literatura e cinema na UnB.
*
Antônio Mariano:
À enquete lançada
pela revista Zunái, não hesito em responder afirmativamente
à pergunta porque tenho como meta nunca dissociar esses aparentes
contrários, mas, na verdade, elementos em si complementares
(capazes de construir emoção com originalidade, portanto)
a uma arte que deve respeitar as exigências do leitor contemporâneo.
Antes de tudo, pensemos
pelo senso comum e, neste caso, nada melhor do que recorrer
a uma ferramenta corriqueira a todos: o dicionário. O verbete
constante no Houaiss registra duas acepções (3 e 5) que a
nosso ver trazem direções precisas neste sentido. Uma: "Tendência
literária que privilegia a subjetividade e as formas que deixam
transparecer o estado de alma do autor". Outra: "exaltação
do espírito, que se manifesta pela expressão viva de sentimentos;
paixão". Não podemos desprezar, é claro, a noção de musicalidade
que a origem da palavra na antiguidade clássica nos traz,
remetendo diretamente ao instrumento Lira, que acompanhava
as composições cantadas. Fechando as definições lexicais,
vemos, curiosamente, ainda nesta fonte, que o adjetivo "lírico",
usado como substantivo pode ser entendido também como sinonímia
de poeta.
Na questão formulada
pela revista, os termos são postos em situações conflituosas.
Como se fosse regra um existir independente do outro. Certo
é que a pergunta reflete, de algum modo, um pensamento geral,
embora equivocado. A experimentação formal, que teve no século
XX suas vias de radicalização ao dialogar e ser influenciada
por outras artes e mídias, esses intersignos como as artes
plásticas, publicidade, a computação gráfica, o vídeo, sonoridades
dissonantes, recursos interativos, entre outros, tem acirrado
ânimos em discussões já gastas, criado partidos, dividido
tribos. Mas não é contra-senso e sim um grande desafio
a criação poética que pretenda aliar numa atitude única as
duas linhas, dirimindo tais fronteiras.
De fato, a boa poesia
escrita atualmente tem destacado excelentes nomes que em momentos
felizes não cederam a nenhum dos extremos, quais sejam: o
de não enjoar como os dulçurosos melaços que a idéia do lirismo
sem aparas pode sugerir ou a chatice matemática e inteligível
a poucos que algumas mostras de experimentações "triunfaram"
em conquistar a antipatia de muitos conservadores. Não
há dúvida que a poesia alvo de procura de leitores experientes
no convívio literário será a que não limite o seu trânsito
a mãos únicas do exercício de meios. Se, por um lado, a arte
não pode prescindir da emoção, para não se descaracterizar
em sua origem, por outro, não deve deixar de lado a pesquisa
de novas formas de expressão que a época de seus criadores
lhe faculta. Isto é basilar. Contemporâneos como Glauco Mattoso,
Micheliny Verunschk, Paulo Henriques Britto, Claudio Daniel,
Rodrigo Garcia Lopes, Frederico Barbosa, Virna Teixeira, Sérgio
de Castro Pint e Maria Esther Maciel, para citar à sorte nomes
que afluem à memória graças a leituras recentes, acertam quando
não perdem de vista esta referência. A maior contenda, porém,
continuará a ser travada pelo poeta consigo mesmo a partir
da inquietação, do estudo perene, colocando-se em cheque constantemente,
para não repetir ou se repetir, para não ficar manjado ao
pensar com presunção que está na frente quando perdeu o bonde
da poesia.
Antônio Mariano de
Lima nasceu
em João Pessoa (PB), em 1964. É autor dos livros O
gozo insólito (1991) e Te odeio com doçura (1995).Página
na internet:
www.antoniomariano.com
*
Fernando Koprovski:
Sim, ou, tal como diria Molly no final de seu monólogo:
Sims. Experimentação e lirismo encontram um espaço de
conciliação e possível convivência mais que adequado no final
desse livro de Joyce. Mas não só nesse. Ainda que uns insistam
em ver altura apenas em Ulisses e no Finnegan's
wake, permitindo a estes livros fazer áreas de sombra
irreparáveis nos outros escritos do autor, ainda assim percebo
a força do Retrato do artista quando jovem e de Dublinenses.
Pois não seria experimental e lírica ao mesmo tempo a forma
com que a neve se apresenta, vigia e acompanha os personagens
de Os mortos? "His
soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly trough
the universe and faintly falling, like the descent of their
last end, upon all the living and all the dead". A
queda da neve acentua os momentos de maior proximidade da
narrativa de Joyce à poesia. E isso não é por acaso, como
não é casual a presença do mar no Retrato, a forma
incisivamente lírica e experimental com que as águas marinhas
preparam cuidadosamente o cenário para a revelação da beleza
e verdade de Stephen, quando este se depara com sua sea
girl: "A girl stood before him in midstream, alone and
still, gazing out to sea. She
seemed like one whom magic had changed into the likeness of
a strange and beautiful seabird. Her long slender bare legs
were delicate as a crane's and pure save where an emerald
trail of seaweed had fashioned itself as a sign upon the flesh.
Her thighs, fuller and softhued as ivory, were bared almost
to the hips, where the white fringes of her drawers were like
feathering of soft white down. Her slateblue skirts were kilted
boldly about her waist and dovetailed behind her. Her bosom
was as a bird's, soft and slight, slight and soft as the breast
of some darkplumaged dove. But her long fair hair war girlish:
and girlish, and touched with the wonder of mortal beauty,
her face". Falo
de Joyce quando perguntado sobre poesia, pois quando assim
indagado preciso falar de neve, do mar e da garota pássaro
de Stephen. Preciso falar de morte e de estranhas suavidades,
das canções nevadas e músicas oceânicas que põem à postos
o coração, força de propulsão de qualquer lírica, e que desafiam
o corpo a pensar outras maneiras de sentir a mente. E isso
tudo por quê? Sem desimportância alguma: porque sim. E porque
sims.
Fernando Koproski
é autor de Tudo que não sei sobre o amor e Pétalas,
pálpebras e pressas, entre outros livros.
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