ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ZUNÁI EM DEBATE

 

É possível conciliar experimentação formal e lirismo na criação poética?


Greta Benitez: A chamada Poesia  Moderna, didaticamente, é composta pelo grupo que segue a tradição lírica e o que segue a modernidade radical. No grupo da tradição lírica, estão os considerados "subjetivos, confessionais, amorosos, emotivos", os que dão maior importância ao Eu: Manuel Bandeira, Mário Quintana, entre outros. Já a modernidade radical daria mais importância ao mundo, refletindo o cenário de caos que se instala com a dita vida moderna. Aqui se encontram os concretistas de São Paulo. Neste grupo está o que é teoricamente considerado como experimentação: neologismos, estrangeirismos, ruptura de grafia, além dos efeitos visuais, onde o poema usa do espaço gráfico para complementar o conteúdo escrito, em um casamento com as artes visuais.

A questão é: entre tantos efeitos inovadores, existiria lugar para a emotividade? Retratando um mundo moderno desordenado, haveria espaço para o sentimento íntimo, para o eu-lírico? Como o poeta processa o que vê, ou seja, o mundo, não imagino uma poesia onde não exista o emocional particular do autor em sua interpretação do espaço em que vive. Assim também a investigação mais minuciosa e profunda do mundo interior, típica do lirismo, tende a levar ao caminho revolucionário, tanto do conteúdo como da forma, devido ao caos interno emotivo do ser humano. Da mesma forma, a experimentação pode ser considerada o caminho mais curto para atingir o inconsciente, fazendo aparecer a emoção mais pura.

O poeta catalão Joan Brossa (1919-1998) foi um grande audacioso na arte das experiências. Criou poemas cênicos, que eram formados por textos para teatro que englobam pequenas cenas, ações musicais e performances, criou poemas visuais, chegando a projetar um deles para ser pintado sobre um trem-bala e poemas objeto, estes de alto caráter lúdico, onde objetos sofriam interferências do artista e ganhavam um título. Como negar o intensa carga emotiva do "Pesadelo da Borboleta", no qual uma borboleta está pousada sobre um molho de chaves? Não seria isso puro lirismo?

Não imagino a criação poética sem algum tipo de experimentação, seja ou não formal. O poeta verdadeiro é um peregrino emocional, que nunca sabe o que achará virando uma esquina ou no próximo quilômetro. Ele vive uma viagem íntima permanente, na qual processa o que vê, ou seja, o mundo.

Greta Benitez nasceu em Curitiba (PR) em 1971. Publicou o livro de poesia Rosas Embutidas e participou de antologias. Pós-graduada em Marketing, trabalha como redatora publicitária.

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Marcelo Montenegro: Dia desses topei, coincidentemente, com um texto do grande Murilo Mendes - cujo "Mapa" está entre os maiores poemas que já li - no qual assino embaixo: "Não creio que a preocupação com as pesquisas de linguagem se oponha à "iluminação"; não creio que o "fazer" se oponha ao sentir (...) Sou contra a idolatria da linguagem; de resto sou contra qualquer idolatria". Ademais não acredito em discurso pronto tirando chinfra de rigor, em escrita automática e nem tampouco em poetas que são incapazes de tirar a poesia do sério.

Marcelo Montenegro nasceu em São Caetano do Sul (SP), em 1971. É autor do livro de poemas Orfanato Portátil (Atrito Art Editorial, 2003). Seu blogue na Internet pode ser acessado no endereço www.marcelomontenegro.blog.uol.com.br.

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Claudio Willer: poderia dar seqüência com respostas do tipo 'e daí?' Ou 'e eu com isso?' Sugerir que se deixasse os líricos grandiloqüentes em paz, às voltas com seu lirismo grandiloqüente. Perguntar quem são, pedir para dar nomes aos bois, e questioná-los diretamente. Ou então, lembrar que vocês já sabem qual é minha resposta. Em entrevistas a ambos, Claudio Daniel e Rodrigo de Souza Leão, já fiz declarações como estas: Quanto a meu processo criativo, é mesmo espontâneo. A frio, do tipo "vou escrever um poema", não dá, não sai nada. Tem que haver entusiasmo, no sentido grego da palavra, como embriaguez ou possessão, ou, no mínimo, inspiração. Um dos poemas que saíram publicados naquela edição de Azougue em que figuro, Ruínas Romanas, eu estava lá, e me vi impelido pela emoção a tirar um bloquinho do bolso e ir escrevendo. Nem reparei, mas estava fazendo um comentário à quantidade de autores, de grandes poetas, que já haviam estado lá e escrito sobre essas ruínas - alguns, eu nem conhecia então. Aliás, tudo o que fiz em poesia saiu mais ou menos assim, de impulso. Note bem, não se trata de adesão a "escolas" ou cartilhas, mas do seguinte: aquilo de que André Breton fala no Primeiro Manifesto, das imagens poéticas que batiam na janela, comigo é assim, uma frase, no caso desse poema de que estou falando, a frase "quantos poetas já não estiveram aqui?", daí para a frente, o texto vai saindo espontaneamente, quase por si só, por sua conta. Aliás, essa experiência, poesia como voz do outro, nem é patrimônio exclusivo do surrealismo, basta ver o que, por exemplo, Derrida escreve a respeito naquele seu ensaio sobre Edmond Jabés em A Escritura e a Diferença.

Mas, esclarecendo as razões da minha dúvida - se existe ou não essa antinomia - vamos examinar as premissas dessa pergunta sobre 'lirismo' vs. 'experimentação formal'. Um pouco de teoria literária não faz mal a ninguém. Lembrando, lírica seria a poesia do 'eu', do sujeito; no romantismo, a poesia que expressa emoções, sentimentos. Por decorrência, a poesia cuja criação é movida, impulsionada por emoções, sentimentos, pelo pathos. A propósito, não só no romantismo literário. Na Antiguidade também. Platão acreditava em delírio inspirado e na intervenção do daimon no ato da criação. E em pós-romantismos. Na poética do êxtase, da iluminação, da revelação, como em Rimbaud. Em uma boa parcela do simbolismo. No surrealismo. Na beat, especialmente em Ginsberg, um místico. Em García Lorca, que acreditava no daimon, e escreveu seu Poeta em Nova York movido pelo desespero. Etc.

A idéia da poesia impessoal, suprimindo o 'eu', tem sua origem no classicismo. Vigorou entre os parnasianos. E foi sustentada por Eliot, Valéry e outros formalistas. No Brasil, com especial ênfase, por João 'a emoção não cria' Cabral. Pelos concretos. Haroldo de Campos já me expôs isso de modo didático, ao situar-se na genealogia de Valéry, em matéria de processo de criação.

Aceitar a disjuntiva, 'experimentação formal' vs. 'lirismo', admitindo como antagônicos esses termos, seria, portanto, equivalente a querer suprimir boa parte do que foi escrito como poesia até hoje.

Fernando Pessoa é 'lírico' e 'grandiloqüente', ou é 'experimental', rigoroso e 'formal'? Ambos, é evidente. Vocês certamente estão lembrados de como ele descreveu a gênese de O Guardador de Rebanhos:

"...acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título - O Guardador de Rebanhos".

Esse episódio de 1914 é capital na história da literatura, pelo seguinte: embora Pessoa já escrevesse através de heterônimos, é a partir dessa experiência de êxtase, em que nasce Alberto Caeiro, que vêm Álvaro de Campos, Ricardo Reis etc. Há nele, nitidamente, um pólo da expansão - Passagem das Horas, Ode Marítima etc - e outro da condensação - Natal, Eros e Psiquê, por exemplo. E, assim como escreveu O Guardador de Rebanhos de uma enfiada só, e de quebra o enigmático Chuva Oblíqua, também precisou de duas décadas para escrever Mensagem, das anotações de 1914 até a publicação em 1934. Interessante: o Pessoa formalmente inovador é aquele da inspiração. Mas seria possível separá-los, ver nele dois poetas, um deles mais lírico e inspirado e outro mais cerebral, trabalhando metodicamente na criação de poemas? Claro que um não existe sem o outro.

Como é mesmo aquela frase, já citada tantas vezes, do Piva, de que só aceita poesia experimental do poeta que tiver vida experimental? Há outro trecho dele que vale a pena citar, em Piazzas, quando, diz ele, consolidava minha idéia da Poesia como instrumento de libertação Psicológica e Total, como a mais fascinante Orgia ao alcance do Homem, em uma paráfrase do A poesia se faz na cama como o amor, de Breton. Ou quando afirma que Minha obra tem que ser vista como um plano de fuga desta civilização. Declarações como essas fazem a que a valorização da "experimentação formal" se pareça a uma defesa do beletrismo.

A propósito, surrealistas faziam colagens, jogos, cadáver delicado - portanto, 'experimentavam'. E também faziam a apologia do delírio, e praticavam a escrita automática. Breton autoriza a aproximação de automatismo surrealista e inspiração, ao referir-se à criação de um poema como Les États géneraux, em Signe Ascendant, fazendo um paralelo com a bouche d'ombre, boca da sombra, de Victor Hugo, observando que talvez esta não houvesse lhe falado com a mesma generosidade que com o autor de Les contemplations. E, principalmente, no Segundo Manifesto do Surrealismo, ao dizer que a inspiração veio em socorro das supremas necessidades de expressão em todos os tempos e lugares. A inspiração no surrealismo é examinada sob vários ângulos por Béhar e Carassou, em Le surréalisme, transcrevendo depoimentos, de Tzara e Artaud a Soupault, para concluir que: Por suas obras e por suas observações, o surrealismo nos traz testemunhos preciosos sobre o fenômeno da inspiração.

Tenho uma enorme desconfiança com relação à categoria 'experimentação formal'. Recende a positivismo, imitação de pesquisa científica, justificativa de uma espécie de burocracia poética, transposição da ideologia burguesa do trabalho e do racionalismo mais cartesiano para a criação poética. E não é minha, apenas, essa opinião. Octavio Paz, no capítulo sobre inspiração em O Arco e a Lira, já denunciou o viés ideológico da crítica à inspiração:

A inspiração tornou-se um problema para nós. Sua existência nega nossas crenças intelectuais mais arraigadas. (...) Se a inspiração é um fato incompatível com nossa idéia de mundo, nada mais fácil que negar sua existência. (...) Durante toda uma época foram denunciados os extravios a que conduzia a crença na inspiração. Seu verdadeiro nome era preguiça, descuido, amor pela improvisação, facilidade. Delírio e inspiração se transformaram em sinônimos de loucura e enfermidade.

Vários críticos e alguns poetas incorporaram uma representação do homem e da consciência que é histórica e ideológica: aquela exposta por Descartes, que contrapõe o "cogito", a consciência pensante, a um mundo inanimado e dessacralizado, a "res extensa". Sustentar poéticas, filosofias ou psicologias da criação, centradas na reflexão e elaboração, nada mais seria que transposição dessa visão de mundo. E mais: da ideologia burguesa do trabalho. Ou, apontando para uma origem mais remota, do bíblico "ganharás o pão com o suor do teu rosto". Novamente citando Octavio Paz:

"O ato poético era trabalho e disciplina; escrever: "lutar contra a corrente". Não é exagero ver nessas idéias uma transferência abusiva de certas noções da moral burguesa para o campo da estética. Um dos maiores méritos do surrealismo foi ter denunciado a raiz moral dessa estética de comerciantes. Na realidade, a inspiração não tem relação alguma com noções tão mesquinhas como as de facilidade e dificuldade, preguiça e trabalho, descuido e técnica, que escondem a noção de prêmio e castigo: o "toma lá dá cá" com que a burguesia, segundo Marx, substitui as antigas relações humanas. O valor de uma obra não se mede pelo trabalho que custou a seu autor."

Repito: O valor de uma obra não se mede pelo trabalho que custou a seu autor.

Mas - e aqui retomando o que já afirmei em um artigo que acabou de sair na revista Aisthesis, e o que sairá em um ensaio sobre escrita automática pela Perspectiva - nas experiências de inspiração e automatismo, aquelas do âmbito do surrealismo e o restante, há uma relação, em primeira instância, com a esfera simbólica, com a palavra, antes de sê-lo com o inconsciente, o sobrenatural, o daimon ou o que for. Citando passagens de escrita automática, de Breton, Péret, Soupault, mostro que nessas passagens há relações intertextuais - com outros autores - e intratextuais - com a obra do próprio autor. Nas situações 'líricas' de inspiração e de automatismo psíquico, é como se poetas estabelecessem uma conexão direta, menos mediada, com o mundo autônomo da linguagem, e dialogassem de modo muito íntimo, em uma situação privilegiada, de especial proximidade, com o corpus da poesia.

No capítulo aqui citado de O Arco e a Lira sobre inspiração, citando Heidegger, Octavio Paz vê a emergência do outro, da sua outridade, como aproximação ao Ser. Termina o capítulo com esta bela frase:

"A inspiração é lançar-se para ser, mas também e sobretudo é recordar e voltar a ser. Voltar ao Ser."

Mas, para Heidegger, o ser reside na palavra. Apontar relações inter e intratextuais na escrita revelada, inspirada, automática, não conflita com a visão metafísica, a interpretação de que algo essencial foi tocado pela inspiração. Antes a reforça.

A discussão que importa não é sobre o processo de criação mais 'lírico' e inspirado ou mais 'experimental' e cerebral, porém sobre o valor do poema. Breton, a julgar pelo tom adotado no primeiro Manifesto do Surrealismo e outros de seus textos, parecia identificar inspiração e valor, esperando da escrita automática uma espécie de democratização da criação, realizando o a poesia será feita por todos, não por um de Lautréamont. Haveria um manancial, um reservatório de imagens do inconsciente, onde todos poderiam beber, a depreender de uma afirmação como esta, do ensaio Le méssage automatique:

"O próprio do surrealismo é haver proclamado a igualdade total de todos os seres humanos normais diante da mensagem subliminar, e haver sustentado constantemente que essa mensagem constitui um patrimônio comum, do qual cabe a qualquer um reivindicar sua parte, e que deve, a qualquer preço, deixar em breve de ser tido como apanágio de alguns."

No entanto, no Segundo Manifesto do Surrealismo, Breton já declarava ser lamentável que os esforços mais sistemáticos e mais constantes, tais como nunca deixou de exigir o surrealismo, não tenham sido feitos no que se relaciona com a escrita automática, por exemplo, e as narrativas dos sonhos. Reconheceu que textos dessa natureza às vezes apresentavam pouco interesse, assemelhavam-se a "trechos de bravura", e continham clichês, por negligência de seus autores. E Aragon havia chegado a afirmar, em seu Traité du style, que um imbecil, fazendo escrita automática, escreveria imbecilidades.

A introdução da noção de intertextualidade na discussão da escrita automática e da inspiração dá razão à observação de Aragon. Para criar algo - quer seja, insisto, pela via inspirada, automática, ou cerebral - é preciso antes ser poeta, ter a capacidade de dialogar com a poesia e o poético. Alucinações verbais do automatismo têm isso em comum com aquelas induzidas em artistas por substâncias alucinógenas: criar algo nesses estados, ter visões realmente significativas, é necessariamente precedido pela experiência criativa e pelo diálogo.

Enfim, não há criação de qualidade no vazio, a partir do zero, quer seja pela via mística, automática, inspirada, ou alucinógena, ou cerebral-experimental-formal, ou todas essas ao mesmo tempo.

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Adalberto Muller: A oposição posta aqui entre lirismo e experimentação estética me lembra a oposição famosa que Valéry discutiu, sobre poesia e pensamento abstrato. Como ele, gostaria de encurtar a distância que parece estar separando essas noções, lirismo e experimentação estética. Em primeiro lugar, pergunto-me: o que se entende aqui por "lirismo"? Um tipo de poesia que exprime emoções, que lida com temas amorosos, ou, no mínimo, sentimentais, tudo envolto numa atmosfera antiquada e pesadona? Por outro lado, a expressão "experimentação estética" parece evocar procedimentos típicos da modernidade e das vanguardas, que, por sinal, abandonaram os velhos temas da tradição do "lirismo". Do modo que está, então, posta essa questão, diria que as duas noções são excludentes, num primeiro momento. Pois a experimentação estética da alta modernidade (com Baudelaire, Mallarmé, Eliot, Drummond, Concretismo), ao negar as formas clássicas do lirismo, negou também sua vertente temática mais sentimental, herdada do romantismo. O famoso mini-poema de Oswald justamente desconstrói esse lirismo: "AMOR // humor". Por outro lado, como ouvi certa feita de Paulo Henriques Britto, a demanda lírica da sociedade foi passando paulatinamente para o território da canção popular, assim como a demanda narrativa, anteriormente coberta pelo romance, foi passando para o cinema e a tevê. A canção popular, até bem recentemente, nada mais era do que um lugar de expansão de velhos temas do lirimo. Isso ocorre, por exemplo, na chamada canção "romântica", que, nos anos 50, no Brasil, tratava basicamente da chamada "dor-de-cotovelo". No que tange a poesia, e particularmente a poesia brasileira, ficamos bastante marcados pelo anti-lirismo de João Cabral. O que ele queria dizer com anti-lirismo? Uma poesia que não trata, justamente, da dor-de-cotovelo. É preciso lembrar que a poesia de Cabral surge no auge desse tipo de canção, que, quase exclusivamente, trata de amores e desamores; na época de Dolores Duran, Linda Baptista, Herivelto Martins, Elizete Cardoso. Então, o que João Cabral propõe é uma espécie de "limpeza", uma poesia voltada para as coisas, uma poesia que nega o sentimento (atenção: não se pense que negue a subjetividade!) em favor, justamente, da experimentação. Antes de Cabral, Drummond, com todo o seu sarcasmo, já dava marretadas no lirismo sentimental (veja-se o excelente "Necrológio dos desiludidos do amor"). Mas felizmente tivemos também um Manoel Bandeira, em cuja poesia o lirismo ressurge no que ele tem de primordial, de grego, mesmo: a associação entre o canto e o mundo dos afetos. Não nos esqueçamos que a origem do lirismo é grega, e tem a ver com o fato de Orfeu ter feito uma lira com suas tripas, para resgatar sua amada Eurídice do inferno. Estamos marcados por esse gesto, ainda que seja um mito. É verdade, porém, que, entre os jovens poetas, os temas tipicamente líricos não estejam muito na ordem do dia. Recentemente, organizando uma antologia cujo tema é Amor e Morte na poesia brasileira, pude constatar que grande parte dos poetas contemporâneos pouco escreve (pelo menos diretamente), sobre esses temas essenciais do lirismo ocidental. Em muitos casos, por influência de Cabral e dos Concretos, ou ainda, por infuência dos poetas americanos (como os imagistas, os objetivistas e os da L=A=N=G=U=A=G=E). Aos jovens poetas, interessa mais a anotação das sensações, mais que dos sentimentos. E mesmo os sentimentos, no mundo pós-modernos, se modificaram, sobretudo com a diversificação sexual mais explícita, e com a sensível modificação das práticas  erótico-amorosas.  De minha parte, acredito que lidar com temas líricos como o amor (e suas adjacências), não significa abrir mão da experimentação (ou seja, da modernidade). Meu mentor, nesse caso, é o poeta que, a meu ver, melhor soube conciliar os temas clássicos do lirismo com a experimentação estética mais ousada da poesia moderna: e.e.cummings. Gosto de escrever sobre temas  que deveriam ser expressos em elegias, odes ou epitalâmios, mas submentendo-os a uma nova configuração verbal e gráfica. É o que tentei fazer, em boa parte dos poemas que publiquei em Enquanto velo teu sono. Num dos poemas desse livro, por exemplo, exploro a possibilidade de falar do amor sem nomear expressamente o verbo amar, mas apenas aludir a ele:  

ENQUANTO

rabisco um verso
mil trilhões de estrelas
brilham - estralam? -
e eu
ponto perdido no universo
entre mercúrio e urano
arrisco um verbo
que
          nos
                    constela.

Em suma, acredito que os grandes temas líricos, na mesmo medida em que ganham novas formas de expressão, vão também influenciando a formação de novas experiências e experimentações. Pois o amor, que é a base e o fundamento do gesto órfico, não é uma experimentação - e o que é mais -  estética?

Adalberto Müller nasceu em Ponta Porã (MT) em 1966. Publicou Ex Officio (Paris, 1995) e Enquanto velo teu sono (7 Letras, 2003), além de traduções de Ponge, Celan e e.e.cummings (a sair, pela editora UnB, coleção poetas do mundo). É professor de literatura e cinema na UnB.

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Antônio Mariano: À enquete lançada pela revista Zunái, não hesito em responder afirmativamente à pergunta porque tenho como meta nunca dissociar esses aparentes contrários, mas, na verdade, elementos em si complementares (capazes de construir emoção com originalidade, portanto) a uma arte que deve respeitar as exigências do leitor contemporâneo.

Antes de tudo, pensemos pelo senso comum e, neste caso, nada melhor do que recorrer a uma ferramenta corriqueira a todos: o dicionário. O verbete constante no Houaiss registra duas acepções (3 e 5) que a nosso ver trazem direções precisas neste sentido. Uma: "Tendência literária que privilegia a subjetividade e as formas que deixam transparecer o estado de alma do autor". Outra: "exaltação do espírito, que se manifesta pela expressão viva de sentimentos; paixão". Não podemos desprezar, é claro, a noção de musicalidade que a origem da palavra na antiguidade clássica nos traz, remetendo diretamente ao instrumento Lira, que acompanhava as composições cantadas. Fechando as definições lexicais, vemos, curiosamente, ainda nesta fonte, que o adjetivo "lírico", usado como substantivo pode ser entendido também como sinonímia de poeta.

Na questão formulada pela revista, os termos são postos em situações conflituosas. Como se fosse regra um existir independente do outro. Certo é que a pergunta reflete, de algum modo, um pensamento geral, embora equivocado. A experimentação formal, que teve no século XX suas vias de radicalização ao dialogar e ser influenciada por outras artes e mídias, esses intersignos como as artes plásticas, publicidade, a computação gráfica, o vídeo, sonoridades dissonantes, recursos interativos, entre outros, tem acirrado ânimos em discussões já gastas, criado partidos, dividido tribos.  Mas não é contra-senso e sim um grande desafio a criação poética que pretenda aliar numa atitude única as duas linhas, dirimindo tais fronteiras.

De fato, a boa poesia escrita atualmente tem destacado excelentes nomes que em momentos felizes não cederam a nenhum dos extremos, quais sejam: o de não enjoar como os dulçurosos melaços que a idéia do lirismo sem aparas pode sugerir ou a chatice matemática e inteligível a poucos que algumas mostras de experimentações "triunfaram" em conquistar a antipatia de muitos conservadores.  Não há dúvida que a poesia alvo de procura de leitores experientes no convívio literário será a que não limite o seu trânsito a mãos únicas do exercício de meios. Se, por um lado, a arte não pode prescindir da emoção, para não se descaracterizar em sua origem, por outro, não deve deixar de lado a pesquisa de novas formas de expressão que a época de seus criadores lhe faculta. Isto é basilar. Contemporâneos como Glauco Mattoso, Micheliny Verunschk, Paulo Henriques Britto, Claudio Daniel, Rodrigo Garcia Lopes, Frederico Barbosa, Virna Teixeira, Sérgio de Castro Pint e Maria Esther Maciel, para citar à sorte nomes que afluem à memória graças a leituras recentes, acertam quando não perdem de vista esta referência. A maior contenda, porém, continuará a ser travada pelo poeta consigo mesmo a partir da inquietação, do estudo perene, colocando-se em cheque constantemente, para não repetir ou se repetir, para não ficar manjado ao pensar com presunção que está na frente quando perdeu o bonde da poesia.

Antônio Mariano de Lima nasceu em João Pessoa (PB), em 1964. É autor dos livros O gozo insólito (1991) e Te odeio com doçura (1995).Página na internet: www.antoniomariano.com

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Fernando Koprovski: Sim, ou, tal como diria Molly no final de seu monólogo: Sims. Experimentação e lirismo encontram um espaço de conciliação e possível convivência mais que adequado no final desse livro de Joyce. Mas não só nesse. Ainda que uns insistam em ver altura apenas em Ulisses e no Finnegan's wake, permitindo a estes livros fazer áreas de sombra irreparáveis nos outros escritos do autor, ainda assim percebo a força do Retrato do artista quando jovem e de Dublinenses. Pois não seria experimental e lírica ao mesmo tempo a forma com que a neve se apresenta, vigia e acompanha os personagens de Os mortos? "His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly trough the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and all the dead". A queda da neve acentua os momentos de maior proximidade da narrativa de Joyce à poesia. E isso não é por acaso, como não é casual a presença do mar no Retrato, a forma incisivamente lírica e experimental com que as águas marinhas preparam cuidadosamente o cenário para a revelação da beleza e verdade de Stephen, quando este se depara com sua sea girl: "A girl stood before him in midstream, alone and still, gazing out to sea. She seemed like one whom magic had changed into the likeness of a strange and beautiful seabird. Her long slender bare legs were delicate as a crane's and pure save where an emerald trail of seaweed had fashioned itself as a sign upon the flesh. Her thighs, fuller and softhued as ivory, were bared almost to the hips, where the white fringes of her drawers were like feathering of soft white down. Her slateblue skirts were kilted boldly about her waist and dovetailed behind her. Her bosom was as a bird's, soft and slight, slight and soft as the breast of some darkplumaged dove. But her long fair hair war girlish: and girlish, and touched with the wonder of mortal beauty, her face". Falo de Joyce quando perguntado sobre poesia, pois quando assim indagado preciso falar de neve, do mar e da garota pássaro de Stephen. Preciso falar de morte e de estranhas suavidades, das canções nevadas e músicas oceânicas que põem à postos o coração, força de propulsão de qualquer lírica, e que desafiam o corpo a pensar outras maneiras de sentir a mente. E isso tudo por quê? Sem desimportância alguma: porque sim. E porque sims.

Fernando Koproski é autor de Tudo que não sei sobre o amor e Pétalas, pálpebras e pressas, entre outros livros.

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