ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ZUNÁI EM DEBATE

 

A crítica literária reflete a criação poética contemporânea?

 

 

 

Leda Tenório da Motta: a resposta é mais: não! Temos surtos de mapeamento, listagens, classificações empenhadas. Recenseamentos sazonais avulsos e como que piedosos. A uma dessas intervenções devemos — de resto — a descoberta de Ana Cristina César. Mas isso não faz uma cultura da coisa. A exceção é aquela prestimosa coleção de livros da Duas Cidades — a Claro Enigma — , que, no final dos anos de 1980, não apenas captou uma esparsa, inédita e pulsante produção brasileira, mas a estudou em orelhas e prefácios assinados, alentados e sofisticados, dotando gente praticamente desconhecida — Age de Carvalho, Paulo Henriques Brito, Rubens Rodrigues Torres Filho, Sebastião Uchoa Leite, entre outros — do melhor e mais belo aparato crítico. Sob a direção de um então também desconhecido — Augusto Massi —, que depois se voltaria para outras artes, essa pequena biblioteca de novos foi um gesto de ópera, no melhor sentido da expressão.

 

De lá para cá, essa rara oficina de poetas que era a Duas Cidades refluiu, enquanto que empreendimento editorial mais poderoso surgia, cujo barato seria a prosa. Desde então — supostamente —, nos estão sendo revelados os grandes romancistas brasileiros. Toda uma leva midiática de papa-prêmios. Isso, sim, faz cultura.

 

E isso se explica. Em seu tempo, a Duas Cidades já era uma frente de resistência, tanto assim que dava guarida a uma escola de desviantes, afugentados de São Paulo para o Jornal do Brasil, os concretistas. Entre nós, lutamos, desde sempre, contra certo preconceito estético. Temos aqui uma tradição de críticos da boa consciência para os quais a literatura deve, de algum modo, equacionar o problema brasileiro. E ocorre que essa tradição nos remete muito mais à prosa que à poesia. Hegemônica, até porque paulista, essa é uma linha de ataque que — sem assumi-lo, sinceramente, como Platão, no livro III de A República, — expulsou os poetas da cidade. Não se trata só dos concretos. De fato, quem conhece alguma master piece da sociologia uspiana, dessas de que nos dizem que são interpretações do Brasil, envolvendo a poesia? Que poeta foi aqui incumbido por que crítico de nos representar? E como uma cultura dessas não haveria de deixar marcas?! Ei-las, de resto, que se reimprimem em todos esses discursos que nos chegam, agora, dos críticos das assim chamadas “literaturas de testemunho”, igualmente curvados sobre narrativas, na versão memorialística, e igualmente afeitos a Adorno, neste preciso caso, àquela tolice adorniana sobre a poesia depois do holocausto.

 

Para piorar o quadro, acrescente-se que uma literatura não se entende só a partir de si mesma, mas se entende, muito, também, a partir de suas referências, principalmente ocultas, que caberia, justamente, à crítica localizar, ou postular. E essa é uma tarefa que pede conhecimento de causa, repertório, apetite, mesmo. Foi assim que Paul Valéry acabou enxergando François Villon em Verlaine, estendendo um fio, uma ponte lírica, entre a Idade Média francesa e a Belle Époque. Ora, não podemos nos gabar de ter muitos críticos, por aqui, preparados para esse tipo de operação de fôlego. Até porque, na universidade, onde se moldam os jornalistas que vão assumir os segundos cadernos e os postos de publishers nas editoras, cultiva-se, hoje, muito mais, a Filosofia — os Zizec, os Lipovesty, os Maffesoli — do que as Letras.

 

É fato também que, depois que Adorno decretou ser o presente catastrófico, não nos sentimos muito à vontade para afrontá-lo, como fez Verlaine, ao mapear, no calor da hora, os que escreviam a sua volta, os malditos, ou os críticos de Tel Quel, ao instalar Francis Ponge, em plena vida e em pleno ostracismo, no cânone da poesia francesa do século XX. Eis talvez porque, quando certo time de críticos-poetas e críticos-tradutores refinadíssimos que aqui temos entra em campo, o mais perto do presente a que chegamos é Elisabeth Bishop (Paulo Henriques Brito), Auden (Nelson Ascher) e Borges (Josely Vianna Baptista)... Não que isso não seja maravilhoso! E não que, novamente, aqui, não haja a exceção que confirma a regra: o trabalho de Alcir Pécora, que sai de um outro nicho crítico refinado, a Escola da Unicamp, para encarar Hilda Hilst e Roberto Piva.

 

Admitindo — para terminar — que a poesia  mudou, desde que os modernos a viram como uma espécie de enclave no interior do Verbo, e os muito modernos, como não mais apenas verbal, onde estaria ela hoje, que a iconicidade mais deslinear lhe é completamente possível? Teria ido parar  — híbrida, nômade e imersiva — para usarmos palavras da moda — no computador, como nos garantem os ciberufanistas, assumindo a fetichização da máquina que foi própria de todos os modernismos? E se já não sabemos o que ela é e onde ela mais está agora... como identificá-la para recolhê-la?

 

Há uma saída no horizonte: a cibercrítica. Pois se não é nada certo que a e-poetry se sustente sem o diferencial do poeta, seja em que sítio for, é igualmente verdade que editores-poetas estão, hoje, na internet, associando a perfeita liberdade de pensar e de fazer da rede à tradição moderna das revistas literárias.

 

Leda Tenório da Motta é professora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, crítica literária e tradutora. Escreveu, entre outros, Sobre a crítica literária  brasileira no último meio século (Imago, 2002). Prepara atualmente o volume O jovem crítico loiro. Sobre a crítica inclusive cultural.

 

 

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Aurora Bernardini: vou dividir minha resposta para abordar primeiro a criação literária enquanto narrativa. Para a crítica literária  da narrativa (cuidado: há crítica psicológica, sociológica etc., não literárias) ou seja, aquela que se preocupa com a artisticidade da obra, há vários métodos a serem usados, alguns mais adequados que outros, dependendo do gênero em questão ( conto, novela, romance, peça, crônica, ensaio...). Nenhum há, porém,  que vise “revelar o pensamento do artista” como pateticamente diz  agora Tzvetan Todorov (Difel -p.90) em Literatura em perigo, pelo simples fato que uma obra artística não é feita de intenções: os pensamentos que o autor tem na vida sofrerão transformações tais que, na obra, poderão se tornar o seu oposto.De qualquer maneira, eles serão tais como a obra (sua organização, sua economia, sua ambigüidade) os exige.

 

Para que a obra literária  seja artística, o conteúdo (da obra, não do pensamento ou da intenção do artista) deve ser expresso pela linguagem numa construção estilizada  feita de configurações e relações solidárias que tendam a uma totalidade (veja-se J. Derrida A escritura e a diferença, Perspectiva, p.15) e — isso é fundamental — em que aquela linguagem e aquele conteúdo se fundam e se intensifiquem.

 

Na poesia, ou seja, na criação poética propriamente dita, o grau de fusão entre linguagem e conteúdo é o mais elevado, ou seja: aquele conteúdo é tal pelo fato de ter sido expresso naquela linguagem, e vice-versa. (Não transformar poesia em linguagem e  conteúdo: eles são indissolúveis. A tal ponto a mudança da linguagem implica a  mudança do conteúdo que o atento Wittgenstein já alertou:  “Philosophie dürfte man eigentlich nur dichten”. Realmente, a filosofia deveria ser  somente ‘poetada’).

 

A crítica literária dá conta, hoje, de avaliar uma criação poética contemporânea? A avaliação de uma pedra preciosa implica a verificação do preenchimento ao menos de certas condições exigidas por critérios tradicionalmente estabelecidos de preciosidade: luz, pureza, lapidação etc. Na avaliação de uma criação artística há critérios estáveis somados a critérios que necessariamente mudam conforme os tempos, logo a boa crítica literária dará, sim, conta da avaliação de uma criação artística, de qualquer época, mas não em qualquer época. A resposta abaixo explica o porquê.

 

A crítica literária  reflete a criação poética contemporânea?

 

Em parte. Só se os critérios de fatura de dada obra contemporânea  estiverem dentro do alcance dos critérios de avaliação dos valores imanentes, estáveis (Hartmann, Ingarden, Argan, Ostrower, Candido...) e dos que mudaram na crítica, até então (especialmente os concernentes a função da obra).

 

Se os artistas são “as antenas da raça” (Pound), o máximo que pode fazer a crítica é acompanhá-los e validá-los ou não. (Às vezes, descobri-los ou redescobri-los). Ela pode se mover mais lentamente, mas ela chega lá. Por isso, cuidado: todos os criadores podem chegar à sua “expressão” (Bakhtin), mas apenas poucos entre os que chegarem à sua expressão poderão  vir a ser considerados verdadeiros artistas.

 

Aurora F. Bernardini é professora de pós-graduação em Literatura Russa e Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP).

 

 

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Carlos Felipe Moisés: se por “refletir” entendermos ecoar, repercutir, desdobrar, eu sem hesitar diria que reflete, sim, não tem como escapar disso. Tirante o caso do crítico megalômano, excessivamente cioso de luz própria (portanto, o mau crítico ou o pseudocrítico), a crítica vai sempre atrás, é atividade subsidiária, dependente; sua função é de caixa de ressonância. Mas não é uma atividade meramente passiva, o que valeria dizer irrelevante ou dispensável. A boa crítica desmonta, analisa, interpreta, permitindo que venha à tona, e se faça compreensível, aquilo que na criação poética está apenas latente.

 

A crítica torna a poesia mais acessível aos leitores, em casos raros, até ao próprio poeta. Refletir, a crítica reflete, sem dúvida, mas não é um reflexo mecânico, é mais o desvelamento da infraimagem contida na criação poética. Aberração seria o inverso, a poesia como reflexo da crítica, ou tomada como atividade ancilar, subordinada à segunda, inversão menos rara do que se poderia imaginar, cultivada pelo crítico megalômano e pelo poeta sequioso de aprovação e prestígio. O resultado desse intento, quando bem (quer dizer mal) sucedido é a asséptica glorificação, para o poeta e para o crítico, de uma dissertação acadêmica, dessas em que poesia e crítica são reduzidas à aurea mediocritas estilo ABNT e outros protocolos similares. Fiquemos então só com a crítica que reflete, não com a refletida.

 

Crítica não é só o discurso paralelo, representado por resenhas, artigos, prefácios, posfácios e até por (boas) dissertações e monografias universitárias, essas que não se deixam seduzir pelo pernosticismo palavroso, quase sempre esvaziado de conteúdo ou de verdadeiro espírito crítico. É também a atitude embutida na própria criação poética. A modernidade, em poesia, a partir de Baudelaire, gira em torno da figura do poeta-crítico, mal compreendido pela tradição, que se sente mais à vontade ao lidar com o poeta acrítico, e não raro fetichizado pela antitradição, que tende a hipervalorizar a crítica em si, ou, o que é pior, a teoria. Muito do que passa por crítica de poesia, da segunda metade do século XX em diante, não é senão a defesa burocrática de alguma teoria – a que conte com maior número de adeptos, em dado momento. Para essa vertente, a poesia na verdade é só um mal necessário. Se todos estivéssemos distraídos, a falsa crítica praticada a partir da verborréia teorética já teria eliminado de suas cogitações a poesia propriamente dita: discurso por discurso, ficaria apenas com a vitoriosa tautologia do paralelo. A boa crítica é sempre o enfrentamento do desafio, da dúvida, da incerteza, promovidos pela boa poesia, e não teme errar: de tentativa em tentativa, quem sabe é possível chegar-se a alguma coisa. Já o fetiche da fundamentação teórica treme de medo diante do desafio, não quer saber de dúvidas e incertezas e por isso aposta na falácia de acertar sempre.

 

Se optarmos pelo entendimento sugerido acima, a resposta será de fato muito simples: a crítica reflete, sim, a poesia contemporânea, não tem como deixar de fazê-lo, a não ser que prefira ser mais (ou menos) do que crítica. Mas se a pergunta implicar juízos de valor (a crítica está à altura, ou seja, está apta a compreender e explicar a poesia contemporânea?), aí a resposta se multiplicará em várias direções, tantas quantos são os rumos da diversidade que caracteriza este nosso tempo, e só dirá respeito à boa poesia (a má dispensa a crítica). Mas qual é a boa poesia contemporânea? Alguém sabe? Ninguém seria ingênuo a ponto de arriscar, mas todos sabemos: boa poesia é aquela que cada um de nós considere como tal, quaisquer que sejam os argumentos e os interesses de circunstância. Logo, não há mais como saber, com segurança, qual é a boa poesia, porque afinal quase todos abrimos mão de fingir que sabíamos.

 

Até cerca de meio século atrás, os críticos se referiam aos poetas como “o Sr. Carlos Drummond de Andrade” ou “a Sra. Cecília Meireles”, e isso não era privilégio dos grandes nomes: era esse, invariavelmente, o tratamento concedido, também, a todo e qualquer jovem estreante. Todos eram senhoras e senhores. Questão de polidez? Normas de boa conduta e sociabilidade? Formalidade? Força do hábito? Sem dúvida, e por isso foi caindo em desuso, até ser substituído pelo descontraído e democrático “vc”, universalmente distribuído. Mas não só. É possível enxergar na antiga forma de tratamento o indício de uma estrita concepção estético-literária, baseada em isenção e distanciamento, objetividade e equanimidade, em que todos pareciam ou simulavam acreditar. Agraciado o poeta em causa, estreante ou consagrado, com um respeitoso e respeitável “senhor”, subentendia-se que os juízos a partir daí exarados pelo crítico não tinham nada de pessoal, nada do que então rolava era questão de gosto ou de idiossincrasia. Mas “senhor” e “senhora” eram apenas indício, símbolo de um sonho, e não a representação fiel de uma realidade efetiva.

 

Isenção, objetividade etc., ninguém o ignorava, jamais existiram, mas isso não impedia, ao contrário, só estimulava o esforço no encalço de sua consecução, embora todos estivessem cientes de que nunca chegariam lá. A diferença, neste último meio século, é que a maioria desistiu, vindo a optar pelo relativismo generalizado (ninguém sabe o que é boa poesia, ipso facto ou não há boa poesia ou toda poesia é boa), mero disfarce para a defesa de um sectarismo qualquer. Por isso o quadro geral desse período costuma ser desenhado como entrechoque de correntes divergentes (Geração de 45, Concretismo, Praxis, Neoconcretismo etc.), o que não chega a ser falso, mas não é inteiramente verdadeiro. Essa visão unilateral colabora para obscurecer o fato de que houve aí, também, uma acentuada convergência: o denominador comum a todas essas correntes é a valorização do poeta-crítico, vale dizer o poeta malicioso, construtor consciente e premeditado do seu artefato, hábil manipulador dos instrumentos necessários à sua realização.

 

Por isso são em tão grande número, nesse período — quer legislem e advoguem em causa própria ou não —, os poetas doublés de críticos e teóricos (Péricles Eugênio da Silva Ramos, João Cabral, Mário Faustino, Haroldo de Campos, Ferreira Gullar, Mário Chamie, José Paulo Paes, Gilberto Mendonça Teles, Affonso Romano de Sant’Anna e tantos outros), na esteira dos desbravadores do início do século passado e até do anterior (Baudelaire, Poe, T.S. Eliot, Fernando Pessoa, Mário de Andrade, Ezra Pound, W.H. Auden, Valéry e muitos mais). Simplifiquemos: a crítica ou o espírito crítico migrou para o interior da própria poesia, e aí já não seria mais o caso de “refletir”, mas de fazer parte integrante, inalienável, da criação poética. Alguma boa alma deduziria que a “solução” é promover a ressurreição do “senhor” e da “senhora”, como norma geral? Talvez ficasse até engraçado e muitos teriam, quem sabe, a sensação de que nos tornamos, todos, pessoas extremamente polidas. O fato é que não há nada a “solucionar”. O que cabe, isto sim, é reconhecer que a mudança foi para melhor: a nossa poesia dos últimos 15, 20 anos é — a exemplo do herói – sem nenhum caráter.

 

Ao contrário do que possa parecer a ouvidos mais apressados, “sem nenhum caráter” não quer dizer “mau caráter”, mas sim o herói, ou a poesia, que reúne si, em saudável promiscuidade, todos ou o maior número possível de caracteres, não havendo mais razão para que o leitor ou o crítico ou o próprio poeta se sinta constrangido a eleger este ou aquele como o único legítimo. A crítica que reflete (nem toda é capaz disso) é a que dá conta dessa auspiciosa heterogeneidade, e continua a insistir no seu propósito de desmontar, analisar e interpretar, no encalço de sentidos – ainda bem! – sempre provisórios. Com isso, a boa crítica pode dar livre curso a seu propósito secundário, qual seja instigar os poetas a desenvolver e aperfeiçoar, permanentemente, os seus dons.

 

Meus exemplos prediletos, além dos pioneiros já mencionados (não é uma lista seletiva, muito menos hierárquica, são só alguns nomes que me ocorrem, neste improviso), poderiam ser Sebastião Uchoa Leite, Antônio Cícero, Rubens Rodrigues Torres Filho, Márcio-André, Evando Nascimento, Contador Borges, Ricardo Aleixo, Manoel Ricardo de Lima e muitos outros – alguns mais jovens, outros nem tanto –, que cumprem, hoje mais do que nunca, com o papel do poeta-crítico ou do poeta-filósofo, indissociável da criação de alto nível. A crítica em sentido estrito, essa que reflete ou não, embora seu destino seja pender mais para a teoria do que para a crítica, não deixa de ser bem-vinda, já que pode também funcionar, para leitores e poetas, como alerta e estímulo positivo.

 

Carlos Felipe Moisés é poeta (Noite nula, 2008), crítico literário (Poesia & utopia, 2007). Tradutor (O poder do mito, 1990) e autor de livros infanto-juvenis (Conversa com Fernando Pessoa, 2007). É ex-professor de literatura da USP, da Universidade da Califórnia, Berkeley, e outras instituições de ensino.

 

 

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Claudio Willer: a crítica literária alguma vez 'refletiu', deu conta adequadamente, da produção poética de seu tempo? Lembrando: crítica literária, tal como a conhecemos, começa com Sainte-Beuve e seus lundis. Apesar de Baudelaire relacionar-se com  Sainte-Beuve e até dedicar-lhe um poema, o crítico jamais lhe deu atenção. O máximo que disse de As Flores do Mal, e isso em 1862, foi que se tratava de um 'Kamtchatka romântico' e um 'quiosque singular'. Quem disse algo que prestasse sobre Baudelaire foram poetas: em 1865, Verlaine e Mallarmé, seis anos depois, Rimbaud. Os críticos-poetas, os Ezra Pound, T. S. Eliot, Breton, esses sim, enxergaram o que, literariamente, se passava a seu redor. Um livro da qualidade de O Castelo de Axel, de Edmund Wilson, leva a concluir que sim, que críticos conseguem entender poesia - mas a posteriori, retrospectivamente, e caminhando nas pegadas dos poetas (a leitura de Wilson do simbolismo deve, de modo evidente, àquela de Eliot). Simbolismo brasileiro: quando foi que a crítica se deu conta? Jamais, até hoje, salvo exceções. Sim, as observações precisas de Augusto de Campos sobre Kilkerry - mas não se trata de um crítico no sentido estrito, porém de um poeta-crítico - agora, imagine se Kilkerry fosse francês, ou se André Breton fosse brasileiro: em qualquer um desses casos, teria sido posto por Breton no mesmo patamar em que o surrealista situou Saint-Pol-Roux e Charles Cros, ou ainda acima (elas por elas, desconfio que Kilkerry é melhor que Saint-Pol-Roux e Charles Cros). Exceções? Sim, claro que sim - Antonio Candido sobre Cabral, com certeza - Leo Gilson Ribeiro sobre Hilda Hilst - mas, se formos reexaminar o conjunto da produção de crítica sobre poesia, quanta irrelevância e quanta omissão não vai aparecer. Isso, lembrando mais uma vez que Paranóia de Roberto Piva, publicado em 1963, começou a ter uma fortuna crítica decente a partir de 2000. É evidente que isso justifica toda e qualquer manfiestação de desconfiaça com relação á crítica e sua leitura da criação poética contemporânea.

 

Claudio Willer, poeta, tradutor e ensaísta, publicou, entre outros títulos, Estranhas experiências (2004), antologia de sua obra poética.

 

 

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Dirceu Villa: Rodrigo de Souza Leão entrou em contato comigo, em nome da revista virtual Zunái, que ele levava junto com Claudio Daniel, pedindo-me a contribuição com a seção de debates que estamparia as respostas de poetas à questão: "A crítica literária reflete a criação poética contemporânea?”. Escrevo isso porque agora proponho essa resposta como uma homenagem ao Rodrigo; modesta, mas que pretende retomar brevemente aspectos do nosso também breve, mas importante contato.

 

Rodrigo foi o primeiro a me entrevistar, quando eu tinha uns 25, 26 anos & apenas um livro artesanal publicado. Discordávamos em muitas coisas, mas o magnífico nele é que isso jamais foi uma barreira: tinha verdadeira curiosidade pelas idéias dos outros, mesmo quando eram diferentes das suas, & isso é dizer muito no Brasil, sobretudo no meio de literatura. Creio que o escopo das entrevistas que fez com vários escritores muito novos & outros com muitas obras já publicadas é um dos mais interessantes deste período, & eu mesmo conheci outros poetas através desse empenho que Rodrigo tinha em saber como pensavam os artistas da palavra à sua volta.

 

Trabalhou com determinação em tornar a literatura brasileira contemporânea mais próxima de seus leitores, & estabeleceu pontes entre poéticas às vezes opostas. Então esta resposta que agora segue, franca & claramente recessiva em relação ao assunto, é também uma homenagem a Rodrigo de Souza Leão, com o reconhecimento deste colega de arte a quem ele ajudou & buscou compreender.

 

"A crítica literária reflete a criação poética contemporânea?” Talvez a resposta mais exata seja simplesmente “não”.

 

Mas para sermos perfeitamente justos, teríamos de detalhar a coisa. E poderíamos começar por uma outra pergunta: “a crítica literária já refletiu alguma vez a poesia que se escrevia em qualquer época?”

 

Penso que não, igualmente.

 

Entender por que a crítica não o faz seja um modo de começar a resolver a questão. A crítica tem  problemas que são os de sempre, os seguintes:

 

a) falta de distanciamento das obras para uma perspectiva adequada (isso serve apenas para críticos de medianos para baixo, que críticos bons mesmo vêem obra de talento sem precisar se distanciar);

 

b) em geral, atraso da mentalidade crítica em relação à poética: no que refere à percepção das formas de representação, há em geral o descompasso (mesma ressalva que a de cima, evidentemente);

 

c) atração pela fama dos autores, não pela importância da obra, coisa que se percebe pondo em perspectiva como a crítica se junta sobre autores que desaparecem do radar em cinco anos, & deixa de lado autores que permanecerão, para que apenas o futuro os leia.

 

E alguns problemas urgentes,que são os específicos de agora:

 

a) faltam-lhe critérios objetivos para ler a produção contemporânea (e parte dessa crítica sequer acha que precisa disso);

 

b) segue o diagrama das publicações, sem prospecção própria, e da seguinte maneira: 1) os autores mais velhos que conseguirem, porque não precisam correr o risco de apostar suas fichas; 2) apenas os autores publicados por editoras grandes, umas 3 no Brasil; c) autores que não param de se autopromover.

 

c) não pensa em qualidade, porque lhe falta o hábito de comparar & compreender os mecanismos próprios da poesia.

 

Esses seis problemas, divididos nas categorias de antigos e atuais são, me parece, os principais da crítica.

 

A crítica literária, como a chamamos, se espalha por meios como a universidade, livros, revistas mais ou menos especializadas, rodapés de jornais (antes era uma página inteira, pra que a gente se lembre), às vezes TV e rádio &, também, ultimamente, a internet.

 

De todas as formas de comunicação, a internet é a única que mostra uma vitalidade crescente e diversificada, fora alguns professores interessados o suficiente nas universidades & um ou outro livro de crítica que não nos ofende a inteligência.

 

O significado disso é que a internet AINDA é um meio livre de expressão, onde os autores circulam por suas idéias & não por pressões editoriais, não por grupos de escritores, não por lobby junto de emissoras, não pela inércia universitária, de jornais ou revistas.

 

(Chamo “inércia”, nesse caso, a um hábito mental mole, sem energia ou interesse, que permanece por pura preguiça circunstancial).

 

Evidentemente, há muito lixo na internet, como em qualquer outro lugar. Mas o fato de que é um meio livre de pressões financeiras & políticas — & que o que fomenta suas páginas seja o puro & simples interesse num assunto — trouxe a revistas & blogs um dinamismo & uma qualidade pouco vistos em quaisquer outros meios de difusão.

É minha opinião, também, que em geral os melhores críticos — de hoje & de ontem — ficam na sombra de críticos muito ordinários, mas que têm fé pública porque, enfim, falam estritamente as bobagens que as pessoas querem ouvir, ou que são mais palatáveis ao politicamente correto, embora sejam risíveis a quem entende do assunto.

 

Esses críticos ordinários são os que falam apenas de visão de mundo numa obra; os que promovem nomes de escritores de médios a ruins porque não saberiam diferenciar melhor; os que impõem seu gosto ao invés de enfrentar obras vigorosas de que espécie forem; críticos que têm uma agenda de política de grupo, universitária ou editorial.

 

Os grandes críticos são aqueles cuja curiosidade é onívora; que percebem que sentido & forma são uma coisa só, especialmente em poesia; que apreciam grandes autores de que lugar, idade, cor, religião, sexo, ideologia, língua e período histórico forem, porque apreciam a arte; leram suficientemente em várias línguas para merecer o nome de crítico (ou “aquele que sabe discernir”); não se deixam levar por pressão, qualquer que seja, & não dão a mínima para a fama (ou falta de) de seus autores.

 

As diferenças são facílimas de aplicar, se se quiser ter um who’s who. Você pode mesmo fazer disso um jogo divertido com seus amigos.

 

A modo de conclusão & resposta, agora completa

 

Voltamos, depois disso, à pergunta inicial: "a crítica literária reflete a criação poética contemporânea"?

 

Não, mas isso não é novo.

E há problemas peculiares à nossa época, que os grandes críticos de hoje terão de enfrentar algum dia.

 

Dirceu Villa (1975), poeta, tradutor & ensaísta. Publicou MCMXCVIII (1998), Descort (2003) e Icterofagia (2008).

 

 

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Victor da Rosa: é claro que esta não é uma pergunta nada fácil de responder. Antes, é uma questão que pode ser apreendida de modo muito parcial, vago mesmo. Primeiro porque é impossível definir o que é uma poética contemporânea; segundo porque não é fácil saber onde está a crítica literária; e, por fim, porque as conotações do verbo “refletir”, ele mesmo ambiguo, sugerem muitas armadilhas. Vou me deter apenas nestas armadilhas.

 

A metáfora do espelho deve tributo a uma idéia de literatura enquanto representação. Refletir, neste sentido, pode ser também fixar uma imagem. Para deslocar o foco e tentar fugir a algumas simplificações, vou dar o exemplo de Machado de Assis. Acredito que sua limitação enquanto crítico esteja ligada justamente a seu comprometimento com uma imagem: a imagem do nacional. Há muitos textos críticos de Machado que, a meu ver, não dão o salto que sua prosa deu justamente porque estão presos ainda a um estereótipo. Existe um ensaio magnífico de Machado sobre o fim do livro, por exemplo, que data de 1859 – muito antes de Mallarmé, portanto – mas que não leva a questão a consequencias mais destrutivas porque está ligado a uma idéia de progresso. Em outras palavras, eu prefiro pensar que a crítica pode, pelo contrário, não fixar uma imagem, mas desfazê-la.

 

Raúl Antelo é, a meu ver, quem define com maior precisão o que pode ser o gesto de uma crítica contemporânea: atuar onde o consenso se estabeleceu; e é também quem sugere um modo de proceder da crítica: fazer ficção duas vezes. Quer dizer, o crítico faz ficção da ficção. Quando Foucault olha a “Olympia” de Manet e diz que o que está em jogo no quadro não é a nudez, mas a luz, Foucault está fazendo ficção, pois talvez esteja exibindo o que nem mesmo Manet foi capaz de enunciar. A crítica enquanto exegese cai por terra porque a intenção também já caiu faz tempo. Neste sentido, de modo absolutamente torto, talvez a crítica literária possa “refletir” mesmo a poesia – possa criar pra ela uma segunda imagem.

 

Por outro lado, há ainda um valor – provavelmente moderno – que move o exercício crítico contemporâneo: a opinião. Barthes já tratou de analisar o modo como a opinião se relaciona com o autoritarismo, com a formação de uma doxa. Depois, há os chavões conceituais também “contemporâneos” que servem pra ler qualquer coisa. Nada mais tedioso. A opinião geralmente aparece ligada a cercos ideológicos fechados. Ter opiniões muito definidas é ocupar uma posição estável. Ou seja, você lê a primeira linha e sabe tudo que vem depois. É inútil continuar. Emitir opiniões, a princípio, é algo muito distinto de fazer crítica, embora muitas vezes não seja tão fácil perceber a diferença. Enfim, ocupar posições é fácil, difícil é saber ler.

 

Por isso acredito que a crítica deva cada vez mais se aproximar da poesia. O crítico é um artista porque escreve segundo para-doxas. A disposição para ler um poema é, desde seu pressuposto, um pequeno paradoxo. Acredito mesmo que a difículdade pra escrever um texto crítico satisfatório seja tão grande quanto a dificuldade pra escrever um poema com alguma sofisticação. O crítico lê implicado, não há mais distância, não pode haver, o crítico lê olhando para a literatura e para si. O crítico toca em um segredo, é profano. Quer dizer, em última análise, o crítico não está mais fora do jogo. Trata-se de algo que alguns teóricos chamam nos últimos anos de pós-crítica – um rótulo, certamente – mas é um procedimento que está em Roland Barthes, no pós-estruturalismo e também, antes, em Michel Leiris, por exemplo.

 

Mas eu poderia responder tudo de outro modo e dizer também: faz tempo que os jornais não dão conta mais de nada. Jornais são instituições muito mais duras e muito mais comprometidas do que qualquer outra. E não acredito na possibilidade de um crítico andar de mãos dadas com a instituição. Oswald já nos mostrou, em ato, que a instituição é vegetariana. Mas esta já é outra história. De qualquer modo, eu leio cada vez menos jornais. Em todo caso, é cada vez mais inútil.

 

Victor da Rosa, ensaísta, Mestrando em Literatura pela UFSC e autor de “piano e flauta – fragmentos de um romance” (Lumme Editor, 2007). Mantém o blog: www.victordarosa.blogspot.com

 

 

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