ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ZUNÁI EM DEBATE

 

A crítica literária sociológica consegue compreender a poesia contemporânea?

 

 

 

Claudio Daniel: vou confessar que não me sinto muito à vontade com o tipo de abordagem sociológica da literatura, praticada por críticos e ensaístas que substituem a análise estética do poema, o seu caráter de obra de arte, por uma leitura das circunstâncias históricas em que a obra foi produzida. Essa tendência, que vigora em setores universitários, com repercussão em cadernos culturais, tem tristes antepassados: o realismo socialista do século passado e um modelo de crítica oficializado por um sistema político que perseguiu os escritores da vanguarda russa, condenados à censura, à prisão ou ao exílio.

 

No Brasil, a leitura epigonal do método de Antonio Candido também levou a inquisições e equívocos, colocando de quarentena os autores mais inventivos para valorizar outros de conteúdo social mais evidente e fácil compreensão. Desse modo, foi construído um cânone que vai de Manuel Bandeira e Drummond a Ferreira Gullar, excluindo João Cabral e a Poesia Concreta. Ou seja, essa crítica coloca como “modelo” uma vertente mais discursiva, coloquial e cotidiana do Modernismo, que não apresenta mais nenhuma novidade de informação estética, jogando na berlinda as contribuições da vanguarda. Felizmente, os nossos “comissários do povo” nunca tiveram o poder político, reinando apenas na academia e na mídia, e agora usando outros rótulos e conceitos, mais “contemporâneos”, como a teoria dos gêneros.

 

Seguindo essa teoria, um poeta negro é analisado não pelo valor do que escreveu, mas pela sua herança genética; e um poeta judeu, mulher ou homossexual é valorizado não por ter escrito bons poemas, mas por pertencer a um grupo social marginalizado historicamente. A recusa a esse tipo de abordagem, limitada e limitadora não implica, porém, defender uma suposta pureza da obra de arte, como se ela não tivesse relações com o seu tempo e espaço.

 

É óbvio que o poeta é um ser social, que vive em sua época, registra aspectos pessoais, psicológicos ou temporais, mas a obra de arte vai além de fronteiras e condicionamentos rígidos, dialogando, inclusive, com repertórios culturais de outras dimensões históricas e geográficas, presentes no vasto repertório da literatura universal, desde Homero até o presente.

 

Borges já dizia que o poeta escolhe os seus antecessores, a sua família literária; desse modo, eu posso sentir-me mais próximo de Khlébnikov, na Rússia dos anos 20, de William Blake, na Inglaterra do século XVIII, ou de Matsuo Bashô, no Japão medieval, do que de autores contemporâneos, de meu idioma e país, como Adélia Prado ou Francisco Alvim, cujas realizações literárias estão muito distantes daquilo que gosto de ler e escrever. O intercâmbio imaginativo e estético com outros repertórios, afastados de nosso campo imediato de referências, é que permite a chamada análise sincrônica da obra de arte, tal como apresentada por Haroldo de Campos em seu notável livro A Arte no Horizonte do Provável. E o voo da imaginação para além das fronteiras do óbvio acontece, sempre, no campo da linguagem, no artesanato das palavras, que materializa formalmente o poema enquanto poema, diferente de outros tipos de texto, como o ensaio de sociologia ou o tratado filosófico, mais adequados ao estudo em profundidade de temas ontológicos ou sociais.

Um poema, tal como eu entendo, é uma construção sonora, imagética e de pensamento, por meio de palavras e eventualmente de outros recursos, visando um efeito estético, que se diferencia da mera observação do cotidiano ou da reflexão sobre acontecimentos. A poesia tem uma outra lógica, e por isso demanda outro tipo de discurso, que, em seus momentos de maior voo criativo se choca inclusive com as normas habituais do uso da linguagem, criando uma outra sintaxe, outro léxico, outra forma de organização das palavras, para além da mera função passiva de retratar coisas. O poema não diz algo; ele é esse algo, que por isso mesmo exige outro tipo de leitura, diverso da maneira rotineira como lemos crônicas de jornal, comics ou textos jurídicos. O poema é uma estrutura própria, um pequeno universo, em que as palavras criam associações inusitadas entre os termos. Talvez justamente por isso o poema é pouco propício a análises externas a sua natureza; seria o mesmo que buscarmos entender a astronomia a partir da numismática, ou fazermos a resenha de um livro de biologia seguindo os conceitos da heráldica ou da falcoaria. Sem dúvida, o exercício poderia ser muito curioso, mas o divórcio entre o tipo de análise e o objeto analisado oculta a natureza desse último, fazendo uma sobreposição de valores, em que o objeto desaparece sob o manto de sua suposta interpretação.

 

A poesia precisa ser compreendida como poesia, como experimentação radical da linguagem. O resto é conversa para boi dormir.

 

 

Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e editor da revista Zunái.

 

 

 

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Claudio Willer: em Um obscuro encanto, minha tese de 2008 sobre gnosticismo e poesia agora publicada em livro (Civilização Brasileira, 2010), cito Haroldo de Campos no capítulo sobre Goethe. Penso que Haroldo captou bem, em sua tradução de trechos do Fausto e no prefácio dessa tradução, aquela coisa de alemão engraçado em Goethe, os trocadilhos e duplos sentidos com intenção satírica. Reforça a idéia de um Goethe bem cético e crítico com relação a temas do romantismo como esoterismo, bruxaria, magia e alquimia.

 

Adiante, voltaria a citar Haroldo e Augusto a propósito de Sousândrade e simbolistas. E Augusto, a propósito de Mallarmé.

 

Já no capítulo sobre Rimbaud, cito Antonio Candido: o ensaio “Transfusões de Rimbaud”, no qual caracteriza muito bem sua escrita paradoxal, “feita para despistar o leitor”. “Transfusões de Rimbaud” não tem sociologia e contextualização – é close reading, assim como outros ensaios de Antonio Candido, aqueles reunidos em Sala de aula.

 

No capítulo primeiro da tese defendo a pluralidade de paradigmas. Vou de Kristeva a propósito de Gérard de Nerval e melancolia; de Harold Bloom na valorização do gnosticismo e identificação à poesia; mas chegando a interpretações opostas à de Bloom na leitura de “O Tigre” de William Blake e nas hipóteses sobre a relação entre gnosticismo e cristianismo primitivo. Não adoto “cânone” nem hipótese de “angústia da influência”.

 

Abro e fecho citando André Breton. Proponho uma interpretação bretoniana das visões de Blake e, é claro, da relação de Rimbaud com alquimia e esoterismo – mas manifesto dúvidas sobre a relação surrealismo-gnosticismo tal como proclamada por Breton.

 

O grande quadro de referências, o autor mais citado, é, certamente, Octavio Paz, poeta e um crítico tanto dos formalismos (“imperialismo da lingüística”, diz no ensaio sobre Lévi-Strauss) quanto dos sociologismos (é a mesma coisa que usar girassóis de Van Gogh para estudar botânica, diz em A outra voz). Adoto-o pelos signos em rotação, pela valorização da rebelião romântica, pela reivindicação de maior atenção á relação entre poesia romântica, simbolista e vanguardista com esoterismo, pelo que escreveu sobre mantras e glossolalias etc.

 

No exame de textos gnósticos e de poetas, tem bastante close reading, leitura formal. E, igualmente, bastante contextualização, como não podia deixar de haver – afinal, tudo isso ocorre na história, na diacronia – é inevitável examinar a relação dos misticismos com Alexandria, assim como de Blake com a revolução francesa ou de Nerval e Baudelaire com 1848 e o subseqüente retrocesso, ou de Rimbaud com 1871 e a Comuna. Conforme bem observado por minha banca, politizei o gnosticismo ao associá-lo à rebelião romântica.

 

O que significa tudo isso? Em primeiro lugar, que não faz sentido a discussão desse ou daquele paradigma, corrente de crítica literária ou quadro de referências. Todos são bons. Todos são ruins. Tanto podem esclarecer quanto servir à burocratização do conhecimento. O problema não está na produção de críticos, mas na cabeça de quem os cita e aplica; na propensão, infelizmente, de estudiosos ao cientificismo, à ortodoxia, ao sectarismo, a alguma espécie de pensamento único em crítica literária.

 

É preciso ler a obra literária. Senti-la, vivê-la. E depois, em um passo seguinte, procurar quem trouxe alguma contribuição de valor para enriquecer essa leitura. O restante – bem, o restante é o que acabo de chamar de burocratização do conhecimento; algo que ocorre a toda hora em universidades, centros de pesquisa, na produção acadêmica, contribuindo decisivamente para a manutenção dos nossos 70% de analfabetos funcionais.

 

Em 1982, um amigo que começava Letras na PUC me mostrou o que lhe estavam ensinando –uns diagramas, fórmulas, arremedos da formalização em ciências exatas. Ao bater os olhos naquilo, lembrei-me de quando havia estudado e lecionado Psicologia. No fundo, a mesma coisa, sessões de aplicação e legitimação científica dessa ou daquela ramificação do positivismo, na versão empirista, do behaviorismo, em Psicologia, nas modalidades formalistas em Letras. Em 1988, fui convidado para uma mesa de abertura do curso de Letras na mesma PUC. Critiquei a formação de uma geração de aplicadores de fórmulas e diagramas, treinados para, por sua vez, burocratizar uma subseqüente geração ao ensinarem a mesma coisa, do mesmo modo, em colégios e faculdades. Achei que, daí em diante, a sessão se transformaria em um verdadeiro inferno. Mas, para minha surpresa, os professores da PUC presentes concordaram comigo. Partilhamos críticas à instrumentalização do ensino e pesquisa a serviço desse ou daquele modelo, apresentado como monopólio da verdade científica. Repudiamos todos a troca de lugar de metalinguagem e linguagem, método e objeto, o carro e os bois. A questão era o que fazer, como ensinar literatura após a vigência do que eles mesmos denominaram de cientificismo. Essa questão, terá ela sido respondida? Ou novos cientificismos, novas modas em teoria literária, substituíram as anteriores? É certo que há mais diversidade em estudos literários. Nos corredores do esquálido prédio de Letras da USP cruzam avatares do formalismo, do sociologismo, de outras tendências. A PUC deixou, parece-me, de ser o centro irradiador exclusivamente da semiótica. Mas algo como, até há pouco, uma versão simplificada dos estudos socioculturais ter-se tornado doutrina oficial, orientação dos parâmetros curriculares do MEC para ensino médio, assim justificando a má qualidade do ensino, mostra que tem que haver atenção permanente contra toda recaída na ortodoxia, no pensamento único em estudos literários.

 

 

Claudio Willer, poeta, tradutor e ensaísta, publicou, entre outros títulos, Estranhas experiências (2004), antologia de sua obra poética.

 

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