ZUNÁI
EM DEBATE
É possível uma tese sem teoria?
Aurora Bernardini: Desenvolvo aqui um pouco mais os motivos que expus à jornalista do Estadão, em 20 de dezembro último, em resposta à pergunta acima, no artigo Universidades aceitam dissertações e teses fora do formato convencional.
Estamos num país que prima pela criatividade, coisa extremamente invejável, mas, quando se refere à leitura, tradução e interpretação de textos - especialmente os ditos “científicos”, mas não só — toda e qualquer veleidade nesse sentido é bom que seja adiada. A compreensão tem suas etapas. Primeiro vem o significado fundamental do termo, depois o significado no contexto e finalmente outros significados secundários. Iúri Tynianov em seu O Problema da palavra poética traduzido (mal) pela Tempo Brasileiro tem toda uma teoria extremamente arguta a respeito dos “indícios” de significado, dos quais sempre recomendo a leitura, nas análises de poesia. Aqui, porém, estamos falando de teses e de teorias.
Vamos a elas. Tese: asserção de caráter filosófico, teológico, científico ou atinente a questões de crítica literária ou artística que se enuncia e se discute para demonstrar sua validade contra outras diferentes ou contrárias.
Este é o significado fundamental.
Nas universidades brasileiras (pauto-me pela USP), o termo “tese” usa-se para o trabalho de Doutorado, e Dissertação ou Monografia para o de Mestrado.A questão da fixação da acepção de significado é fundamental em qualquer discurso que queira ser coerente e (bem) entendido. Procura-se respeitar, de preferência, o uso consagrado de alguns termos-chave. Aqui, respeito a terminologia de Segismundo Spina (Normas gerais para os trabalhos de grau, São Paulo, Ateliê, 2003) mas, como vou utilizar também o livro de Umberto Eco Como fazer uma Tese, a partir do original italiano (Come si fa uma tesi di laurea, 1977) terei que converter, à medida que surgirem, os termos específicos usados na Itália para os correspondentes usados no Brasil. Existe a tradução brasileira do livro de Eco (Ed. Perspectiva), mas como não a tenho em mãos, espero que o tradutor ou tradutora tenha realizado as conversões necessárias.
A diferença básica é a seguinte: Tesi di laurea é, nas universidades da Itália, “a dissertação escrita sobre argumento concernente a uma das disciplinas estudadas no curso universitário que o candidato discute com o orientador (geralmente professor da disciplina escolhida) e defende diante de uma banca de docentes”.Ela é obrigatória para a conclusão do curso universitário, portanto , embora se pareça com a nossa Dissertação de Mestrado, não é, evidentemente, a mesma coisa.
Falaremos aqui em Dissertação de Mestrado ou Monografia e Tese de Doutoramento ou, simplesmente,Tese. Para a Monografia o que está em primeiro plano é o assunto, estudado exaustivamente, podendo ser objeto de compilação e/ou de pesquisa, e do qual se focaliza um tema ou argumento.
Para a Tese o que está na linha de frente é o que se discute, prova ou defende (proposição) em relação a esse assunto. Se o assunto da Tese for o mesmo da Monografia, melhor, já será meio caminho andado. Ninguém impede que se apresente uma Tese como trabalho de Mestrado, entretanto o contrário não seria consentido, pois a uma tese se pede a proposição original.
O que significa elaborar uma Dissertação de Mestrado?
- Aprender a ordenar as próprias idéias;
- Aprender a ordenar os dados sobre um assunto/campo/corpus que o mestrando/a irá pesquisar metodicamente;
- Conhecer criticamente o que os outros estudiosos qualificados disseram sobre o mesmo assunto;
- Privilegiar, nesse assunto, um tema /argumento;
- Redigir uma exposição clara e articulada (não esquecer aqui a máxima de Wittgenstein: os limites de sua linguagem são os limites de seu mundo) dos pontos de vista que estudou, realçando os que coincidem com o seu, ao abordar o seu tema.
Se, além disso, o pesquisador for provar algo que outros não disseram, já se tratará de uma Tese.
Requisitos para uma Tese de Doutorado:
- Escolher o assunto/campo/corpus;
- Reunir os documentos sobre o assunto;
- Estabelecer os limites do assunto;
- Focalizar, dentro do assunto, um tema/argumento, estudando-o segundo uma idéia diretriz (teoria) que será a linha a ser perseguida durante o trabalho;
- Estabelecer os critérios de investigação do argumento e ordenar os dados (método);
- Reexaminar o argumento em função dos dados escolhidos;
- Dar forma orgânica às reflexões e conclusões sobre o tema estudado;
- Tornar a redação da tese inteligível a quem lê e tornar possível a ele, caso o necessite, remontar aos documentos e retornar ao assunto, enriquecido por seu argumento.
Trabalhos de pós-graduação
Embora não exista a “tesi di laurea” existem, na pós-graduação brasileira, os trabalhos finais para as disciplinas assistidas. O que é ótimo, como é igualmente providencial que exista o Mestrado, pois os alunos egressos da graduação têm a possibilidade de “fazer os ossos” para enfrentar a Tese.
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Mesmo que tenha sido relapso durante seu curso de graduação, ou que tenha se limitado a assistir as aulas, deixando as leituras para mais tarde (na grande maioria dos casos, o assim chamado “ salto universitário “ dá-se, no Brasil , no nível da pós-graduação), o aluno pode se valer da ocasião da elaboração do trabalho de pós para recuperar o sentido positivo e progressivo do estudo realizado, entendendo o trabalho não como uma coletânea de informações, mas sim como elaboração crítica de uma experiência e aquisição de uma capacidade que lhe permita discernir os nexos significativos das questões envolvidas, enfrentá-los com método e expô-los de acordo com certas técnicas de comunicação.Em primeiro lugar, além das técnicas envolvidas (cronograma, pesquisa bibliográfica, fichamento, organização etc.) está a escolha e a limitação do corpus e a fixação do tema do trabalho em função de uma idéia diretriz.A grande vantagem deste tipo de trabalho é que ele é uma miniatura da tese, e como na tese, chegar a esta idéia diretriz é o xis da questão.
Sobre criatividade
O método para se chegar a ela, em literatura, não é diferente do das ciências, pelo que conta Marcelo Gleiser na Folha de 17 de agosto de 2008.
Após ter escolhido o assunto, digamos, certo autor, e o objeto de seu trabalho, digamos um poema deste autor, você o lê anotando exaustivamente todos os dados possíveis nos diferentes níveis (fônico, gramatical, sintático, semântico etc.). Em seguida, nesse levantamento, você seleciona os dados notáveis (repetições, assonâncias, quiasmos, metáforas, oxímoros, enfim, todas as figuras em posição relevante fornecidas pelo repertório da análise literária) e depois de bem entendido o poema racionalmente, aguarda que as associações façam o seu trabalho.Vejamos o que diz Marcelo.
“Existe uma preocupação com a obra, um objetivo a ser atingido que permanece arredio. Esse é o análogo da tensão na piada, do encadeamento lógico da história da qual não conhecemos o fim. Não conseguimos provar o teorema, resolver a questão,encontrar a nota certa na composição musical ou o traço certo no quadro. Mas nossos cérebros continuam a funcionar [ idem nosso subconsciente, ou nossos sonhos despertos, acrescentaria ], a buscar conexões na memória, correlacionando fatos e possibilidades. De repente, quando menos esperamos, a solução vem à tona explosivamente, o momento do ahá! da sacada.”
É o Eureka de Arquimedes (e de Poe), é o click de Spitzer, enfim, é a chave da interpretação. A demonstração segue por esse caminho aberto.
Quanto mais exemplos de análise literária você conhece, tanto maiores as possibilidades de encontrar o caminho. (As abordagens vão, com suas linhas diretrizes e suas soluções, de Aristóteles ao pós-moderno, e às vezes, podem ser tão brilhantes e certeiras quanto a demonstração de um teorema).
Esse click tão importante para a demonstração que você vai apresentar é, obviamente, fruto de seus conhecimentos que , conforme diz Marcelo, são ligados, correlacionados, sem você se dar conta. Às vezes ele já é o vislumbre de uma solução (como nos “saltos” de Leonardo da Vinci explicados por Paul Valery em O Método de Leonardo, 34 Letras) e, nesse caso, induz o caminho para se chegar a ela; às vezes o click é a escolha de uma linha de atuação que levará à solução.
Exemplo final
Como exemplo de teoria e método, em escala maior, nada melhor do que recorrer a Erich Auerbach cuja obra Mimesis (Perspectiva, 1971), que, segundo as aulas de Antonio Candido, corresponde a um inteiro curso de pós-graduação, foi objeto de uma das sessões (“Atualidade de Erich Auerbach”) no recente “Seminário Internacional Rumos da Literatura” promovido pelo Itaú cultural de 16 a 18 de dezembro último, dentro de cujo contexto foi lançado em co-edição Itaú Cultural/Iluminuras o volume Protocolos Críticos.
Do Epílogo a Mimesis, que Antonio Candido sugere seja lido em primeiro lugar, esquematizando (parênteses meus):
“Ao observar os cambiantes modos de interpretação dos acontecimentos humanos nas literaturas européias (assunto/campo), o meu interesse concentrou-se e precisou-se de modo que, com isso desenvolveram-se-me algumas idéias diretrizes (teorias) que procurei perseguir”
(Tema escolhido): “A interpretação da realidade através da representação literária ou ‘imitação’”.
(Conclusão): “A visão da realidade a partir das obras cristãs da Antiguidade tardia e da Idade Média é totalmente diferente da do realismo moderno. Achei uma solução para o modo de ver cristão antigo, de forma que fique salientado o essencial e que os fenômenos pertinentes fiquem abrangidos. Chamei a visão da realidade da Antiguidade tardia e da Idade Média cristã de ‘figural ‘ e expliquei repetidamente o que entendo por isso”.
(Método): “Devido às idéias diretrizes, o tema ficou delimitado de uma forma muito determinada de modo que o método de trabalho que adotei, isto é, o de apresentar para cada época uma certa quantidade de textos -- para ,com base nos mesmos, pôr à prova os meus pensamentos -- leva imediatamente para dentro do assunto, de tal forma que o leitor chega a sentir do que se trata, antes mesmo de que lhe seja proposta uma teoria”.
Resposta
Sem teoria não se faz uma tese. Por que um romance que não venha precedido por uma introdução que reflita o intuito do candidato não pode ser aceito como tese?
Entre os vários requisitos (metodológicos e outros) que envolvem o conceito de tese e que podem ou não faltar a um romance, há um que certamente ele não pode preencher: por ser uma obra artística ele não pode determinar o tipo de abordagem/leitura ao qual será submetido. A cada abordagem ele dará uma resposta ( solução) que pode não ser a principal, a que corresponde à lei interna de sua criação. E cada abordagem, junto com sua solução, trará sua linha diretriz. Por exemplo, meu primeiro trabalho de grau foi “A Ambientação em Dom Casmurro” e, garanto a vocês, nem toquei na traição ou não de Capitu.
Aurora F. Bernardini é professora de pós-graduação em Literatura Russa e Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP). |