ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ZUNÁI EM DEBATE

 

É possível mudar o cânone literário?

 

Claudio Daniel

 

I

 

João Alexandre Barbosa, no ensaio A Biblioteca Imaginária, publicado em livro de mesmo nome (São Paulo: Ateliê Editorial, 2003), comenta que em 1936 foi instituído, no Columbia College, “um curso de humanidades baseado na leitura de ‘grandes obras’, isto é, obras que, por consenso, teriam sido fundamentais para a própria imagem daquilo que, naqueles tempos, chamava-se, sem qualquer hesitação, cultura ocidental”. Este cânone, diz Barbosa, incluía, entre outros autores, Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Virgílio, até autores do século XIX, como Dostoiévski e Stendhal, mas excluía outros nomes, como Baudelaire, Flaubert, Tolstói e Balzac. Conforme escreve o autor, “esta instabilidade de avaliação quanto às escolhas, para o leitor de hoje, deixando-se de lado as mudanças de valor ocorridas a partir dos anos posteriores à Segunda Guerra, ainda mais se acentua no que se refere ao elenco de autores críticos escolhidos. Na verdade, nem todos falam ao público de hoje como poderiam falar ao sistema acadêmico dos anos 30.” Barbosa acrescenta que “entre o então da instituição do curso do Columbia College e o agora de nossa experiência literária, cultural e histórica, transcorreu um tempo de modificações de valores que transforma o próprio modo de apreensão e leitura daquelas ‘grandes obras’ explicitado pelos ensaios de interpretação que as sucederam”.

 

Seis anos depois de instituído o curso do Columbia College, continua, foi publicado “o livro Mimesis, A Representação da Realidade na Literatura Ocidental, de Erich Auerbach”, que apresenta um cânone bem diferente, incluindo autores como Petrônio, Tácito, Rabelais, Racine, Balzac, chegando inclusive a James Joyce. Em todas estas escolhas de autores essenciais, porém, predominava “um forte apelo classicizante, dando como resultado uma rígida hierarquização de gêneros, raças e modelos culturais, que somente será abalada pelos movimentos multiculturais de anos recentes”. Já “no caso brasileiro, a formação do cânone literário seguiu, de bem perto, o próprio desenvolvimento de nossas relações de dependência e de autonomia com vistas às fontes metropolitanas”.

 

Barbosa refere-se então aos diferentes modelos canônicos apresentados no século XIX e início do século XX por críticos como Sílvio Romero e José Veríssimo, que, se por um lado foram essenciais para a formatação de um conceito de literatura brasileira (com forte coloração nacionalista e xenófoba), também cometeram equívocos, como a exclusão de Machado de Assis, por Romero, e a incompreensão de Cruz e Sousa, por Veríssimo. Vale a pena lembrar aqui de Antonio Candido, que em sua Formação da Literatura Brasileira exclui o barroco e o arcadismo (logo, deixando de lado autores como Gregório de Matos, o Padre Vieira e Claudio Manuel da Costa), para privilegiar autores românticos de valor duvidoso, como Casimiro de Abreu. Enfim, discutir a formação de um cânone é sempre assunto acalorado, mas que permite identificarmos as diferentes linhas de pensamento que nortearam as inclusões e exclusões de autores de uma determinada noção de literatura essencial, de qualidade. Quando há honestidade intelectual, essas escolhas são orientadas por modelos teóricos, sujeitos a releituras críticas ao longo da história; quando está ausente essa honestidade, as escolhas são feitas por questões de política, marketing ou relações pessoais, fatores que nada têm a ver com literatura séria, e que por isso mesmo acabam caindo no merecido esquecimento.

 

II

 

Terry Eagleton é autor de um livro chamado Teoria da Literatura — Uma Introdução (São Paulo: Martins Fontes, 2006). Eu não concordo com muitas de suas conclusões, que vêm de uma análise marxista do trabalho literário, mas ele apresenta algumas questões que merecem a nossa reflexão. Por exemplo: “A dedução, feita a partir da definição da literatura como uma escrita altamente valorativa, de que ela não constitui uma entidade estável, resulta do fato de serem notoriamente variáveis os juízos de valor. (...) Até as razões que determinam a formação do critério de valioso podem se modificar. Isso, como disse, não significa necessariamente que venha a ser recusado o título de literatura a uma obra considerada menor: ela ainda pode ser chamada assim, no sentido de pertencer ao tipo de escrita geralmente considerada como de valor. Mas não significa que o chamado ‘cânone literário’, a ‘grande tradição’, inquestionada da ‘literatura nacional’, tenha de ser reconhecido como um construto, modelado por determinadas pessoas, por motivos particulares, e num determinado momento. Não existe uma obra ou uma tradição literária que seja valiosa em si, a despeito do que se tenha dito, ou se venha a dizer sobre isso. ‘Valor’ é um termo transitivo: significa tudo aquilo que é considerado como valioso por certas pessoas específicas, de acordo com critérios específicos e à luz de determinados objetivos. (...) O fato de sempre interpretarmos as obras literárias, até certo ponto, à luz de nossos próprios interesses — e o fato de, na verdade, sermos incapazes de, num certo sentido, interpretá-lo de outra maneira — poderia ser uma das razões pelas quais certas obras literárias parecem conservar seu valor através dos séculos.” Porém, continua Eagleton, “Diferentes períodos históricos construíram um Homero e um Shakespeare ‘diferentes’, de acordo com seus interesses e preocupações próprios. (...) E essa é uma das razões pelas quais o ato de classificar algo como literatura é extremamente instável.”

 

III

 

Haroldo de Campos, no ensaio Texto e História, incluído no livro A Operação do Texto (São Paulo: Perspectiva, 1976), afirma o seguinte: “a vanguarda brasileira propõe uma leitura radicalmente diversa de seu passado literário. a idéia de uma poética sincrônica parece aqui extremamente fecunda, nos termos em que a formulou Roman Jakobson (Linguistic and Poetics): ‘A descrição sincrônica considera não apenas a produção literária de um período dado, mas também aquela parte da tradição literária que, para o período em questão, permaneceu viva ou foi revivida. (...) A escolha de clássicos e sua reinterpretação à luz de uma nova tendência é um dos problemas essenciais dos estudos literários sincrônicos. (...) Uma poética da história ou história da linguagem cabalmente compreensiva é uma superestrutura a ser construída sobre uma série de descrições sincrônicas sucessivas’.

A aplicação deste critério numa literatura como a brasileira (cuja história real, a rigor, ainda está por fazer-se) produz desde logo um efeito desobstrutivo e dessacralizador: de um lado o prontuário das obras a serem consideradas (antes obras que autores) fica inevitavelmente reduzido, com a remoção do entulho despiciendo (por ‘glorioso’ que seja); de outro, perfilam-se com nitidez antes impossível de obter aqueles autores (textos) que realmente contam numa perspectiva radical, inclusive de validade internacional (...). Esta ‘drástica separação’ (...) é empobrecedora apenas na aparência. O que se perde em quantidade e diluição, ganha-se na qualidade e rigor. (...) O crítico poderá agora, de cabeça erguida e sem pedir escusas, reivindicar alto e bom som aquilo que nos é devido, o contributo de informação original que temos a reclamar como coisa nossa na evolução de formas da literatura universal, na, por assim dizer, ‘enciclopédia imaginária’ dessa literatura. O que era antes um panorama amorfo, contemplado por um olho destituído de projeto, ganha coerência e relevo hierárquico, readquire vida dentro de uma tábua sincrônica onde presente e passado são contemporâneos.”


Dentro desta perspectiva, Haroldo de Campos propõe uma releitura da história da literatura brasileira, não mais conforme critérios sociológicos ou políticos, e sim estéticos. O resultado dessa releitura crítica seria uma Antologia da Poesia Brasileira de Invenção, que infelizmente Haroldo não chegou a organizar. Participariam dessa obra autores como Gregório de Matos, Sousândrade, Kilkerry, bem como os textos mais radicais de poetas como Gonçalves Dias e Cruz e Sousa, com a exclusão deliberada dos parnasianos e de românticos menores, como Casimiro de Abreu. Não se trata, é claro, de uma escolha “imparcial” ou “neutra” de textos e obras, mas um recorte deliberadamente parcial, que elege os autores e obras do passado que têm mais afinidade com as pesquisas formais da vanguarda. Conforme diz Jorge Luís Borges, citado por Haroldo de Campos neste ensaio, “A verdade é que cada escritor cria os seus precursores. A sua obra modifica a nossa concepção do passado como há de modificar a do futuro”. A partir da afirmação borgeana, conclui Haroldo, “Pode-se dizer que uma nova obra decisiva ou um novo movimento artístico propõem um novo modelo estrutural, à cuja luz todo o passado subitamente se reorganiza e ganha uma coerência diversa. (...) Entre o ‘presente de criação’ e o ‘presente de cultura’ há uma correlação dialética: se o primeiro é alimentado pelo segundo, o segundo é redimensionado pelo primeiro. Vanguarda como atitude produtora no ‘presente de criação’ e visada sincrônica como atitude revisora no ‘presente de cultura’, eis os polos desta tensão na atual literatura brasileira”.

 

IV

 

Todo cânone é instável. Nenhum é definitivo. Ezra Pound, em sua “ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos”, acertou muito, incluindo em seu paideuma os poetas chineses, por exemplo (pouco estudados na época), os trovadores provençais, os metafísicos ingleses, entre outros poetas que julgava os mais inventivos da tradição literária. Porém, até Pound cometeu equívocos, deixando de lado autores como Góngora, Goethe, Baudelaire e Mallarmé, talvez por sua aversão à metáfora, à linguagem enigmática, e por sua defesa de uma poesia mais clara, precisa e objetiva. O crítico norte-americano Harold Bloom, em época mais recente, publicou um livro bastante comentado, O Cânone Ocidental, em que revela preferências conservadoras em matéria de poesia, incluindo o chileno Pablo Neruda, por exemplo, e deixando de lado o peruano César Vallejo, talvez o poeta mais criativo da língua espanhola no século XX.


Discutir cânones, talvez, seja perda de tempo (embora seja uma das atividades centrais da crítica literária). O que vale a pena abordar, a meu ver, não são as listas de nomes em si mesmas (que variam ao longo da história, conforme diferentes modelos teóricos e apreciações subjetivas), e sim os critérios de escolha, os princípios que norteiam a apreciação de um texto literário. Claro que, para encurtar a conversa, ficaremos apenas no caso brasileiro, e em especial com a poesia contemporânea, e mais exatamente aquela produzida nas duas últimas décadas. Eu confesso que não tenho a menor vontade de apresentar mais uma lista, pois já existem várias: nas antologias (como Na Virada do Século, Poesia de Invenção no Brasil, que organizei com Frederico Barbosa), em artigos de crítica, ensaios e trabalhos universitários. O que eu pretendo, a partir de agora, nesta série, é discutir autores que ficaram “de fora” da avaliação dos críticos, em contraposição aos autores “consagrados”, para refletir sobre os procedimentos adotados na valorização de uns e outros, pela análise estética comparativa de autores e obras. Uma crítica da crítica, para jogarmos a luz da incerteza sobre supostas certezas.

 

V

 

Ferreira Gullar, em crônica publicada no dia 07 de março na Folha Ilustrada, escreve: “A grande arte inventa o real, subverte-o, enriquece-o, mesmo quando se trata de realistas como Corot ou Coubert. Digo que a arte existe porque a realidade é pouca, não nos basta. (...) A tendência realista foi consequência da substituição da visão religiosa pela concepção científica e do desenvolvimento industrial. (...) Os estetas e teóricos da arte, como os artistas, sempre entenderam que arte e realidade são coisas distintas, pelo fato mesmo de que a arte-pintura, sendo um modo de expressão, não tem a materialidade das coisas reais. Ao substituir as significações simbólicas pela exposição pura e simples dos fenômenos reais, abre-se mão da capacidade humana de criar um universo imaginário que, durante milênios, contribuiu para fazer de nós seres culturais, distintos dos demais seres vivos que, estes, sim, limitam-se à experiência do mundo material”. Estas observações foram feitas pelo poeta maranhense a respeito das artes plásticas, mas, a nosso ver, são pertinentes a todas as formas de expressão artística, especialmente a poesia, ainda que ela trabalhe com palavras e não com cores, linhas e volumes.


Uma conquista da modernidade, em oposição à tradição clássica, foi justamente a de afirmar a autonomia da arte em relação ao real; não se trata mais de retratar o mundo, e sim de criar um mundo com as palavras. O próprio poema é uma realidade autônoma, um pequeno universo, “com sua própria fauna e flora”, como dizia o poeta chileno Vicente Huidobro. O poema é concebido pela modernidade como uma estrutura em que as relações entre as palavras, os efeitos sonoros e visuais, a semântica, a invenção sintática e metafórica, enfim, a função poética (Jakobson) se afirma, deixando em segundo plano a mera apresentação de uma idéia de mundo.


É claro que em autores como Maiakovski, Brecht ou Carlos Drummond de Andrade (Rosa do Povo) há um sentido referencial crítico, de violenta contestação social, mas este sentido é integrado à composição, é inseparável do jogo formal que define a poesia como poesia, e a distingue de uma crônica, um artigo acadêmico ou um texto de política ou sociologia. Não é o conteúdo de um poema de Drummond que o torna válido, mas a maneira como ele se relaciona com a arquitetura verbal. Esta longa introdução quer apenas situar as referências teóricas utilizadas para a leitura comparativa de dois poetas brasileiros contemporâneos, que publicaram os seus primeiros livros na década de 1990: Fábio Weintraub e Antonio Risério.


No livro Literatura Brasileira Hoje (São Paulo: Publifolha, 2004), o crítico da Folha de S. Paulo Manuel da Costa Pinto afirma o seguinte sobre a poesia de Fábio Weintraub, a quem é dedicado todo um capítulo: “Os dois traços marcantes da poesia de Fábio Weintraub são a crítica da realidade social brasileira e a atitude de dar voz ao outro, com poemas que narram uma situação em que irrompem falas dos ‘personagens’. (...) Os dramas urbanos de Weintraub parecem extraídos de manchetes de jornal; seus poemas trazem o protesto da viúva no velório (...) ou o desespero do morador de rua”. Estes comentários fazem referência ao livro Novo Endereço, de Fábio Weintraub, que recebeu dois prêmios literários, o da Funalfa e o Casa de las Américas, e obteve resenhas em jornais diários, como a Folha de S. Paulo, e sites de literatura. O autor colaborou nas revistas CULT e Inimigo Rumor. Vamos agora ler um dos poemas do livro:



BARRABÁS

Vocês não podem velar
o corpo do meu marido
ao lado do desse aí
que a polícia acertou

Vocês me desculpem
imagino o sofrimento
perder um filho assim moço

Meu Cícero
morreu trabalhando
Um tiro pelas costas
às duas da manhã
Ao lado desse aí
o corpo dele não vai gelar

Não adianta insistir
ao lado de bandido
meu marido não fica

(Novo endereço. São Paulo: Nankin Editorial, 2002.)

 

O poema é construído como um monólogo em que uma personagem sem nome, a Viúva, faz a narrativa de um caso de violência urbana. O vocabulário é simples, mimetizando a possível fala de uma mulher de condição social desfavorecida. Não há estrutura métrica ou rimas; o poema é construído em versos livres, curtos e coloquiais, sem nenhum artifício de linguagem, como metáforas ou metonímias. O autor não busca uma construção rítmico-melódica, nem apresentar imagens verbais de qualquer tipo. É uma antipoesia de crítica social que funcionaria de modo mais eficaz, talvez, no espaço do teatro, ainda que falte ação dramática à cena, que é estática. Como texto literário, não tem força de impacto, inclusive do ponto de vista emocional, pela aproximação com o melodrama. Ele se justifica, ou quer se justificar, pela realidade que retrata nos bastidores da cena, pelo “conteúdo”, mas não se sustenta, ao nosso ver, como construção textual, pela ausência de uma arquitetura poética, enfim, de um universo semântico próprio. Como escreveu certa vez Ana Hatherly, a poesia não busca retratar o mundo, e sim “acrescentar mundos ao mundo”.


Já o poeta e antropólogo baiano Antonio Risério, em seu livro Brasibraseiro (São Paulo: Landy Editora, 2004. Prêmio Jabuti), escrito em parceria com Frederico Barbosa, faz um amplo painel da cultura brasileira, registrando desde a presença da tradição poética oral africana (Oriki p/ Oiá-Iansã, Obô Mejá) até o diálogo com a poesia arcadista de Claudio Manuel da Costa, ao mesmo tempo em que faz reflexões sobre o próprio conceito de nacionalidade e os conflitos sociais da realidade brasileira, mas sempre investindo na interação do sentido com a elaboração poética de cada texto, como nesta peça, que vamos ler agora:

STRASSENKINDER

crianças que miram espelhos
e giram as caras cansadas
onde narciso não é conselho
nem comboio acha a estrada

crianças de poucos pentelhos
de rubras roupas rasgadas
entre guinchos gosmas e relhos
orgasmos de putos no ralo

crianças de coxas vermelhas
no beco das bocas usadas
moeda e moenda dos grelos
nas fodas das doidas danadas

crianças que masturbam velhos
e chupam xotas grisalhas
lambendo o sangue dos medos
nos dedos grudando de gala

*

sob a navalha da ira
o sol se descola sagrado
que a vida por mais que me fira
não me verá conformado

O poema de Antonio Risério, ao contrário daquele de Fábio Weintraub, não imita a fala de um Outro, mas é dito em primeira pessoa: é o poeta que articula o discurso, com a sua própria dicção, sem fingir um timbre estranho ao seu. Podemos recordar aqui, novamente, das concepções de Jakobson, para quem, conforme diz Terry Eagleton, “A literatura transforma e intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana”, que estaria desgastada pelo uso ordinário. Por isso mesmo, Jakobson reivindica a “violência organizada contra a fala comum”, para que o texto poético tenha mais força de impacto. Eagleton acrescenta ainda: “À crítica caberia dissociar arte e mistério e preocupar-se com a maneira pela qual os textos literários funcionavam na prática: a literatura não era uma pseudo-religião, ou psicologia, ou sociologia, mas uma organização particular da linguagem” (in Teoria da Literatura, Uma Introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006).


O poema de Antonio Risério tem uma construção deliberadamente “artificial”: é construído em cinco quartetos, sem métrica fixa mas com uso de rimas; há o emprego visível de assonâncias e aliterações, de trocadilhos e metonímias, com imagens fragmentadas e concisas de alta expressividade, como closes cinematográficos, mas, ao mesmo tempo, a linguagem coloquial é incorporada a essa estrutura, com o recurso à gíria e ao palavrão, e desse choque entre a norma culta e a fala chula, o cerebral e o espontâneo, o eu que fala do mundo e o eu que cria um mundo, surge um texto poético muito mais violento, forte e eficaz, inclusive do ponto de vista do sentido, que não é oculto, mas explicitado (“que a vida por mais que me fira / não me verá conformado”). Não há conflito entre engenhosidade formal e sentido, mas sim a habilidade do poeta (ou a falta dela) para estabelecer uma unidade de efeito entre forma e fundo, de modo a causar impacto no leitor. Sem essa habilidade, a função poética se perde em mero registro de informações já bem conhecidas pela leitura dos jornais, sem acréscimo de informação nova.

 

(Textos publicados originalmente no blog Cantar a Pele de Lontra, http://cantarapeledelontra.blogspot.com)

 

Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e editor da revista Zunái.

 

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