ZUNÁI - Revista de poesia & debates

[ retornar - outros textos - home ]

 

 

ZUNÁI EM DEBATE

 

Até que ponto a poesia pode interferir na realidade que nos cerca? 
 


O que meus olhos viram foi simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é.
Jorge Luis Borges, O Aleph.


 
 
Eduardo Jorge: Trata-se de uma relação com a linguagem, de como essa linguagem se relaciona com o real — e o escritor, como um mediador, vai dar corpo a isso. Assim, no Aleph, Borges fala da simultaneidade do real e da sucessividade da linguagem. Há um desnível. Essa sucessividade não é necessariamente linear, trata-se de uma questão limítrofe. Podemos imaginar, aí, uma relação fronteiriça sob a tênue relação da experiência que o texto/poema pode trazer para o leitor ou para quem o faz (isso pode ser pensado a partir de duas distinções feitas por Walter Benjamim: vivência e experiência).  

O intrigante Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein também nos traz espinafradas, no sentido de pensamento dos fatos (figuramos os fatos) e em termos lógicos (A figuração lógica dos fatos é o pensamento). Pensar os fatos. Suas representações. De como essas configurações se situam nesse plano da linguagem (que pode estar diluída, incluída nos discursos) sem nos atermos a uma questão puramente formal. Os meios de comunicação nos fornecem exemplos, modelos. E esses modelos estão relacionados aos discursos televisonados, impressos ou auditivos. Seria como houvesse um grande copydesk do real, homogeneizando – e pondo em comum o que não tem relação – notícias de guerra, previsão de clima e a misteriosa vida dos liquens. Sem contar com ações de merchandising, testemunhais e cenas de tortura em um curto intervalo de tempo de programação.  

E como situar a poesia e seus pontos de interseção com a realidade? Quais são os seus domínios? Como vivem os seus leitores? Quem a faz? E quais os graus de legitimação da produção poética atual? Essa pergunta inicial lançada nos trazem questões básicas. Mas que sem a pretensão de respondê-las, elas permeiam o fazer. Como também podemos ver no seguinte trecho do poema POESIA de Carlito Azevedo (Collapsus Linguæ): “(eles tantos e ela de tão poucos)”. Inevitavelmente. Poesia não vende (reclamam sempre) e uma vez, Paulo Leminski disse "e é bom que não venda". Há problemas com o mercado, o mainstream, como há gestos heróicos de primavera. Seria então o poeta um ser dotado de erro, como o disse o autor do Catatau.  

"Chego, às vezes, a suspeitar que os poetas, os verdadeiros poetas, são uma espécie de erro de programação genética. Aquele produto que saiu com falha, assim, entre dez mil pares de sapatos um sapato saiu meio torto. É aquele sapato que tem consciência de linguagem, porque só o torto é que sabe o que é direito. Então o poeta seria mais ou menos, um ser dotado de erro."(...)

Essa consciência de linguagem, aplicada, é um meio de tocar o real. E um livro de poemas – livro, aqui, se pensando uma composição que una rigor e vida, que pulse – terá sim seus leitores tocados. Primeiro, porque dentre os poucos leitores de poesia há os que não só lêem, mas também freqüentam os livros. E daí nasce um contato com um outro real. E para isso a poesia não precisa ser linha de frente, combativa, panfletária. A confusão entre real e realismo está presente em muitos “movimentos” que cobram essa didática da revolução ou da conscientização ilustrada. E creio que a questão não passa apenas por aí. Há toda uma composição. É mais ou menos isso que o conjunto da produção poética atual faz: atua como um conjunto de vozes, um Zeitgeist.  

Cito aqui o trecho da fala de um amigo, meu Mário de Andrade, que fazemos isso para nos sentirmos vivos. Então esse fazer já interfere, modifica a realidade de quem escreve, de quem compõe peças. É praticamente sem volta. Antônio Cisneros, na introdução de Sete Pragas Depois, fala de uma vida de dedicação à poesia, que não lhe trouxe lucro algum e ao mesmo tempo também não foi só de prazer, mas também árdua.  

A literatura, segundo Leyla Perrone, nasce de uma dupla falta. Uma dessas faltas, no mundo, procura-se suprimir pela linguagem; a outra é “ela própria sentida em seguida com falta”. A falta traz o sentimento de procurar transformar, modificar. E nem sempre essa mudança está prevista e planejada em forma de texto. É uma das formas em que se toma essa falta. E várias formas de insatisfação provocada pelo real, a que Leyla se detém é a imaginação.  

A imaginação entra como substituição de um “real insatisfatório”. Nesse ponto, concretizar algo imaginado é uma atividade artística. A imaginação não entra aqui apenas para cobrir as lacunas do real de uma forma sonhadora e ingênua; é também utilizada como uma forma “demiúrgica” no sentido poundiano do artista ser “antena da raça”. 

Há ainda a analogia com a realidade a partir de “contaminações”, ou seja, atuar de forma virótica, como sugere o poema VÍRUS, de Claudio Daniel: “O/vírus/o vivo vírus/ na vulva – pústula - / lepra acesa, que arte, arte/ no papel;/ piolhos/ no branco orifício do zero/ assim é o tosco ofício/ do fácil,/ vírus fútil/ que, para alguns/ é poesia”. Há possibilidades de se criar espaços, de configurá-los materialmente em diversos suportes: auditivo, audiovisual, objetos, publicações – reiterando o pensamento do objeto livro – e revistas, jornais e suplementos que atuam também de uma forma pontual e configuram cenas, possibilitam trocas e acabam contaminando realidades de outros poetas-leitores. Momentos solitários, possibilitados por algumas palavras, que não nos faz sentir tão sós no mundo – pelo menos instantaneamente – como diria o poeta Horácio Dídimo:

algumas palavras
algumas palavras apenas
talvez leves e entrecortadas
mas que ultrapassem por alguns instantes
o círculo maior da 
solidão 


Eduardo Jorge, poeta, é co-editor da revista literária Gazua, de Fortaleza (CE)

*

 
Edson Cruz: Em primeiro lugar, é necessário esclarecer o amplo espectro da própria palavra poesia. Esse élan, quase sempre misterioso, pode estar presente em qualquer discurso dado, na música, em qualquer verdade revelada ou apreendida, ou, como diz Manoel de Barros, no próprio andar zigue-zagueante de um bêbado na madrugada. 

Esta palavrinha, que engloba tantos mundos e desmundos, não pode ser confundida com versificação e nem mesmo com o que denominamos de poema em suas várias formatações. 
Se a tomarmos em seu sentido original, designava, e ainda carrega em seu alforje, o sentido grego de produção, de fabricação, ou, melhor ainda, de criação. Fazer poesia era criar algo, dar existência a qualquer objeto ou ser. Em outras palavras, mais que interferir era gerar uma realidade ou realidades. Creio que ainda hoje o fazer poético deva ter esta mira.
 
Nestes dias bicudos da era Bush, quando vivenciamos um excesso de realidades tão corrosivas que tornam o existir quase uma virtualidade, precisamos, mais do que nunca, de uma poesia que interfira, que fira o inter do ser. Uma poesia que responda o que vem a ser isto que ‘súbito faz falta em todas as coisas’. 

Até que ponto ela interferirá na realidade que nos cerca vai depender do ser-artífice que a projeta e do ser-receptor que a digere. A poesia é, antes de mais nada, um fenômeno de linguagem. E, como todo fenômeno, deve ser intimamente assimilado.

Se uma pequena porcentagem da herança poética da humanidade fosse efetivamente apreendida por todos os poros e células humanas, um protomutante já teria sido gerado e fatalmente a realidade explosiva que nos cerca já seria outra. Ou já teria explodido de vez para dar lugar, talvez, a uma estrela cintilante. 

O tempo que vivemos é póstumo, vivemos o pós-tudo, mas ainda não nos acostumamos ao instante eterno do agora-sempre. Nossas noções-casulo ainda vivem num espaço pré-Einstein. O que dizer, então, de nossa afetividade errática que não alcançou ainda o estágio do ser-humano? 

Para mim a poesia sempre buscará a eternidade do verdadeiro, mesmo que para isso debruce-se sobre a impermanência do real. Mas ela tem que revelar o que ainda não foi imaginado, dar realidade ao que para muitos ainda não existe. 

Imagine aquele lírio que floresceu à noite no campo fora de tuas vistas. Intacto e selvagem, ele surgiu sob o céu estrelado e não foi tocado por olho ou mão humana a não ser o hálito de nossas dores imemoriais. Ele existe ou não existe? Prove-me, diz a ciência. Sinta-me, diz a natureza. Creia-me, diz o coração. E sem saber o que fazer convertemos a dúvida em hóspede de um paraíso impossível. 

A poesia pode ser uma prática de extravio das conformidades do real, gerando um reencontro com o essencial e nutrindo outras possíveis realidades. Um poema pode dizer/fazer mais do que mil tratados e convenções. O poder da palavra não deve/pode ser subestimado. 
 
EXTRAVIO 
tudo aquiloque era como se
viesse a ocorrer
até a fronteira(quando luz indecisa
ou fratura do horizonte?)
em que o passo
para nada daquilo
do que era como se
tivesse ocorrido
 
(Do livro Práticas de Extravio de Júlio Castañon Guimarães, 7 Letras, 2003) 

Edson Cruz, baiano de Ilhéus, é poeta, músico e editor do site de literatura Capitu (www.capitu.com.br)

*


Leonardo Gandolfi: Penso que a boa poesia atua sobre o real, na medida que o encena de dentro para fora. Assim, quem lê um bom poema, de alguma forma, acaba sofrendo as conseqüências. Não importa se a experiência é a do espaço cotidiano ou a do espaço místico, o que realmente faz diferença é o quanto a palavra se impõe, não exclusiva e necessariamente como metalinguagem, mas como força bruta voltada para tudo e para si. Um depoimento do poeta português Herberto Helder nisso me foi muito útil. “A história afro-carnívora foi colhida algures, de leitura, e respeita a uma tribo que sepultava os seus mortos no côncavo de grandes árvores. As árvores, a que tinham dado o nome do povo: baobab, devoram os cadáveres, deles iam urdindo a sua própria carne natural. Pelo nome tirado de si e posto na alquimia, a tribo investia-se nas transmutações gerais: a morte levava o nome, e o nome, activo e tangível, crescia na terra. Emocionam-me a fome botânica e o triunfo das copas, o empenho tribalmente mágico, regrado pelo insondável entendimento das metamorfoses da carne no esquema orgânico da matéria. E apanho aqui o símbolo; uma imagem de si mesma, uma imagem absoluta, universal, devora esta gente, e esta gente põe a assinatura na imagem devolvida ao mundo. É quase tudo o que há para dizer no plano prático da poesia.” 


Leonardo Gandolfi é poeta e ensaísta.

*

 
Dirceu Villa: Como qualquer forma de expressão, a poesia pode influir de todo modo concebível no que se convenciona chamar “realidade”; antes, entretanto, de chegar a conclusões, vamos começar com uma história prolegomênica. 

Fui convidado a ler meus poemas, há algum tempo, e na mesa organizada para o evento havia jornalistas, editores e outros poetas. Lemos poemas, conversamos com o público e, como sempre, num determinado momento, se instaurou aquele assunto meio solene de “não há mais lugar para a poesia”, ou “a poesia não vende” etc. Daí eu disse que esse era um problema de foco — senão pura desfaçatez — e que se você consegue fazer as pessoas desejarem lixo, você pode, igualmente, fazê-las desejar tesouros. A questão é de visibilidade. 

“Mas a poesia não deveria opor resistência a isso?” — perguntou, atônito, um editor da mesa. Uma das minhas palavras sacrílegas tinha sido “propaganda”. 

Aqui acaba o exemplo introdutório.

Há um certo desejo nas pessoas do meio literário de que a boa literatura permaneça num seguro antro mal-iluminado, onde só vão parar aqueles que estão dispostos a uma árdua peregrinação, longe dos olhos das pessoas. Tudo que se ofereça como ligeiramente diverso disso será recebido com o estranhamento anotado linhas atrás; talvez você pergunte por quê: não sei, mas assim o sinto e me excrucio.  

Portanto, me parece, a questão não é tanto se a poesia pode interferir, e em que medida, na realidade, mas por que não o faz (uma vez que a obra dos poetas tem sido muito menos estimulante a debates de idéias do que a de vários outros grupos de pessoas). 

A minha humilde opinião é: o meio está esgotado. Considere o cinema: arte de espetáculo, caríssima, que mesmo nos casos mais tímidos é feita para as massas etc. A vitalidade desse meio e a maneira pela qual ele interfere na mentalidade das pessoas vai muito além de seus modos de produção, ou das campanhas de publicidade, para vender o que os tecnocratas expelem como simplesmente um “produto”. Reféns de um minimarxismo tacanho, os poetas resolveram que estão na resistência, o que siginifica, em termos práticos, o “faz-de-conta-que-não-estou-aqui”. Que lições há no cinema? É feito para ter visibilidade, não foi ainda massacrado por teorias universitárias, pode lançar mão de todo aparato de imaginação disponível, depende necessariamente de suas qualidades técnicas. Os artistas “sérios” de outros meios devem ser “secos”, contidos, mirrados, anêmicos, e pouco importa que dominem sua arte; em outras palavras, são refugo de teorias de meados do século passado, não dizem nada que preste para sua própria época, numa forma (ou em várias formas) que interprete sua própria época.  
É claro, estou falando da vasta maioria desse contingente desigual de pessoas que se alcunham “poetas”, e não daqueles poucos que enfrentam forma e fundo para estabelecer um novo campo imaginativo, oferecendo estética generosa e inteligente. Alguns desses alcançam um nível de visibilidade condigno com suas capacidades; outros, por serem objetos muito estranhos, acabam não sendo apreciados em sua própria época — enquanto reina todo tipo de porcaria —, mas certamente estimularão inteligências estupefatas do futuro. Você não é capaz de interferir se está ausente: só interferem aqueles que comparecem, aqueles que, como escreveu Ezra Pound, se mantêm sob a dura luz de Sófocles e tomam suas feridas daí com alegria. O atual tráfico de influências (QI), a intromissão indelicada e desastrada da teoria, e meia-dúzia de chavões enroladores (como o falso e onipresente “poesia não vende”), são cortinas de fumaça escondendo atrás de si uma quantidade apreciável de bons autores que não pactuam com esse monte de asneira. 

Estão apenas aguardando uma descoberta. O primeiro editor que tiver a coragem de bancar essa descoberta não será esquecido. Eu realmente acho que algum dia ainda poderemos ler, no pano de fundo de uma nova poesia influente, aqueles versos de Shelley em Ozymandias: “Look on my works, ye Mighty, and despair”. 

Dirceu Villa é poeta e mestre em literatura pela USP. Publicou MCMXCVIII (Badaró, 1998) e Descort (Hedra, 2003), ambos de poesia.  

*

 
Horácio Costa: A finalidade da poesia não é "interferir", menos ainda interferir “na realidade", assim como considerando um discurso que privilegie a ação, e menos com um verbo cuja etimologia colinda com "ferir". Evidentemente, nada parecido pode ser a finalidade da poesia, ainda que, claro está, algum que outro indivíduo "fira-se", ou possa considerar-se ferido, fisicamente atingido, por ela (um leitor de Bateau Ivre que desejasse performatizar os versos no mar podendo mesmo, à la limite, naufragar-se por sua causa, e bêbado). A poesia não interfere no sentido do agir, e nem, ao menos em princípio, fere. É um discurso outro, de alteração da realidade, de construção paralela - não no sentido esquizofrênico de habitabilidade de um universo paralelo e incomunicável com o real tangível, mas de tensionamento, e mesmo de enriquecimento, da dita realidade tangível. A poesia, na realidade,  desaliena-a dela mesma: a dita-cuja, a realidade, tocada pela poesia,  abre-se a um seu próprio coração profundo, o outro lado do agora e do aqui, que é o mesmo agora, o mesmo aqui, só que mais intenso, mais radicalmente próprio, e porque não dizer, mais verdadeiro e humano.  

Trata-se, portanto, de ser, e de ampliar o espectro do ser na existência, através da linguagem. Então, não é interferência no sentido da ação, mas do resistir, desde as correntes da percepção (et pour cause, verdadeiras, e humanas, e profundas...) ao que nela, na ação, a tudo banaliza, e nos afasta desse núcleo, desse ser-em-promessa-de-ser, que a poesia, enfim, recupera, ou permite entrever que possa recuperar, no tempo ou fora dele. 


Horácio Costa é poeta, ensaísta e tradutor. Publicou, entre outros títulos, os livros de poesia Satori, O Livro dos Fracta, O Menino e o Travesseiro e Quadragésimo.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2005 ]