ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ZUNÁI EM DEBATE

 

Como é possível avaliar a qualidade de um poema?

 

 

 

Dirceu Villa: só podemos falar sobre a idéia de qualidade em poesia se a considerarmos uma arte.

 

Se acharmos que é um cri du coeur do poeta, ou um raio que acerta sua cabeça por vezes, & que qualquer um pode escrever boa poesia, tudo o que vem abaixo é perfeitamente inútil & dispensável.

 

E aquilo de que falo abaixo aplica-se apenas àquele que faz distinções qualitativas dentro da arte, o crítico, ou o artista com habilidades críticas, um profissional ou um notável diletante, & não o leitor de poesia por prazer, sem a intenção de escrever sobre o assunto.

 

Não que as distinções a seguir não lhe sejam também úteis: não lhe são necessárias.

 

Há duas coisas iniciais sobre avaliar a qualidade da poesia:

 

a) é preciso que, no mínimo, o avaliador em questão seja um leitor muito completo & exigente de poesia: que leia poesia de várias épocas, de várias línguas;

 

b) é preciso que seja, criticamente, alguém que compara & que não julga por gosto.

 

Os pré-requisitos são esses dois.

 

Ezra Pound, que se dedicou mais & melhor do que qualquer outro ao assunto específico, ainda acrescenta que não se deve acreditar em quem não tenha publicado obra própria de relevo, ou que não tenha feito públicas as suas descobertas & propostas, discutindo-as.

 

Pound faz uma pergunta muitíssimo interessante, também: pergunta-se por que um poeta deveria saber menos de sua arte, ou sequer treiná-la, se um músico que seja digno do nome precisa conhecer sua arte & exercitá-la oito horas por dia.

 

A propósito disso, é preciso também dizer algo muito impopular, que é o fato de que a obra crítica de Ezra Pound permanece como o exercício mais completo de reflexão & proposta avaliativa da poesia. Livros como The Spirit of Romance, ABC of Reading, The Literary Essays of Ezra Pound & Guide to Kulchur são simplesmente fundamentais.

 

Voltemos aos princípios: precisa ser um leitor muito completo de poesia. Não há outro modo de conhecer aquilo sobre o que fala (& devemos supor que um leitor muito completo de poesia seja um leitor muito completo de modo geral, & que sua cultura não se limite a verso, ou a literatura). Precisa ser alguém que ama a arte, & não mero burocrata postiço que presta serviços universitários ou jornalísticos.

 

Se lê a poesia de várias línguas, está atento às diversas possibilidades de escrita poética, & é provável que conheça com razoável facilidade onde determinadas idéias ou formas surgiram, & onde vieram parar. E como vieram parar. O como já nos introduz no tópico b).

 

Comparar significa ser capaz de isolar os aspectos básicos que se repetem em autores diversos, entendendo suas excelências proporcionais; significa compreender como determinada mentalidade se tornou forma; como forma & sentido são um amálgama (não apenas em poesia, mas em arte); ser capaz de estabelecer não apenas a mentalidade mais compreensiva entre os artistas, mas, diretamente implicado nisso, o uso mais hábil da forma para o efeito, & o efeito mais importante (Jacob Burckhardt falaria em termos como esses últimos, sobre Dante Alighieri).

 

Dizer que forma & sentido são um amálgama não quer dizer que um índice formal deva corresponder diretamente a algo em sentido, o que críticos menores & tacanhas em geral pensam que deve.

 

Forma & sentido como amálgama é algo mais complexo, algo que exige a aplicação de um ouvido inteligente & atento, & uma capacidade desenvolvida no estabelecimento de relações. Entender a correspondência de um ritmo com uma emoção, por exemplo.

 

Poesia, como toda arte, é o registro de uma percepção rara, por quem a tem, em linguagem.

 

A primeira coisa que distingue um poeta é sua percepção incomum, no sentido de que é mais veloz ao estabelecer relações antes imprevistas; de que, por esse motivo, é muitíssimo mais concisa do que a linguagem corrente; de que, por esse motivo também, é quem escreve com o maior apuro, a maior atenção ao que a língua & a linguagem têm de virtual, de não explorado: o efeito é aquele já muito repetido em toda parte como um corolário, o de que a poesia nos faz ver algo como se víssemos pela primeira vez. É um clichê, & é verdade.

 

Um leitor crítico, capaz de entender diferenças em qualidade, é portanto aquele capaz também de um repertório crítico do passado da arte — não existe o ex nihilo: a poesia, como uma arte, tem seus princípios.

 

Um repertório crítico do passado da arte é a versão politicamente correta do que antigamente se chamava cânone (um nome hoje repugnado por suas relações com aplicação ideológica de poder de classe & por conexões religiosas), ou o grupo de poemas & autores que exemplificariam o que já se fez de modo excelente na arte.

 

(O paideuma poundiano é uma das versões da idéia cânone, mas com o objetivo muito específico de se endereçar & oferecer o melhor do que funciona em determinada época ao novo poeta, evitando didaticamente aquilo cuja imitação poderia resultar em mera macaqueação, ou diluição. Pound está centrado naqueles que educam artisticamente o neófito).

 

Um repertório daqueles é, ao contrário do que se acredita, móvel & não estanque, uma vez que pelo menos a partir de T.S. Eliot & Jorge Luís Borges já deveríamos saber que o novo grande autor reproporciona o passado da arte, ou o propõe sob nova perspectiva.

 

Portugal & Brasil não têm esse repertório se movendo direito. Têm uma paralisia observada desde o século dezenove, mas isso é outro assunto, implicado neste apenas pelo fato de que não se lê poesia direito criticamente, em português, porque o repertório não se moveu, está congelado, mentindo a percepção.

 

Aproveitando o século dezenove, no entanto, é importante dizer que, até então, mais ou menos, a poesia era lida como um modo de se reconhecer mecanismos & formas retoricamente condicionados a seu efeito.

 

A partir do século vinte boa parte da crítica se esqueceu de fazer os reajustes necessários para recompor a própria atividade crítica, que, ao invés de reconhecer mecanismos & formas, deveria passar a deduzi-los dos poemas.

 

Isso aconteceu porque o século vinte (& o dezenove, já em parte) desmontou o edifício antigo da composição poética, sugerindo novos modos. Isso já se lê em Mallarmé, quando escreve o prefácio ao Coup de dés, ou Crise de Vers, ou Notes sur le language. Verso livre, o uso do espaço branco da página, collage, & muitos outros procedimentos que deram à poesia o enorme problema que se poderia chamar ingenuamente de liberdade.

 

Porque superficialmente é liberdade, mas, como T.S. Eliot escreveu, não há verso livre para aquele que quer fazer um bom trabalho. Eliot não o disse por ser um monarquista & um anglicano & um conservador, mas porque sabia que uma arte só existe dentro dos limites que fazem dela o que ela é; que o oposto disso era algo frouxo, muito inferior, formalmente, ao que o passado já fizera.

 

O proposto não era voltar a escrever como os antigos, mas inserir suas lições de artesanato dentro de outro registro de percepção. Como Maiakóvski escreveria, o poeta é aquele que cria suas próprias leis.

 

As raízes das leis de seu artesanato, como em qualquer arte, são antigas & profundas. E assim é sempre a arte, num aparente paradoxo da leitura de sua qualidade: nova & velha. Não é uma ciência exata (deus seja louvado), não é sequer uma ciência: é uma arte, &, por isso, tem princípios & tem critérios.

 

Quem disser que não é aquele simpático vendedor de carros usados, ou o célebre pescador que não conseguiu peixe algum no último passeio.

 

 

Dirceu Villa (1975), poeta, tradutor & ensaísta. Publicou MCMXCVIII (1998), Descort (2003) e Icterofagia (2008).

 

 

 

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Carlos Felipe Moisés: era só acrescentar um ponto de exclamação e estava resolvido o problema: em vez da pergunta, teríamos uma resposta, categórica, pela negativa. E não haveria dificuldade em alinhavar bons argumentos em defesa da impossibilidade. Exemplos? Poemas não estão aí para serem avaliados, mas degustados. “Qualidade” varia ao infinito, cada poeta ou leitor sabe muito bem da que lhe agrada e não admitiria sequer cotejá-la com outra. Por que avaliar um poema se todos sabemos que poemas (à exceção das seletas de antigamente, estreladas por poetas de um poema só) não existem como peças avulsas mas como partes integrantes de uma série, um livro, uma obra? Por maior que seja o esforço de críticos e teóricos (os “idiotas da objetividade”, como diria Nelson Rodrigues), no encalço de isenção, equanimidade etc., “qualidade” tem a ver, em última instância (última?), com o gosto pessoal de cada um, e este, por sua vez, é corolário do espírito de época, ou do esprit de corps, ou do gosto coletivo que a cada geração se impõe, variando o quadro dos interesses, ou os “critérios”, na opinião dos menos céticos. E por aí vai...

 

Como não sou tão cético assim, não vejo mal em pôr de lado a hipótese do ponto de exclamação e admitir que estejamos diante de uma pergunta neutra e não de uma recusa veemente, mais ou menos camuflada. Não que eu acredite muito na possibilidade de se definir um critério comum (jamais pelo artifício do consenso e menos ainda por votação), mas pode ser um exercício estimulante.

 

“De gustibus non est disputandum”, apregoavam os antigos, e os modernos endossam, indo mais diretamente ao ponto: “Gosto, cada um tem o seu” ou “Tem gosto pra tudo”. E a inércia faz o resto, sobretudo a partir do advento da nossa modernidade, empenhada no culto do individualismo e na fetichização do novo – ou na canonização do poema-do-dia e a concomitante condenação do poema-da-véspera à obsolescência irremediável. “Gosto”, esse que não se discute, delimita o largo território onde imperam, absolutos, a idiossincrasia, a arbitrariedade, a autossuficiência, a escolha arrogante e injustificada, o preconceito, o sectarismo etc., ou o sagrado direito de cada um gostar do que bem entenda. Por isso os franceses, com sua afiada mordacidade, garantem que “le beau pour le crapaud c’est sa crapaude”.

 

Não que gosto não seja discutível, é que simplesmente parece não haver interesse em discuti-lo. Por quê? Porque fora daquele amplo território, que ainda não chegou a abranger o universo inteiro, o que há são fatos palpáveis, argumentos plausíveis, provas e contraprovas, demonstrações, raciocínios bem engendrados, alguma racionalidade, em suma, e aí, sim, não haverá espaço para a disputatio, já excluída da esfera do gosto. Algum maluco pensaria em discutir a verdade segundo a qual matéria atrai matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias? Mas se alguém me disser que o Drummond de Fazendeiro do ar em diante é inferior ao que vai, digamos, até A rosa do povo, ou que João Cabral entra em declínio a partir de Museu de tudo, ou que o “Poema sujo” não tem a mesma qualidade dos poemas anteriores de Ferreira Gullar, aí eu só não vou discutir se estiver muito distraído.

 

O caminho será partir no encalço da margem, maior ou menor, de idiossincrasia, preconceito, sectarismo etc. que de hábito se esconde (às vezes nem se esconde) por trás de juízos dessa ordem. Razão suficiente para concluir, contra a inércia, que “gosto” é exatamente o que deve ser discutido. Cada um tem o seu? Talvez fosse mais acertado dizer que, por se sentir obrigado a isso, cada um gostaria de ter o seu, mas apenas para sair do anonimato. Além disso, ninguém nasce com o seu: gosto se adquire e se depura, ou toma-se um emprestado, o que estiver mais à mão, e depois dá-se um jeito de torná-lo único e exclusivo, ornando-o de penduricalhos excêntricos, ou tentando impô-lo, à custa de espalhafato e murros na mesa. Tem gosto pra tudo? Só na nobody’s land onde reina a arbitrariedade irresponsável e triunfante.

 

Gostar, obviamente, ainda não é avaliar, mas é a maneira mais cômoda e “democrática” de julgar. Auden, não obstante, lembra que, “no processo de seleção do que se lê, o prazer não constitui um valor crítico infalível, mas é o menos falível”. Já a avaliação, que de fato nos interessa, tem a ver com quanta racionalidade é admissível introduzir na esfera das idiossincrasias. Resta saber se esse quantum será capaz de eliminar por completo (antes, durante e depois ), como esperam os idiotas da objetividade, a margem de gosto pessoal ou de escolha arbitrária, ou se a racionalidade possível cumpre apenas com o papel de fornecer algum disfarce ou um álibi. Eu avalio este ou aquele poema como sendo de boa qualidade, e sou capaz de justificá-lo de forma convincente, porque gosto dele, ou só depois de avaliá-lo adequadamente é que passo a gostar? Ou uma coisa não tem nada a ver com a outra?

 

Se não estivermos lidando com gincanas ou concursos literários, ou com listas e antologias dos “dez mais” ou dos “cem mais” da década ou do século (casos em que o veredito sumário é suficiente), avaliar, em seu sentido próprio, exige a exposição de um arrazoado que forneça, ao mesmo tempo, uma análise interpretativa e uma argumentação crítica que sustente o veredito, e este será sempre comparativo: cada poema há de ser comparado a outros de sua espécie e só assim será possível formular uma escala de valores, uma hipótese de “medida” – claro está, sempre discutível. Mas se o poema for confrontado consigo mesmo, nenhum prestará ou todos serão excelentes. De qualquer modo, a desejada sustentação jamais será inquestionável.

 

Ninguém nasce com gosto próprio, gosto se adquire, se desenvolve e se aprimora... Conviria então indagar como isto se dá. Auden parece não ter dúvida: “No que se refere a questões de gosto, quer se trate de comida ou literatura, o jovem busca um preceptor em cuja autoridade possa confiar, passando a ler ou a comer o que este lhe recomende. Inevitavelmente haverá ocasiões em que precisará enganar a si próprio, fingindo, digamos, que gosta de azeitonas ou de Guerra e paz mais do que de fato gosta”.

 

Parece não haver dúvida: a formação do gosto acompanha a formação do resto e depende da inserção (ou não) do indivíduo na sociedade ou no seu grupo social. O gosto, longe de poder ser considerado à luz do “cada um tem o seu”, coloca questões eminentemente gregárias e geracionais. Auden: “Quando alguém na faixa dos 20 aos 40 anos afirma, a propósito de uma obra de arte, ‘Eu sei do que gosto’, está na verdade dizendo ‘Não tenho um gosto próprio, mas aceito o do meu meio cultural’. A razão é que, entre os 20 e os 40, a indicação mais precisa de que o indivíduo possui um gosto autêntico e pessoal é a sua incerteza a respeito da matéria”. Se dermos crédito ao poeta, avaliar um poema tem a ver com maturidade, sólida experiência etc., mas também com boa dose de ceticismo e uma reta honestidade.

 

Depois dos 40, às vezes um pouco antes, livre enfim das azeitonas e de Tolstoi, o jovem encontra os seus pares, forma com eles um novo consenso a respeito do que venha a ser “autoridade” e (Auden, mais uma vez) “a poesia que essas novas autoridades recomendam entra para a lista oficial das grandes obras e a que rejeitam é atirada pela janela”. Por isso, o poeta não hesita em confessar: “Quando um sujeito nitidamente idiota diz que gostou de um poema meu, tenho a sensação de que lhe bati a carteira”.

 

Avaliar a qualidade de um poema, afinal, não oferece dificuldade. Basta que a peça em causa atenda aos requisitos adiante relacionados, embora eu não saiba dizer se todos ou só alguns. A linguagem deve ser concisa, nenhuma palavra sobrante ou dispensável, mas é preciso tomar cuidado com o exagero: pode resultar em hermetismo. Um mínimo de adjetivos e advérbios, o máximo possível de verbos e substantivos, mas é possível inverter a fórmula, se o poeta tiver a certeza de que as categorias gramaticais por ele escolhidas são absolutamente imprescindíveis. As palavras que figuram no poema devem constar em qualquer bom dicionário; quando não, é necessário que mereçam passar a constar, logo em seguida. A sucessão de vogais e consoantes (o estrato sonoro, dizem os eruditos), o fluxo do pensamento, das emoções e do resto (o estrato sintático-semântico) e o recorte dos versos (a visualidade, a ocupação do espaço em branco) precisam formar um todo orgânico, em regime de conivência, de modo que mexer num pedacinho qualquer, de qualquer dos três estratos, resultaria em desmontar o arranjo todo. Imprescindível alguma inventividade, estrato a estrato, mas cumpre tomar cuidado com a ambição da inventividade total: o poema não terá um só leitor, salvo os iniciados, familiarizados com o não-idioma forjado pro domo suo pelo falso poema. Nada deve denunciar que o poema custou enorme esforço, tendo sido escrito e reescrito vezes sem conta; a impressão geral será de espontaneidade. Entre o terceiro e o quarto verso, embora isso varie um pouco, deve estar escondida uma centelha capaz de, como diz o metacientista Antônio Maria Lisboa, “perfurar a Razão com a Loucura, ou vice-versa”, quando o leitor passar por lá.

 

Creio que não exagero ao supor que alguns leitores, eventualmente alguns poetas, poderão concordar com o critério de avaliação exposto acima, mas um bom número, talvez a maioria, fará severas objeções, tipo: com que autoridade o senhor pensa que pode nos impingir isso tudo? Como é que o senhor faz para medir mais inventividade ou menos inventividade? O que é que o senhor entende por “espontaneidade”? Quem é o senhor para decidir se esta ou aquela palavra está sobrando? Adjetivo, substantivo – de que o senhor está falando? Dicionário?! Pra que isso? O que o senhor tem contra o hermetismo? Que história é essa de “perfurar” – o quê com o quê, mesmo? Em resumo: o senhor gosta de alcaparra, eu prefiro azeitona; o senhor fique com Dostoievski, eu continuo com Tolstoi.

 

Avaliar um poema interessa muito mais ao poeta do que ao leitor. Para além da dúvida em relação à qualidade do que ele acabou de escrever, o dilema de todo poeta é saber, com certeza, se ele é realmente poeta ou se está apenas se iludindo, e iludindo aos leitores, pelo fato de ter acertado a mão, aqui e ali – o que não é tão difícil assim, dada a fartura e a heterogeneidade dos critérios disponíveis. Recorro, ainda uma vez, a Auden (e peço ao leitor que me perdoe, mas este instigante debate proposto pela Zunái me pegou num momento em que estava relendo, “até me arderem os olhos”, como diria Alberto Caeiro, os esplêndidos ensaios reunidos em The dyer’s hand): “Assim como um homem generoso esquece a boa ação após praticá-la, um escritor autêntico esquece uma obra logo após terminá-la e começa a pensar na próxima. Caso volte a pensar em suas obras anteriores, provavelmente lembrar-se-á mais dos defeitos do que das qualidades”.

 

Diante do eventualmente bom poema que tenha acabado de escrever, Auden se pergunta: “Será que isso vai acontecer de novo?”, acrescentando que nenhum poeta “jamais terá condições de afirmar ‘Amanhã vou escrever outro poema e, graças a meu treinamento e experiência, sei desde já que será um poema de qualidade’. Aos olhos dos outros, um homem é poeta se tiver escrito um bom poema. Aos seus próprios olhos, ele é poeta apenas no momento em que faz a última revisão de um novo poema. No momento anterior, era apenas um poeta em potencial; no momento seguinte, é um homem que parou de escrever poesia, talvez para sempre”.

 

Receio de ter sido esquecido pelos deuses, abandonado pelas musas ou de ter perdido a inspiração? “Se poemas pudessem ser criados em estado de transe, sem a participação consciente do poeta (Auden nos consola), escrever poesia seria uma atividade tão maçante ou mesmo tão desagradável, que só uma vultosa recompensa financeira, ou em prestígio social, levaria alguém a ser poeta”.

 

Saber como seus poemas são avaliados é vital para o poeta, mas Auden recomenda a autoavaliação – a mais rigorosa, a mais impiedosa de que ele for capaz. Primeiro, é preciso criar um Censor interno, ao qual o poeta submeta seu trabalho em fase de elaboração. Depois, o Censor convoca um Comitê de Censura, “que deve incluir um filho único, de sensibilidade aguçada; uma dona de casa, com forte sentido prático; um estudioso de lógica; um monge; um palhaço irreverente; e, por fim, odiando a todos e sendo odiado por todos, um sargento-instrutor cruel e desbocado, que considere tudo quanto é poesia um lixo”. Aí ele talvez venha a ter condições de avaliar a qualidade de um poema.

 

Cumprido o exercício a que me propus (estimulante foi, reconheço), qual tenha sido buscar um critério, que de antemão eu sabia inaproveitável, por fim me dou conta de que teria sido melhor ficar no ponto de partida, quero dizer aquele ponto de exclamação, que me permitiria afirmar, categórico: impossível avaliar a qualidade de um poema!

 

 

Carlos Felipe Moisés é poeta (Noite nula, 2008), crítico literário (Poesia & utopia, 2007). Tradutor (O poder do mito, 1990) e autor de livros infanto-juvenis (Conversa com Fernando Pessoa, 2007). É ex-professor de literatura da USP, da Universidade da Califórnia, Berkeley, e outras instituições de ensino.

 

 

 

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Susanna Busato: como avaliar a qualidade de um texto literário é, de início, algo complicado de elaborar. Mas posso iniciar a reflexão dizendo que o sentido crítico da avaliação traz implicado o modo e o conhecimento de literatura que traçará o roteiro da leitura do texto literário. Se eu me atenho ao que Ezra Pound afirma em seu ABC sobre o que é literatura - elaborada num alto nível de complexidade, que traz no arranjo estrutural e semântico a produção de um estranhamento para o leitor, posso dizer que um texto literário deveria almejar ao “make it new”, e procurar ser inventivo no aspecto de organização da linguagem em todos os níveis – sintático, semântico, sonoro – de modo a descobrir formas de dizer que informam, plasticamente, formas, ou ainda, que deformam o lugar-comum dos discursos, inclusive os poéticos. E isso não quer dizer elaboração de jogos complexos de imagens que tendem ao hermetismo em todos os níveis. Comunicar faz parte do texto literário, da poesia; impactar o leitor, seduzi-lo para o jogo da linguagem e da vida é algo que a singularização buscada no texto pode e deve realizar. Impactar o leitor e fazê-lo “sair do seu lugar” é o que um texto poético deve buscar, para compreender seu lugar como uma presença de sentido hoje.

 

Susanna Busato é poeta e professora de Poesia Brasileira na UNESP (São José do Rio Preto/SP).

 

 

 

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