ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

CARTAS DE LONDRES (I)

 

 

Richard Price

 

 

Cara Virna, escrevo esta carta no início do outono, numa tarde de domingo, de minha casa em Londres a caminho de Edimburgo. É uma viagem de cerca de cinco horas, um pouco mais longa hoje porque domingo é o "Dia de Manutenção" na ferrovia do Reino Unido: há uma promessa de lentidão e um desvio grande da costa leste para a costa oeste e de volta novamente.

 

Vou em direção ao norte para fazer um pouco de pesquisa na Biblioteca Nacional da Escócia. Meu tema de estudo é a revista internacional Migrant, que existiu por apenas dois anos, de 1959 a 1960, mas publicou alguns poetas americanos, escoceses e ingleses fascinantes, e sem dúvida teve um efeito significativo na escrita mais experimental dos anos 60 e 70 na Grã-Bretanha. Os autores de Migrant incluíram os americanos Robert Creeley, Cid Corman e Charles Olson, os escoceses Edwin Morgan e Ian Hamilton Finlay, e os poetas ingleses Charles Tomlinson e Roy Fisher. Talvez a poesia moderna britânica não seja muito conhecida fora das Ilhas Britânicas. Estou trabalhando em uma exposição na Biblioteca Britânica para apresentar alguns dos poetas de Migrant e exibir alguns dos livros de inspiração mais visual que eles fizeram com artistas nos anos após Migrant.

 

Os autores clássicos ingleses desta época, Ted Hughes e Philip Larkin, têm uma reputação internacional, mas os poetas dos anos 50 e 60 que foram seus contemporâneos (e também os jovens poetas que surgiram desde então) não são, creio, tão conhecidos, mesmo no Reino Unido. A exposição irá tentar ajudar a corrigir isto.

 

Pessoalmente, eu gosto de uma variedade de poesias, a de vanguarda ou experimental, bem como a poesia que é mais tradicional, até mesmo musical, e esta é uma atitude próxima à política editorial de Migrant. Conheci um dos editores, o poeta Gael Turnbull, nos últimos sete ou oito anos de sua vida (ele faleceu apenas cerca de dois anos atrás), então a exposição tem uma motivação pessoal, bem como o imperativo de compartilhar informação: de uma maneira discreta, estará continuando o trabalho de Migrant ao demonstrar o que a revista fez, e ao ilustrar sua influência sobre escritores fascinantes que surgiram desde então. Estará também prestando uma homenagem a Gael que, nas suas viagens pessoais para Edimburgo, cidade que se tornou seu lar, pararia na Biblioteca por uma hora ou mais para compartilhar comigo um blather como ele dizia (uma bate-papo ou blether) sobre novos poemas e a fofoca da poesia do dia.

 

Ian Hamilton Finlay é um ótimo exemplo do efeito que Migrant teve sobre os autores. Inspirado pela revista, este escocês minimalista forjou links com a Black Mountain e a vanguarda dos Objetivistas na América, e logo em seguida lançou sua própria revista, Poor. Old. Tired. Horse (que como Migrant está na minha lista das vinte maiores revistas de poesia britânicas dos últimos cem anos). Uma editora irmã, The Wild Hawthorn Press, também surgiu sob direção de Finlay, e publicou, por exemplo, a poeta americana Lorine Niedeker e uma edição de texto paralela do poema Cidade de Augusto de Campos. Finlay desenvolveu um internacionalismo muito maior - especialmente na sua conexão com o Brasil e a poesia concreta - e afiou uma estética minimalista, ancorada em jogos lingüísticos e com as artes visuais, uma área com a qual Turnbull não estava particularmente preocupado até muito mais tarde na sua vida. Alguns dos últimos poemas que Turnbull escreveu eram na verdade parte de estruturas 3-D, exemplos dos quais realmente se moviam, "poemas cinéticos" como eles os chamou (haverá uma exibição destes poemas no Stanza Festival no ano que vem na cidade universitária de St Andrew, ao leste da Escócia).

 

É outono, mas olho de relance uma manchete de jornal logo adiante no vagão que declara: "Plantas florescem novamente: natureza e biólogos confusos". De uma certa forma, esse tempo de cabeça para baixo é agora dificilmente uma notícia: desde a metade do verão, nossas castanheiras parecem distintamente árvores de outono, acometidas de uma doença que tem chamuscado suas folhas, uma condição que a normalmente abundante chuva britânica, incapaz de materializar-se em quantidade suficiente este ano ou no ano passado, tem falhado em abrandar.

 

O tempo tem sido tão brando por tanto tempo que as flores e árvores não são as únicas que não sabem se vão ou se ficam. Ouriços, os animais que são nossas pequenas versões de tatus, tipicamente produzem uma ninhada por ano. Este ano os ouriços freqüentemente não geraram uma, nem duas, mas três ninhadas. O tempo mais aquecido os tem estimulado e você pode apenas esperar que o inverno, quando ele finalmente vier, não seja uma surpresa fria para os pequenos.

 

Londres tem estado numa seca alarmante por meses, mas chuvas ocasionais nunca nos fazem sentir que estamos tão próximo do fundo do poço coletivo quanto de fato estamos. Os londrinos estão inquietos, sim, e os jardins e lotes que significam tanto para nós estão subnutridos e improdutivos. Talvez alguma "poesia ambiental' de choque mais do que "poesia da natureza" iria realmente nos provocar. Nós temos alguns bons 'poetas da natureza' contemporâneos, Alice Oswald, digamos, autora de Woods etc (Faber, 2005) e Robin Fulton (autor de Coming Down To Earth), mas apenas a poesia de Rob Mackenzie, que é um cientista ambiental da Universidade de Lancaster, brota imediatamente à mente para começar a responder a este desafio particular (publiquei alguns destes poemas ambientais em uma edição recente de Painted, spoken; ele também é notável por usar inglês com uns vestígios de gaélico e Scots).

 

Não é apenas o tempo que está tão incerto. No Parlamento, os políticos dos três principais partidos parecem estar fora de compasso com o seu eleitorado habitual ou com os membros dos seus partidos, ou com ambos. Além disso, os partidos estão notavelmente similares uns aos outros na maioria das suas políticas: isto deve se refletir de um lado a outro do país, mas para mim o consenso político parece um tanto artificial, um peso, em vez de uma inspiração. O pessimismo e nervosismo da "Idade do Terrorismo" fazem parte disto: os parlamentares de esquerda e direita parecem muito próximos uns dos outros na política civil, uma política civil onde direitos individuais têm sido reduzidos.

 

Talvez eu esteja fora de compasso com a maioria da população (as pesquisas sugerem que há suporte popular para medidas autoritárias), mas tenho a impressão de que é como se estivéssemos vivendo em um clima de exagero maciço. O filme distópico de Alfonso Cuarón, Children of Men, entrou recentemente em exibição: sua visão paranóide de uma futura Inglaterra que demoniza imigrantes enquanto militariza sua força policial está, a despeito dos meus temores, a alguma distância do que é o país hoje, mas este é o país onde, como seus leitores vão especialmente saber, um homem inocente, Jean Charles de Menezes, foi morto pelas nossas forças de segurança. Em todo esse tempo (há pouco mais de um ano), ninguém ainda foi julgado. Pior, um dos oficiais envolvidos foi na verdade promovido, para liderar um setor da polícia dedicado a prevenir crimes por armas de fogo.

 

Há tradições políticas e não-políticas na poesia britânica, e você poderia muito bem perguntar para onde foi atualmente a tradição política. Eu pensava nisso enquanto ouvia em uma pequena galeria de arte, há pouco mais de uma semana, o poeta americano veterano da Language Leslie Scalapino. Scalapino, em uma breve visita à Inglaterra, lia um texto extraordinário que usa imagens de desastres no Iraque e em New Orleans em séries oblíquas de paisagens auditivas. Suponho que isto poderia fazer tudo soar um pouco afetado e auto-indulgente, mas, se não é um pouco simplista usar um termo de gênero tal como "poesia de guerra", aquilo era poesia de guerra de um tipo envergonhado, raivoso e perturbadoramente belo. 

 

Eu não sou um poeta abertamente político. Não tenho a sensibilidade de reagir rápida e efetivamente a acontecimentos políticos, mesmo (ou especialmente) a aqueles que eu acho particularmente desconcertantes ou vergonhosos. Mas eu vejo no texto oblíquo, pulsante de Scalapino uma maneira de representar novas histórias horríveis sem adotar completamente a estética corrosiva das notícias apresentando a si mesmas. Lendo recentemente a última seqüência do conhecido poeta modernista inglês J. H. Prynne, To Pollen (Barque, London), um livro que também tem uma imagem altamente refratária, e que novamente também parece ser baseado em incidentes no Iraque, eu posso ver que Scalapino e Prynne representam duas respostas extremamente sofisticadas em oposição à guerra (claro, ainda não li poemas a seu favor).

 

É relatado que o poeta palestino Mahmoud Darwish comentou que o poeta não é um funcionário público a serviço do Estado, mas tenho certeza que ele não queria dizer que não deve haver poesia política. Eu penso que nós precisamos dela, mas pode haver mensagens políticas que são complexas demais, ou desconfortáveis demais, para se encaixarem nas limitações dos atuais partidos políticos. O novo livro de Tom Leonard, Being A Human Being and other poems (Object Permanence), é certamente direto na sua raiva contra a ameaça da política e da mídia, mas ele usa registros magros e exploradores para trazer algumas formas de discurso contra sua própria "tradução" ("statehood is right to arms / statehood is control of the air"). E agora estou pensando em outro poeta, o falecido Douglas Oliver, que, em vez de escolher uma abordagem vanguardista, dominou intricadas técnicas formais baseadas na poesia inglesa medieval para dramatizar combates políticos. Em Kind (1987) e Penniless Politics (1991; reeditado em 1994), ele enfoca as idéias de globalização e vários tipos de auto-interesse corporativo com espantosas facilidades formais. No seu "The Infant and the Pearl" ele fala das Câmeras do Parlamento como um lugar onde "glassy surfaces gleamed with fragmentary / mirrorings of all the MPs, as we peered / at a cliff-like façade like a stacked factory / for industrial ice whose cubes reared / up winking in the sun from an unseen clerestory."*

 

Bem, essa jornada tem sido mais mecânica do que aerodinâmica e às vezes tão fria quanto aquela casa de gelo - não há muita facilidade formal, em termos de trens, em um Domingo de Manutenção! Mas, finalmente, o trem chegou a Edimburgo. Está na hora de desligar meu laptop e encontrar os amigos com que ficarei nos próximos dias. Espero escrever sobre a poesia britânica mais recente na minha próxima carta. Enquanto isso, ergo uma taça metafórica para você com algum tristemente metafórico malt whisky, um tipo brando, Auchintoshan, digamos. Slainte! ** - até o momento que possamos compartilhar uma taça real de algo real.

 

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Richard Price é diretor da seção de Coleções Modernas Britânicas da British Library e co-autor, com David Miller, de British Poetry Magazines 1914-2000: a history and bibliography of 'little magazines' (2006). Seu livro Lucky Day (Carcanet, 2005) foi indicado para vários prêmios.

 

 

Tradução: Virna Teixeira.

 

 

Notas

 

 

(*) "superfícies de vidro brilhavam com fragmentários /vitrais de todos os deputados, enquanto nós fitávamos/ em uma fachada de penhasco como uma fábrica empilhada/ por gelo industrial cujos cubos se erguiam / piscando sob o sol de um clerestório desconhecido", numa tradução literal para facilitar a leitura. Observação: Peer é um membro da Câmera dos Lordes, mas o verbo to peer também significa fitar - a tradução, nesse caso, perde o duplo sentido do poema.

 

(**) Slainte: saúde! em gaélico.

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