ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

CARTAS DE BERLIM (I)

 

Simone Homem de Mello

 

27/03/07

Caro Claudio, o seu pedido de uma Carta de Berlim me deu o que pensar. Afinal, a via postal pressupõe localidade (com exceção, talvez, das cartas anônimas). E como local você nomeou Berlim, uma cidade desfigurada pelos bombardeios e imersa, durante a reunificação, numa desmemória não muito distante do "ano zero". Uma carta a ser endereçada a São Paulo, cidade onde nasci, mas que durante catorze anos de ausência foi se transformando para mim em terreno vago, a ponto de muitas vezes eu temer ter perdido o faro para a informação relevante. Qual notícia específica de Berlim interessaria a São Paulo, uma notícia que já não tenha sido veiculada em tempo real e que justifique uma carta de preferência manuscrita? Foi o que me perguntei.

E na falta de uma resposta convincente, desisti. (Você sabe.)

Mas uma leitura casual me abriu uma perspectiva. "Leitura" e "perspectiva" se cruzam automaticamente, para mim, em um nome: Peter Handke. Eu nem estava em Berlim, mas em Hamburgo, ontem, quando entrei no sebo em frente à igreja de St-Michaelis e comprei a primeira edição de Die Lehre der Sainte-Victoire (A Lição da Sainte-Victoire, 1980), cumprindo um ritual de viagem, quando estou de passagem breve por alguma cidade: escolher entre os livros do primeiro sebo que apareça um de Handke que eu tenha lido faz tempo. E esta leitura sempre acaba se tornando mais que leitura de bordo, mais que fio da meada durante algumas horas em trânsito.

E do porto de Hamburgo à estação central de Berlim, o livro do escritor austríaco se desdobrou da montanha Sainte-Victoire (na Provença e nas telas de Cézanne) a um bosque de pinheiros em Salzburg, passando pelo "campo frio" da Alemanha. O livro não é um guia de viagem, é claro (embora possa funcionar como tal pelo detalhamento de certos trajetos, como a Route Paul Cézanne, na Provença), muito menos um roteiro linear, mas sim uma reflexão entusiástica sobre a continuidade entre o literário e o real, seguindo na composição a "lição" pictórica de Cézanne. Quando o trem entrou no perímetro urbano da minha cidade de desembarque, Handke dizia nunca ter atinado para o fato de Berlim se situar num vale glacial. Para ele, as casas pareciam - até então - espalhadas como que ao acaso numa planície semelhante a uma estepe.

"Então descobri que, algumas ruas adiante, ficava um dos poucos pontos da cidade onde antes o degelo havia formado uma encosta nítida. Ali ficava o Matthäusfriedhof, e no topo deste cemitério, na altura dos telhados acima do nível geral, o bairro de Schöneberg atingia a maior altitude em relação ao nível do mar. (Os montes artificiais de escombros da guerra não contavam.) - Numa tarde, pus-me a caminho. A umidade e o trovão distante vinham a calhar. O primeiro aclive mínimo da rua me colocou numa expectativa excitada. Uma encosta visível, todavia, só se revelou dentro do cemitério. Lá em cima, no topo, a paisagem usualmente construída prosseguia numa superfície que, em seu discreto declive, virava entretanto um terraço. Sentei-me (na lápide ao lado, o nome dos irmãos Grimm) e mirei uma grande baixada, na qual a cidade se estendia agora de modo bem distinto, e de longe, do fundo do vale, chegava até uma sensação de rio."

E ao ler isso, desembarquei logo em seguida com a imagem precisa (outro efeito inevitável de uma leitura de Handke), uma correspondência para a dúvida da "Carta de Berlim": onde encontrar uma informação local relevante numa cidade tão plana, onde todos os relevos (geográficos, históricos, culturais) tendem a se nivelar numa superfície cada vez mais lisa, sem aderência ou textura háptica? Ou será que todas as cidades se tornaram assim? E para celebrar o achado da imagem e quem sabe o início da Carta de Berlim, saí da Hauptbahnhof rumo à Yorkstrasse, para revisitar o cemitério que sempre foi o meu predileto e que a partir de agora também estaria definitivamente marcado por uma referência de Handke. 

Desci a pé pelas ruas adjacentes à Friedrichstrasse, o eixo norte-sul antes cortado pelo Muro de Berlim e hoje uma rua comercial de grifes. Em busca de sinais distintivos, de alguma coisa que singularizasse os afazeres e gestos das pessoas numa manhã de segunda-feira entre Berlim-Mitte e Kreuzberg, nada me ocorreu de especial, de especificamente local. Não dava para perceber nem mesmo a mudança de ares de Berlim Oriental para Ocidental (e devo dizer que os marcos históricos visíveis, como a guarita intacta do Checkpoint Charlie, ponto de travessia do Muro, sempre me parecem falsificados). Vendo passar as fachadas uniformes (talvez daí a permanente sensação de mesmice?), lembrei de Morton Feldman dizendo que sua peça Triadic Memories (1981) era como andar pelas ruas de Berlim, "onde todos os edifícios parecem semelhantes, mesmo que não sejam". Mas por que os padrões sonoros desta e de outras peças de Feldman inspiradas na tapeçaria oriental têm um efeito mnemônico, enquanto a falta de definição não apenas topográfica de Berlim me soa como desmemória?

Ao atravessar o Landwehrkanal, resolvi entrar na Amerika-Gedenkbibliothek, uma biblioteca-"memorial" fundada pelos americanos em homenagem à resistência de Berlim Ocidental ao bloqueio soviético de 1948/49, que obrigou as forças ocidentais de ocupação a abastecerem o enclave capitalista por uma ponte aérea durante quase um ano. Na verdade, eu queria informações sobre o St.-Matthäus-Kirchhof, mas acabei me deixando distrair por outras coisas, entre elas um livro com fotos aéreas de Berlim. Eram fotos atuais, inclusive dos grandes projetos urbanísticos da reunificação, mas que me remeteram às únicas imagens aéreas da cidade que tenho na memória: a Berlim destruída pelos bombardeios, os esqueletos dos edifícios deixando reconhecer apenas o traçado típico dos prédios de quatro ou cinco andares, cujas fachadas emendam por todo o quarteirão num perímetro contínuo, num quadrado monolítico a se desdobrar para dentro em alas laterais e pátios internos. Aliás, um traçado que justifica a existência de uma das poucas coisas associadas à cidade no nome (além do Berliner Blau, um azul escuro opaco, primeiro pigmento sintético): o Berliner Zimmer - cômodo extenso com apenas uma janela no fundo de uma das laterais, situado no vértice das alas de um edifício.

Já numa parte de Kreuzberg que faz parte do meu trajeto cotidiano, vi a Carta de Berlim ameaçada pela falta de singularidade do que eu havia registrado no caminho desde a estação até ali. As únicas coisas locais dignas de nota me pareciam tristemente anedóticas e desprovidas de qualquer contemporaneidade. Mas de uma coisa não havia escapatória: o meu roteiro de volta para casa tinha que ser pelo vale glacial de Handke, mesmo que nenhuma carta viesse a ser escrita. E então resolvi evitar meus caminhos de costume e enveredar por um dos últimos terrenos baldios de grande extensão no centro de Berlim, o Gleisdreieck, "triângulo de trilhos", ponto de cruzamento de três linhas ferroviárias. Mesmo sem saber se o imenso território cercado por muros ou grades teria saída para o lado de Schöneberg, arrisquei o trajeto. E logo fiquei animada em descobrir que aquela área ainda tinha algo de aleatório, comum na Berlim do início dos anos 90, no "maior terreno de construção da Europa", antes de as medidas políticas urbanísticas para a nova capital da Alemanha reunificada terem vedado de vez as rupturas da paisagem que indiciavam a guerra e a divisão do país.

Nessa vasta superfície arenosa, ritmada apenas pelo amarelo sonoro dos metrôs de superfície e trens urbanos, ainda se capta algo de ambíguo e improvável. Impossível não indagar o que se passa dentro dos contêineres e trailers esporadicamente circundados por trabalhadores de macacão azul. Inevitável o espanto diante do imprevisível verde de um imenso campo de golfe vazio, pontuado de bolas brancas (contra o horizonte marcado pelo arranha-céu de Renzo Piano na Potsdamer Platz, ao fundo). Ou diante do acesso vedado a trilhos subterrâneos, das placas de trânsito soterradas, das cabines telefônicas tombadas na paisagem. Ou da imensa montanha de areia de construção até a altura dos elevados ferroviários, aparentando antecipar a encosta glacial de Schöneberg, não muito distante. Os corvos de inverno sobrevoavam o areal. A terceira borboleta-limão (nomes de animais e plantas também vim a aprender como tradutora de Handke) vista nesses primeiros dias de primavera marcava a transição de estações. (Mesmo que ela remetesse só em tese ao que Feldman denominara "provavelmente a maior borboleta jamais pega", em referência à sua peça Triadic Memories). A minha única saída foi atravessar os trilhos da linha de trem urbano leste-oeste, chegando à rua por dentro da estação Yorkstrasse.

Embora o tempo não estivesse úmido e não se ouvisse nenhum trovão, esse raro dia ensolarado vinha a calhar, pois o café do cemitério (!) já tinha mesas do lado de fora. Também vinha a calhar o fato de eu estar revisitando este local no dia exato em que, há 151 anos, se realizara ali o primeiro enterro. Como eu tivesse vindo por causa da encosta, fui ao ponto mais alto, onde fica o túmulo dos irmãos Grimm. E no banco ao lado, cercado de inúmeras sepulturas novas, posteriores à publicação de Die Lehre der Sainte-Victoire, fiquei pensando na incansável contribuição desses dois filólogos à continuidade histórica e à constituição de uma memória coletiva, não só em sua coletânea de contos de fadas, mas sobretudo no Dicionário Alemão, com sua abrangente compilação de citações literárias. E continuei a leitura de Handke.

"O maciço se mostrava do oeste, onde ele é um tricorne, com seus estratos e dobras em corte geológico transversal. Li que um amigo de juventude do pintor fora um geólogo chamado Marion, que depois viria a acompanhar Cézanne em diversas caminhadas em busca de motivos pela paisagem. Ao estudar os respectivos mapas e descrições da montanha, a fantasia não parava de girar, arbitrária e inexplicavelmente, em torno de um único ponto: uma fratura entre dois estratos de rochas heterogêneas. (...) Na natureza, a olho nu, não dá para enxergar o ponto, mas nos quadros do pintor ele sempre volta a aparecer como uma trilha de sombra, maior ou menor. (...) Fora este ponto, sobretudo, que me motivara (...) a repetir a viagem à Provença. Eu esperava que ele fosse me dar a chave; e mesmo que a razão tentasse me dissuadir: eu sabia, sim, que a fantasia tinha razão."

Desci a encosta com a "fratura" de Handke em mente, mas ainda ponderando a importância da noção de continuidade para tantos pensadores e intelectuais do século 19, muitos enterrados nessa encosta. E mal pude conter o riso ao me deparar de repente com a lápide de Immanuel Hegel, cujo pai - Georg W. F. Hegel, enterrado no Dorotheenstädtischer Friedhof, ao lado de tantos outros, de Fichte a Brecht - contestara (entre muitas outras coisas) a noção de des/continuidade de Kant, mas não hesitara em batizar seu filho com o prenome deste outro filósofo... E logo abaixo, o túmulo de Ernst Curtius, arqueólogo e historiador, avô do "nosso" romanista Ernst Robert Curtius, outro filólogo ocupado em tecer continuidades da Idade Média latina até a França do século 20.

Se há uma cidade em que continuidade se tornou impensável - esta cidade é Berlim. Tanto maior o esforço em escamotear as fraturas reais por meio de corpos estranhos urbanísticos, como a Potsdamer Platz, por exemplo, que encobriu com uma artificialidade megalomaníaca o vazio deixado pela destruição da praça de maior movimento da Europa na década de 20, um vazio sedimentado ao longo de quarenta anos pela proximidade do Muro. O esforço em musealizar ou monumentalizar a memória, o que infelizmente se reflete até no campo de estelas do Memorial aos Judeus Assassinados da Europa, de Peter Eisenman, privado do dinamismo original do projeto concebido com Richard Serra e reduzido a uma figuração monolítica e homogênea da culpa. O impulso regressivo de resgatar um passado intacto, visível na atual demolição do Palast der Republik socialista, em Mitte, a ser substituído por um edifício com a fachada do antigo palácio barroco que existia ali, parcialmente destruído pelos bombardeios e demolido no pós-guerra pelo governo da Alemanha Oriental.

Devo admitir que, ao descer a encosta, não tive nenhuma "sensação de rio" eventualmente vinda de um vale. O Spree é pouco presente na cidade, corre em grande parte no fundo de parques industriais e grandes áreas interditadas aos passantes. Nem o rio, metáfora da continuidade histórica, segue ininterrupto por Berlim; sensação fluvial mesmo, em geral só de cima das pontes.

Já no café do cemitério, tive a certeza, contudo, de que Handke tinha me dado mais uma vez a resposta. Embora, em Die Lehre der Sainte-Victoire, ele investigue - com recursos do ensaio poético - as possibilidades de juntar materiais heterogêneos, a fratura que ele identificou nas representações da Sainte-Victoire por Cézanne corresponde ao diferencial tornado nítido pela fantasia, visível só nos quadros, não a olho nu. E então essa leitura em trânsito me sugeriu que a diferença de que eu sentia falta na cidade só podia ser descoberta pela escrita, o que me animou a uma Carta de Berlim, como terceiro vértice deste tricorne, deste triângulo de trilhos, deste dia de trajeto triádico.

Mas, ao contrário de Handke, a minha dificuldade continuava sendo destilar algum sinal distintivo ou disjuntivo em meio à homogeneidade, à ausência de signos, à vaguidão de um terreno expurgado de rupturas. Esta chave fui reencontrar depois em Feldman, não apenas em Triadic Memories, mas também em Crippled Simmetry (1983) e Coptic Light (1985), peças tardias que jogam explicitamente com o desvio de padrões sonoros. "Há a sugestão de que o que ouvimos é funcional e direcional, mas logo percebemos que isso é uma ilusão", escreveu Feldman sobre sua peça remetida a Berlim.

E como resistência à mesmificação da informação, a tudo o que é forjado pelas formas funcionais da memória, talvez a fantasia seja de fato a mais eficiente arma, dado o seu imprevisível caráter mnemônico. "A razão esquece; a fantasia não esquece jamais". Foi essa convicção de Handke que me levou a escrever esta carta e me animou a sondar relevos e fendas nesta paisagem distante.

Cabe a você, caro Claudio, decidir o quanto isso tem de "carta" e de "Berlim". E não deixe de me informar sobre o relevo e relevância que isso possa ter no Planalto Paulistano. Espero revanche. (Ou avalanche, para me manter nas imagens topográficas). Beijo da Simone.

*

 

retornar <<<

[REVISTA ZUNÁI- ANO III - Edição XII - MAIO 2007 ]